Há cães de aluguel de todos tipos e raças. Alguns andam em grupo. Outros preferem o isolamento completo. São fiéis às respectivas origens. Geralmente servem a patrões espertos que não assumem riscos de se expor publicamente. Exatamente por isso são cães de aluguel. Há os bem pagos, que recolhem generosas rações em espécie. Outros também se locupletam corporativamente, com a ocupação dos principais degraus da hierarquia. Unem, assim, o útil do filé mignon de todos os dias ao agradável da supremacia organogrâmica. São cães de aluguel que se transformam em donos do pedaço. Donos do pedaço é força de expressão, porque não há cão de aluguel que seja dono da própria fuça quando ouve o silvo de quem lhe mata a fome.
Muitos desses cães de aluguel não se dão conta do que são porque por toda a vida sempre fizeram a mesma coisa. Como estão institucionalizados como cães de aluguel, embotaram os sentidos e confundem personalidade própria com personalidade terceirizada. Esses cães de aluguel geneticamente deformados pelas circunstâncias, entretanto, sabem que não são donos do próprio focinho, mas, protegidos, ladram, ladram e ladram com a voz de ventríloquos.
Os cães de aluguel vira-latas obedecem rigidamente ao conceito de fidelidade. Quem lhes garantir as migalhas do dia-a-dia verá o rabo do servilismo abanando sem parar. Pode ser um dono temporal. Hoje um, amanhã outro, um terceiro depois, não importa. Para cada um o vira-latas será sempre festivo mas pouco ambicioso em garantir o futuro. O que interessa é a comida do almoço. Qualquer comida, não importa. Do jantar tratará mais tarde, seja quem for o novo patrono a se apresentar com um mísero pão velho de uma missão qualquer para surpreender algum desafeto. Os vira-latas não fazem mesmo qualquer exigência nas refeições. Se necessário, esquecem do café da manhã, desde que se lhes acene pelo menos com o almoço. Mesmo que seja o almoço do dia seguinte, porque os vira-latas estão preparados para ouvir o som rouco do estômago da consciência. Eles vivem da precariedade material, subproduto da ingenuidade intelectual. Satisfazem-se com qualquer coisa, reiteram sempre. Só não querem morrer de fome. Basta a pecha de escória da sociedade dos animais irracionais.
Os cães de aluguel conhecidos como poodles são empavonados. Esmeram-se no vestir elegante, na pose programada, na presença em eventos da comunidade mais bem aquinhoada. Nada da maledicência dos próprios patrões afeta a auto-estima dessa raça que vive essencialmente das aparências. Eles sabem que seus donos lhes devotam alguns ossos de respeito porque eles, os poodles, conseguem se arrumar entre as peças de uma plumagem material que exibem com naturalidade. Por isso, reconhecem, vivem essencialmente das aparências. A vantagem que oferecem a todos que lhes estendem a coleira da submissão é que são dóceis, aparentemente inofensivos. Só aparentemente, porque eles sabem usar as garras e os dentes com delicadeza tamanha que, aos desavisados, as atitudes parecerão elogios. Os poodles fazem tudo para parecer espelhos de seus tutores. Frequentam com tanta destreza as altas rodas políticas, econômicas e sociais que muitos os identificam como seus donos de fato. E nem se pode condenar os incautos, porque os poodles assemelham-se mesmo aos donos muito além da elegância insuperável de vestir e dialogar. Eles são semelhantemente desprovidos de engenhosidade cerebral. Vivem do bom viver, espécie de não viver.
Os cães de aluguel da família dos dálmatas são alegres, festivos, animadores de encontros e reuniões. É impossível deixar de tratá-los bem. Eles são extremamente agradáveis e jamais deixam qualquer resquício de que tenham caráter duvidoso. Pelo contrário: eles remetem a todos um grau de sentimento que beira à intimidade precoce. São familiares, por assim dizer. Maldade os dálmatas não têm. Ouvem tudo e geralmente balançam a cabeça em sinal de concordância compulsória. São avessos a contrariar os interlocutores. Por mais injúrias e injustiças que eventualmente ouçam nas rodinhas das quais são frequentadores contumazes, nada os abala em defesa de quem quer que seja. Os dálmatas nasceram, cresceram e vão morrer do mesmo jeito: olhando para todos com a candura de quem está eternamente à espera de um milagre. O milagre do cessar o efeito anestésico de parecerem animais de outro mundo, do mundo do faz-de-conta-que-não-é-comigo.
Os cães de aluguel da família dos bassets são um caso à parte. Eles registram seus momentos coletivos expondo o paradoxo da calmaria e da revolução. Céus e infernos frequentam suas atitudes mais simples. Num momento podem estar num canto, pensativos. De repente, sem nada que justifique tanta transformação, lá se lançam em traquinagens. Recolhem na suavidade as informações que repassam com estardalhaço. São suficientemente inteligentes para atuarem nesses dois mundos antagônicos: no mundo do recolhimento metódico da carga de alimentos nem sempre descontaminados de idiossincrasias e no mundo do descarregamento de um caminhão de melancias de segredos violados. Esses bassets são um perigo. Parecem saltar, num único segundo, do conforto e do relaxamento de um divã de psicanalista para uma intrépida e agressiva pista de skate.
Os cães de aluguel da família dos boxers não têm muito prestígio na sociedade animal porque parecem o que não são quando deveriam ser o que exatamente parecem. O problema é que parecem ferozes, destruidores. Mas, latidos dos latidos, são gentis, elegantes, prontos para fazer a felicidade de quem lhes garantir bóia generosamente preparada. Os boxers têm características pouco amistosas. Parecem estar a um salto do ataque. À primeira vista não são confiáveis. Aqueles que desvendaram suas características estão mais preparados para descartá-los de seus intentos nada nobres, porque os boxers são pacificadores, colocam panos quentes onde o limite do incêndio tem a distância de um fósforo. No dia em que a comunidade preocupar-se mais em somar do que em dividir, os boxers podem ser requisitados. Com isso, a cotação de seus dotes ganhará as alturas.
Os cães de aluguel da família dos pinchers são terrivelmente surpreendentes. São preventivamente invocados por natureza. Tratar com eles é algo tão desafiador como se enfiar no globo da morte sem truque cinematográfico. Os pinchers são rabugentos, esbravejadores. Os donos dos quintais sociais que se utilizam dos pinchers são pouco habilitados ao jogo da sedução e da investigação, porque os pinchers são indesejados pela frequência com que rosnam problemas que atribuem a terceiros mas que jamais fizeram absolutamente nada para tentar resolver. Não é bom negócio contar com eles para prospectar terrenos alheios, tentar disseminar a discórdia, generalizar o caos, porque os pinchers são tão frequentemente detratores que acabam por perder a credibilidade da maledicência. Sim, porque maledicente de verdade precisa, entre outros temperos, atuar de forma homeopática. Quando banaliza os ataques a um determinado alvo sem a respectiva fundamentação, vira carne de vaca. E nada pior para os cães de aluguel do que virar carne de vaca. Eles preferem os bovinos abatidos e cortados em graúdos nacos.
Por fim, entre as piores espécies de cães de aluguel eis que encontramos a família pitbull. Esses parecem exatamente o que são e não fazem questão alguma de se travestirem de bom-mocismo. São fidelíssimos a seus donos, embora de vez em quando cheguem ao extremo da fidelidade e caiam no canibalismo (ou cãonibalismo) de provar o quanto são intestinamente agradecidos pela reciprocidade que sempre alcançaram, e acabam por morder seus benfeitores. Os pitbulls são tão mecânicos ao assumir a personalidade recôndita ou explícita de seus patrões que, afora a aparência sempre diversa, porque geralmente não têm finesse, seus gestos, entonação vocal e ações se confundem. É claro que o público não toma conhecimento desse acasalamento de personalidades. Se é verdade que os pitbulls são publicamente extravagantes, espalhafatosos e desbocados, como se fossem autênticos e não cópias, seus patrões, os originais, usam-nos exatamente para sustentar a imagem de equilíbrio, de racionalidade, de grandeza pública. Nada melhor que uma réplica perfeita terceirizada na fuça de um cão de aluguel, conservando-se a original a salvo da sociedade pouco informada.
Como se verifica, é praticamente impossível reunir essas espécies de cães de aluguel num mesmo canil social. Eles convivem fragmentadamente na comunidade. Alguns até se aproximam entre si, trocam figurinhas, aperfeiçoam a embocadura das estratégias, ajustam as garras táticas, abanam a cauda das mobilizações, mas não são exemplos de uma irmandade. Cães de aluguel são cães de aluguel. Fiéis a seus donos de interesses geralmente específicos, sempre dispostos a farejar novas oportunidades para saciar a fome de interesses pessoais e, portanto, distantes da grandeza da comunidade.
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