Regionalidade

Um paradoxo que incomoda
demais o Fórum da Cidadania

DANIEL LIMA - 19/11/1997

Um workshop realizado no Sesi de Santo André, no início do mês passado,
procurou acrescentar faróis de milha às luzes do Fórum da Cidadania. Depois de
três temporadas de atuação, quando iniciou rumorosa revolução
político-institucional na região, a ponto de revitalizar o moribundo Consórcio
Intermunicipal, de provocar o surgimento da Câmara Regional e de estimular a
reativação do Fórum Permanente de Vereadores, o Fórum da Cidadania vive situação
paradoxal: está em gradual processo de fortalecimento, mas a maioria das
entidades que o compõem continua tão frágil em representatividade como antes da
iniciativa que lhe deu origem, em 1994, quando foi lançada a campanha Vote no
Grande ABC.


Esses elos quase todos fracos de uma corrente vanguardista em termos de
modelo de representatividade social precisam se reciclar, como bem lembrou o
jornalista Alexandre Polesi, diretor de redação do Diário do Grande ABC e
integrante do Conselho Consultivo do Fórum. Alexandre fez rápida e precisa
retrospectiva histórica do Fórum da Cidadania, numa intervenção que serviu
sobretudo para inocular a cultura da instituição nos representantes de entidades
recém filiadas.


As novas filiações ao Fórum da Cidadania — são quase 100 entidades e o
coordenador-geral Marcos Gonçalves quer engrossar a lista com mais 200 — vão
exigir sistemática pregação em favor da continuidade das decisões consensuais,
espécie de cláusula pétrea que os novatos demoram a compreender. Tanto que foi
preciso que o Fórum escalasse seus mais antigos colaboradores para discursar em
favor das decisões unânimes. Os argumentos são tão consistentes que os poucos
focos de dissidência foram debelados rapidamente.


A consensualidade está para o Fórum da Cidadania como a polêmica para o
Congresso Nacional. Só para que se possa compreender bem a questão, os objetivos
são distintos. Enquanto no Congresso, ou em qualquer Legislativo, a
representatividade é fragmentada por interesses difusos, conflitantes e muitas
vezes improdutivos, no Fórum só tem lugar temário que atenda indistintamente a
todos os grupos corporativos e sociais que o constituam.


O conceito de consensualidade, entretanto, não tem sido utilizado de forma a
permitir conveniências. Eventuais encaminhamentos que tenham interesses
específicos são detectados de imediato pelos heterogêneos sensores das
plenárias. A estabilidade de emprego do funcionalismo público não é privilégio
que passe pelo crivo do Fórum, por mais que o autor da proposta argumente. A
campanha pela recuperação da Avenida dos Estados e o programa de arrecadação de
1% do Imposto de Renda para crianças e adolescentes, abraçado pela Câmara
Regional, constituem bandeiras do conjunto das entidades e como tal não
encontraram dificuldades de aprovação.


É essa particularidade que torna o Fórum da Cidadania laboratório de
democracia que só quem o frequenta com regularidade consegue compreender. Não
foram poucas, e nem o serão no futuro, as tentativas de inclusão de interesses
específicos de uma categoria no selo de representatividade do Fórum. Não se pode
catalogar essas estocadas como oportunismo e má-fé deliberados. A melhor
justificativa é que os vícios do corporativismo de um País forjado em guetos
afloram até mesmo em ambientes imunizados pela consensualidade. O Fórum tem
apresentado poderoso efeito profilático, com a vantagem suplementar de que, em
vez de afugentar os agentes corporativistas mais exacerbados, transforma-os em
representações cooperativas.


Por mais que tenha a fazer, e não há quem subestime a avalanche de problemas
do Grande ABC que exigem intervenção da sociedade organizada, o Fórum da
Cidadania contabiliza créditos em profusão. Os recursos exíguos e a estrutura
ainda pouco profissional, apesar de ter reduzido os percalços organizacionais
com a contratação de dois executivos operacionais, são compensados pela força da
logomarca, que pode ser traduzida como abre-alas decisiva.


O relacionamento do Fórum com os poderes constituídos ou informais, casos das
Prefeituras, das Câmaras Municipais, do Consórcio Intermunicipal e da própria
Câmara Regional, é tão confiável quanto a solidariedade entre corintianos e
palmeirenses. A convivência está geneticamente ameaçada porque a matéria-prima
do Fórum é o consenso, o suprapartidarismo, enquanto aquelas instituições, todas
com envolvimento político-partidário, dependem de votos para manter seus
titulares.


A rivalidade e o cooperativismo compõem, dessa forma, uma sinfonia de
ambiguidade intrínseca entre o Fórum e os setores públicos. Nada mais lógico,
porque o Fórum da Cidadania só existe no organograma informal de representações
da região porque se descobriu, 40 anos depois da avalanche de investimentos
econômicos a partir da indústria automotiva, que a classe política do Grande ABC
viveu a mesma situação da moça triste da música de Chico Buarque de Holanda:
ficou na janela, vendo a banda passar.


A banda do esvaziamento econômico e do embrutecimento social passou sem que
as ufanistas autoridades públicas de plantão ao longo desse período se dessem
conta de que uma bomba-relógio fora acionada.


A atuação do Fórum da Cidadania no ano que vem deverá ampliar-se. Uma das
principais tarefas é continuar a estimular o entrelaçamento do tecido regional,
cujos avanços este ano são significativos. Como 1998 é ano eleitoral, a Câmara
Regional e o Consórcio Intermunicipal podem sofrer turbulências. São candidatos
e partidos disputando vagas na Assembléia Legislativa, no Congresso Nacional e
no Palácio dos Bandeirantes, além da presidência da República.


Além disso, o Consórcio Intermunicipal deverá escolher novo presidente, em
substituição a Celso Daniel, de Santo André. Maurício Soares, prefeito de São
Bernardo, o Município economicamente mais forte da região, é candidato natural.
Teme-se que ele, por força das eleições e de pertencer à mesma sigla do
governador Mário Covas, partidarize demais essa instância de deliberações
regionais.


Luiz Tortorello, prefeito de São Caetano, significa outro tipo de problema,
ou de problemas: não está alinhado politicamente ao governador do Estado, o que
poderia dificultar os entendimentos na Câmara Regional, e tem fama de
centralizar demais as decisões, algo incompatível com o coletivismo do
Consórcio.


É por isso que o Fórum da Cidadania é visto como espécie de âncora
institucional do Grande ABC. A permanente sombra que deita sobre os
administradores públicos ganha a forma de espada a ameaçar cabeças ainda
reticentes à integração regional. A ciumeira que o Fórum provoca em determinados
homens públicos que ainda não compreenderam sua importância institucional é um
sentimento contraditoriamente benéfico, porque mexe com os brios de quem, por
estar investido do cargo através de voto popular, se sente ultrajado por ter que
dividir os holofotes de temas sociais e econômicos com agentes informais. Daí, a
reação de agir administrativamente para não dar espaços a críticas. Exatamente o
que as lideranças do Fórum mais comemoram.


Por enquanto, os três anos de Fórum da Cidadania foram centrados
principalmente na atuação dos políticos, principalmente dos Executivos
municipais. Mas, se depender do coordenador-geral Marcos Gonçalves, outros
gargalos serão atacados. Durante o workshop ele citou especificamente o
Judiciário e as Polícias Militar e Civil como instâncias que precisam ser
igualmente observadas.


Marcos Gonçalves bateu forte numa instituição reconhecidamente aquém dos
anseios da população, mas cometeu o equívoco de particularizar. Ou seja: ele
cantou a música que a plenária do Fórum da Cidadania aprovou de imediato, mas
errou no ritmo.
Essa interpretação acabou sufocada por estridente reação nas
páginas do Diário do Grande ABC, três dias depois do workshop.


O juiz e diretor do Fórum de São Bernardo, Alex Tadeu Zilenovski, entendeu
como generalizadas as afirmações de Marcos Gonçalves O coordenador-geral do
Fórum da Cidadania disse literalmente: “Os representantes do Judiciário ainda
não foram contaminados pela necessidade de modernização, prestando serviço de
péssima qualidade, de forma lenta e morosa, além de receber salários que estão
além da realidade brasileira”.


O magistrado de São Bernardo contestou. Disse que faltou fundamentação a
Marcos Gonçalves. “Esse senhor desconhece a realidade dos juízes, pois ninguém
ganha muito”. E completou: “Um juiz paga Imposto de Renda, paga escola para os
filhos, paga plano de saúde e paga carro como qualquer outra pessoa. Ou seja,
não existe diferença entre os juízes e as demais profissões. Fico chateado com
informações vazias”.


O juiz e diretor do Fórum de Santo André, Ricardo Pessoa de Mello Belli,
também fez contestações a Marcos Gonçalves. “Ele deveria procurar se inteirar
sobre inúmeras dificuldades estruturais que enfrenta esse Poder de Estado, pese
o desempenho da maioria de seus componentes. Verificará assim, até por
informações de entidades que integram o Fórum da Cidadania, que o Judiciário tem
conhecimento de suas deficiências e que muito faz para superá-las” — afirmou.


Até mesmo um representante do Fórum da Cidadania, o advogado Antonio Carlos
Cedenho, presidente da subseção de Santo André da Ordem dos Advogados do Brasil,
engrossou o coro de vozes discordantes contra Marcos Gonçalves. “O comportamento
do coordenador foge ao espírito do Fórum” — diz um dos trechos de documento
enviado ao comandante do Fórum da Cidadania.


O escorregão de Marcos Gonçalves não foi inteiramente negativo para o Fórum,
sobretudo porque numa nova plenária ele e Antonio Carlos Cedenho chegaram a bom
termo. Marcos reconheceu que errou na forma de sugerir uma discussão sobre um
assunto que há muito causa desesperança ao conjunto da cidade. O encaminhamento
prévio de debates sobre a atuação do Judiciário, da Polícia Militar e da Polícia
Civil é o trâmite normal do Fórum.


Um ritual que Marcos acabou por atropelar ao expressar-se sobre o assunto de
improviso. Cedenho também admitiu ter exagerado por ter escolhido as páginas da
imprensa para defender a consensualidade do Fórum da Cidadania sobre tema tão
candente.
Marcos Gonçalves pode ter sido precipitado, mas também foi corajoso
porque tocou em feridas que estão abertas há muito tempo.


Num artigo publicado no mesmo Diário, de 16 de novembro, 10 dias depois do
bombástico workshop do Fórum, João Antunes dos Santos Neto, juiz de Direito em
Santo André, listou série de problemas que o Poder Judiciário enfrenta e que
justificam, com sobras, o envolvimento da sociedade organizada.


Disse o juiz que somente neste ano foram distribuídos em Santo André mais de
20 mil processos cíveis para apreciação e encaminhamento de parte de somente
nove juízes. A situação é crítica quando se sabe, através do próprio magistrado,
que cada juiz de Santo André tem sob sua responsabilidade perto de 18 mil
processos em média, contra 300 na Alemanha.


O juiz de Direito de Santo André também fez críticas à falta de recursos do
Poder Judiciário, que vive em permanente precariedade. Falou dos vencimentos
líquidos iniciais para a carreira, de R$ 2,5 mil mensais, e criticou a
legislação arcaica por impedir melhor e mais rápido desempenho nas decisões.


Polêmica sobre o Judiciário à parte, e que quebra a consensualidade do Fórum,
o que já está deliberado para o ano que vem, embora sem qualquer detalhamento, é
a segunda etapa da Campanha Vote no Grande ABC. Para Marcos Gonçalves, já não
basta mais a quantidade de representantes da região na Assembléia Legislativa e
na Câmara Federal. Como resultado da campanha de 1994, foram eleitos oito
deputados estaduais e cinco federais, um recorde na história política da região.
Marcos Gonçalves quer aliar quantidade e qualidade. Uma equação complicada
porque a pífia representatividade legislativa externa da região decorre
principalmente da miniaturesca relação de forças decorrente dos deformados
critérios que privilegiam, especialmente em Brasília, bancadas do
Norte/Nordeste, cujos eleitores valem muito mais que os paulistas.
A segunda
etapa da campanha Vote no Grande ABC não deixa de ser, também, novo risco que
ameaça o Fórum. Favorável à depuração da classe política regional, a campanha
poderá acrescentar azeitona na empada de candidatos pouco afinados com os
próprios princípios ético-morais do Fórum. Ou seja, muitos concorrentes poderão
pegar carona eleitoral se vetores de qualificação não forem suficientemente
explícitos para separar o joio do trigo. Enfim, Vote no Grande ABC já não diz
tudo. Vote Certo no Grande ABC ou algo parecido pode levar o eleitor a refletir
mais sobre o destino de seu voto.


O Fórum da Cidadania está prestes a ingressar no quarto ano de atividades.
Foi em 28 de julho de 1994 na Fundação Santo André, durante o lançamento do
Manifesto do Grande ABC, um fortíssimo puxão de orelhas na classe política
regional, que o Fórum começou a se consolidar como nova instância de
representatividade da região. A caracterização como instituição só ocorreu em 16
de março de 1995, quando uma plenária de 64 entidades da sociedade civil decidiu
formalizar a continuidade da mobilização pelo Vote no Grande ABC, iniciada
exatamente um ano antes.


A transformação do Vote no Grande ABC em Fórum da Cidadania, em julho de
1994, foi a salvaguarda encontrada contra as armadilhas de desmobilização
embutida na intermitência da campanha em favor de votação nos candidatos da
região, projetada para se repetir apenas quatro anos depois, exatamente em 1998.
Daí a nova roupagem institucional e operacional foi o passo mais
lógico.
Marcos Gonçalves é o terceiro coordenador-geral eleito pela plenária
do Fórum da Cidadania. Ele assumiu o cargo em março último e deverá ser
substituído igualmente em março próximo, porque o mandato é de apenas um ano e
não comporta reeleição. O empresário e médico Fausto Cestari, diretor-titular da
Regional do Ciesp (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo) em Santo André,
foi seu antecessor. O executivo privado Wilson Ambrósio da Silva, então
presidente da Acisa (Associação Comercial e Industrial de Santo André), foi o
primeiro coordenador-geral eleito pela plenária.


A eleição de Wilson Ambrósio e sua sucessão por Fausto Cestari obedeceram a
sincronismo natural. Afinal, Wilson Ambrósio foi um dos líderes do movimento que
culminou com o Vote no Grande ABC. Em 1993, ele se reuniu com outros presidentes
de Associações Comerciais e Industriais da região, no caso Valter Moura (São
Bernardo), Filipe dos Anjos Marques (Diadema) e Flávio Rodrigues de Souza (São
Caetano), para debater inicialmente temários comuns das entidades, dando-lhes
tratamento regional. Sobressaia a questão da representatividade
político-institucional, historicamente frágil.


Foi o passo que faltava para deflagrar conjunto de medidas cujas extensões
nem eles mesmos imaginavam. Fausto Cestari também acabou se envolvendo no
movimento; nas reuniões seguintes foram sendo recrutados novos atores sociais e
econômicos. Inclusive sindicalistas. A região vivia momentos delicados, em que o
esvaziamento econômico era latente mas pouco admitido e o sindicalismo não
dividia a mesma mesa de reuniões com representantes do capital.


O secretário-geral do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Carlos Alberto
Grana, foi um dos primeiros a apoiar o movimento de integração. Profissionais
liberais também foram requisitados, caso de Silvio Tadeu Pina, presidente
regional do Instituto dos Arquitetos do Brasil, entre tantos outros. Silvio e
Grana são teoricamente, os candidatos mais prováveis à sucessão de Marcos
Gonçalves.


O Fórum da Cidadania reúne 11 grupos de trabalho: Articulação Política,
Educação, Meio Ambiente, Justiça, Planejamento Urbano, Criança e Adolescente,
Desenvolvimento Econômico e Micro Empresas, Saúde, Cultura e Patrimônio
Histórico, Segurança, Esportes Lazer e Turismo. A relação de atividades
desenvolvidas pelo Fórum é extensa. Vai da participação no Movimento Imigrantes
Livre, contra a cobrança de pedágio nos acessos da Rodovia dos Imigrantes, ao
seminário O Papel das Universidades no ABC, realizado no Imes (Instituto
Municipal de Ensino Superior de São Caetano).


As profundas mudanças ocorridas nos últimos 40 meses no Grande ABC,
exatamente a partir do Fórum, deverão levar as lideranças da instituição a
programar novo workshop no início do ano que vem. A programação está em fase de
articulação, mas o eixo provavelmente estará fixado numa minuciosa reavaliação
da Carta do Grande ABC, documento que traçou as linhas-mestras da atuação do
Fórum. Além disso, as questões envolvendo Judiciário, Polícia Militar e Polícia
Civil também vão merecer capítulo especial.


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