Imprensa

Diário: Plano Real que
durou nove meses (3)

DANIEL LIMA - 16/07/2024

O que você vai ler neste terceiro capítulo desta série que resgata o Plano Real Editorial preparado e parcialmente executado no Diário do Grande ABC  poderia ser condensado em duas constatações: assumi o cargo há exatamente 20 anos porque criei a melhor revista regional do País (LivreMercado, em 1990) e também porque a Redação do Diário do Grande ABC estava numa pindaíba de dar nó, embora contasse com profissionais de primeira linha.

Ou seja: fui contratado para formar um time de sucesso com os jogadores que encontrei e com os quais contei durante todo o período, sem  recorrer ao mercado de contratações. O Diário do Grande ABC vivia uma crise organizacional na Redação, além de complicações acionárias adicionais com a troca de comando. Onze meses depois, equipe azeitada (como se provará) e  tudo se desmanchou.

O Planejamento Estratégico Editorial, marca oficial do projeto, será integralmente reproduzido nestas páginas, em várias etapas. A etapa desta edição é justamente a síntese do que viria em seguida, também em várias divisões. Perto de 11 mil caracteres de um total de 90 mil aguardam leitura na sequência.

Os leitores poderão aferir com os próprios olhos e mentes que não passam de mentecaptos quem vincula uma das características deste jornalista, o tom crítico à atuação do Diário do Grande ABC, à demissão em maio de 2005. Enfrentar grupos de interesses não é tarefa fácil para reformistas. O Plano Real de 1994, que acabou com a inflação recorrentemente nefasta do Brasil, só foi adiante porque o presidente Itamar Franco não cometeu  -- embora tenha tentado -- a bobagem de atrapalhar a ação de Fernando Henrique e equipe.

Portanto, é preciso ser muito estúpido para dar crédito a essa estrada tortuosa de maledicência. Basta ler o que se segue. Não tenho escrito ao longo de muitos e  muitos anos de jornalismo nada que conceitualmente deixasse de ser contemplado no Plano Real Editorial do Diário do Grande ABC, razão, aliás, que determinou minha contratação.                         

Mais que isso: antes de assumir a Redação do Diário do Grande ABC,  em julho de 2004, atuei 30 dias  como primeiro ombudsman da história do jornal, função que repetiria mais tarde, em 2015.  E naquela oportunidade pude apresentar na prática aos jornalistas e dirigentes do jornal o que pretendia, adicionalmente ou redundantemente, quando assumisse o cargo de titular da Redação.

O que se verá a partir de agora foi entregue à direção do Diário do Grande ABC em março de 2004, e passou a ser aplicado a partir de julho do mesmo ano.

SÍNTESE DO PLANEJAMENTO

Tem o presente documento o compromisso de delinear conceitos e programas que pautarão nossa atividade na condução operacional, técnica, orçamentária e gestora dos departamentos editoriais do Diário do Grande ABC. Esse material está sujeito a novas incursões do autor, seja por meio de supressões, seja por emendas, dada a possibilidade de a experiência prática no front se comprovar além ou aquém das expectativas aqui traçadas.

Antecipadamente, podemos afirmar que há enormes probabilidades de as afirmativas aqui impressas estarem subestimadas. O produto editorial da companhia navega nas águas rebeldes de evidente inadequação ao contexto socioeconômico em que vivem os sete municípios do Grande ABC — Santo André, São Bernardo, São Caetano, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra — distribuídos em espaço metropolitano extraordinariamente ebulitivo e transformador.

Poucos agentes regionais se aperceberam de que o Grande ABC de 2,4 milhões de habitantes e o quarto potencial de consumo do País vive a mais intrigante metamorfose da história, cinco décadas depois de a indústria automotiva aqui se instalar e revirar de ponta-cabeça os cromossomos de uma região então acanhada economicamente. Que perdemos riqueza industrial e ganhamos migalhas de comércio e serviços, todo mundo sabe ou deveria saber. Quase ninguém percebeu, entretanto, que a transposição do Grande ABC industrial para o Grande ABC de serviços alterou o comportamento sociológico da comunidade local.

Vivemos já há alguns pares de anos imensa febre de empreendedorismo de diversos matizes para tentar sufocar os estragos da desindustrialização e o surgimento de imensas ilhas de exclusão social. Nenhuma outra região do País, por não ter as características majoritariamente automotivas do Grande ABC, passou por esse autêntico corredor polonês.

E o que o jornal diário da região fez para acompanhar ou mesmo antecipar-se às tendências? Absolutamente nada, ou quase nada, em seu núcleo editorial.

O Grande ABC que viceja pós-demolição de parte de suas indústrias — notadamente de pequeno e médio porte — é um território cuja população se vira como pode como empreendedora formal e informal, já que escasseiam empregos mesmo nos setores de serviços. Nossa demanda por empregos ultrapassa a 30 mil novas vagas por ano, conforme dados estatísticos, mas não conseguimos repor quase nada disso. No ano passado abriram-se pouco mais de oito mil vagas com carteira assinada, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego.

Muito pouco quando se sabe que, além da nova leva de jovens economicamente ativos, encontramos um turbilhão de desempregados cumulativos. Só nos anos 1990 perdemos 100 mil empregos industriais com carteira assinada, aqueles que oferecem as melhores contrapartidas de proteção social negadas pelo Estado.

Contingente predominante desses desafortunados recorreu aos negócios próprios. Muitos quebraram a cara porque os grandes conglomerados comerciais e de serviços descobriram nosso potencial de consumo e aqui se instalaram com pompa e circunstância.

Contaram para isso com a omissão ignorante, quando não com apoio interesseiro, de governos municipais e entidades empresariais e sindicais. Todos ficaram como baratas-tontas incapazes de reagir de forma minimamente coordenada senão para barrar os novos investimentos — o que seria uma afronta às leis de mercado — pelo menos para erigir redes compensatórias sobre as quais dispensamos detalhes agora, mas que estão presentes nas economias mais maduras.

Pois é esse Grande ABC terceirizado, informal em larga escala, ressentido pelo status desempregador que atingiu duramente quem carregava no uniforme de trabalho logomarcas das montadoras de veículos, é esse Grande ABC profundamente alterado em seu genoma social e econômico que está aí para ser desvendado, para ser modificado permanentemente até exibir novo formato, não essa peça disforme e inquietante que facilmente detectamos no estado de petrificação em que se encontra.

Pois enquanto esse Grande ABC está aí a nos esfregar nas fuças todos os problemas e eventualmente também muitas soluções inovadoras, o jornal vive na mais absoluta inanição editorial. Preferem seus profissionais fechar os olhos, contaminados pela grandiloquência de um passado ainda recente de que devemos nos ombrear às coberturas do noticiário nacional e internacional.

Ou acordamos para esmiuçar esse Grande ABC instigante com que nos defrontamos após o período mais dantesco das atividades econômicas, ou seremos literalmente soterrados pelo desconhecimento do que se passa em nossas próprias fronteiras.

Seria trágico não fosse estúpido admitir que às nossas barbas, em 840 quilômetros de território regional, as grandes alterações históricas se passam sem que o veículo de comunicação que lhe emprestou o nome se tornasse capaz de relatar criteriosamente os fatos, de elucidar dramas, de tematizar prioridades, de conjecturar propostas, de cobrar ação de todos que estão encastelados nas frondosas árvores do poder político, econômico e social.

Haveria absurdo maior para a mídia mais tradicional e poderosa do Grande ABC senão continuar observando com certo desdém — quando não com deliberado desinteresse — o que se passa em sua geografia?

Que tiro mais estúpido no próprio pé editorial e econômico para a companhia senão a irritante teimosia de seguir o haraquiri de caricaturizar os jornais paulistanos, em vez de esculpir a própria cara?

Até quando nossa cultura — e entenda-se cultura nesse caso como o conjunto cumulativo de características sociais e econômicas de nossa região — estará subordinada ao intelectualismo obtuso que aprofunda nosso Complexo de Gata Borralheira mirando a Cinderela da Capital, onde estão os jornais diários mais importantes do País?

Que gataborralheirismo é esse — e trato disso no livro específico sobre a fragmentação social do Grande ABC — que, na tentativa de negar, mais resplandece servilismo à Capital? E quem são os contestadores do Complexo de Gata Borralheira — esse é o nome que dei à obra — senão sabujos da Capital que se fingem de regionalistas?

O que vale mais nessas alturas do campeonato: um regionalismo realístico, que não esconde nosso gataborralheirismo mas faz tudo o que é possível para mudar o enredo com pressupostos de modernidade, ou um falseamento do conceito de contemporaneidade que no fundo, no fundo, não busca outra saída senão subjugar nosso gataborralheirismo à predisposição de impor — muitas vezes acriticamente — as supostas qualidades da Capital?

Neste estudo-proposta, questões vinculadas à regionalidade serão suficientemente expostas. É sobre esse eixo que vai girar a roda de transformações conceituais no campo editorial que definirão os agregados de valor na esfera econômica.

Traduzindo em miúdos: a mesma estrada de conteúdo que colocaria o jornal na trilha de aproximação mais concreta e sustentável com os leitores permitiria o assentamento de bases estruturais para conquistas econômicas. Essa confluência sem falsas aparências deve mover nossos passos na condução da reviravolta editorial com consequentes ganhos comerciais. Por isso, é imperioso o relacionamento prospectivo entre as duas áreas vitais à consolidação do produto: o editorial e o comercial.

Nossa experiência jornalística e empreendedora à frente da Editora Livre Mercado, onde desempenhamos funções executivas que se consolidaram em torno dos insumos editoriais como as que objetivamos agora nessa nova empreitada, nos ensinou que a animosidade entre editorial e comercial é uma estrada da perdição só frequentada por quem olha atavicamente para o próprio umbigo.

Não temos o menor receio — muito pelo contrário — de imantar as relações com os demais departamentos da companhia, porque os valores que determinarão a interatividade corporativa estarão ancorados nos conceitos que preparamos para o núcleo de insumos editoriais do jornal.

Sempre foi assim na Editora Livre Mercado. Os eventuais exageros cometidos pelo Departamento Comercial da Editora Livre Mercado sempre foram olimpicamente neutralizados editorialmente num aprendizado frequente.

Reconhecemos as dificuldades que encontraremos em traçar novo perfil editorial para um produto que — agora me manifesto como jornalista — há muito tempo deixou de justificar a própria denominação. Muitos dos problemas que vivenciamos no Grande ABC de uns tempos a esta parte estão situados na zona de aderência do jornal. Reações e inações de uma sociedade declaradamente à deriva resultam de coragem e identificação editorial que o jornal há muito abdicou.

Tem-se a impressão — agora me manifesto também como leitor — que o Diário do Grande ABC sofre com a ameaça de uma permanente espada que lhe cortaria a cabeça e lhe retalharia o resto do corpo. Como justificar, em contrário, posicionamentos erráticos, quando não inconsistentes, e dúbios, quando não omissos?

Somente a prática nos dará mais respostas a perguntas e afirmações que decidimos não provocar neste estudo-análise. Nada é mais emblemático do que o cotidiano de muito trabalho. A função de analista da situação que encontraríamos no campo de batalha em que se constituiria a formatação de um produto regionalmente forte terá de ser nos primeiros tempos igualmente cumulativa de operacionalidade.

Dependeremos de informações de terceiros mas fundamentalmente dos nossos próprios olhos e juízo para aferir desconfianças ou poucas certezas com respeito à estrutura funcional do jornal. Não bastasse a demolição de eventuais encastelamentos antiprodutivos, teremos de espichar olhos e preparar ouvidos para o atendimento das demandas externas dos consumidores de informação.

Nada, entretanto, deverá obstar nosso caminho. A retaguarda dos acionistas, plenamente conscientes de que esse é um projeto de reconstrução do produto, não nos deixa dúvida sobre o resultado final.

Teremos pelo menos 50 meses iniciais para elevar o produto às raízes de sua própria criação há quase 50 anos, ou seja, voltado à comunidade do Grande ABC. Com a impressionante diferença de que agora vivemos num mundo globalizado que nos cobra múltiplas atenções.

Por isso não podemos perder o foco de um regionalismo contemporâneo. Acreditamos francamente na enorme possibilidade de iniciar e encerrar de forma vitoriosa a contagem regressiva dos 50 anos deste veículo de transcendental importância para a comunidade do Grande ABC.

Será uma tarefa árdua, desgastante, maratonística. Não haverá vaga para acomodados. Da mesma forma que não sobrará espaço aos interlocutores da comunidade cuja percepção da realidade crônica do Grande ABC se esgota no levar vantagem em tudo e no compromisso social de quem se descontrai num parque de diversões.

Este é apenas o começo de um provavelmente único plano plurianual editorial concebido na história do Diário do Grande ABC. Através deste documento, creiam, saberemos onde registrar nossos passos nos próximos tempos. Da mesma forma, saberemos onde também deverão registrar seus passos todos aqueles que representam o que chamaria de esgarçado capital social da região — os governos locais, os agentes econômicos e os representantes sociais.

Ou seja: a missão histórica que se apresenta a todos que se envolverem nesse projeto ultrapassa a corporação do Diário do Grande ABC porque se sintoniza com os anseios de uma comunidade aparvalhada com as consequências macroeconômicas. Sem paternalismo, sem tutela, porque não poderemos repetir os erros do passado. Somos um produto vocacionado a agitar a sociedade regional. Essa missão precisa ser desempenhada com denodo e perseverança.



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