Regionalidade

Um indicador de qualidade
para atrair investimentos?

DANIEL LIMA - 20/10/2003


Não se falou mais sobre o assunto, mas convém ficar antenado, como dizem os jovens. Os prefeitos dos sete municípios do Grande ABC estão discutindo detalhes para a criação de um indicador oficial do nível de qualidade de vida na região, conforme informou o Diário do Grande ABC em 9 de setembro último. Desde então, nada mais foi divulgado, salvo equívoco na seleção de matérias a que me dou ao prazer todos os dias, rigorosamente, a partir das 7h30 da manhã, quando apanho cinco publicações diárias na soleira da porta. 


Já deveria ter escrito sobre o assunto há alguns dias, mas outras prioridades foram postergando a medida. Tremo de inquietação quando o poder público se mete a trilhar o caminho estatístico. O índice não tem charme jornalístico algum. IRQVU (Índice Regional de Qualidade de Vida Urbana), preparado pelo Imes (Centro Universitário de São Caetano) bem que poderia ter uma roupagem menos complicada. Quem vai conseguir pronunciar essa marca numa emissora de rádio ou de televisão? Nos jornais, então, vai ser um problemão arrancar um título com tantas letras.


Problemas de acasalamento entre vogais e consoantes à parte, sonoridade também deixada de lado, não é isso o que realmente me preocupa. Segundo o noticiário do Diário, o indicador regional será apresentado de forma semelhante à do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), com notas entre 0 (menor nível de qualidade urbana) e 1 (maior nível). Segundo o coordenador do trabalho, David Garcia Penof, do Imes, o indicador de qualidade de vida terá maior abrangência e será específico para combinar variáveis externas com pesquisa local.


Em elaboração há quase dois anos pelo Imes — sempre de acordo com o Diário do Grande ABC –, o IRQVU (como é sofrível escrever essa sigla) será composto de uma cesta com sete componentes: saúde, educação, qualificação urbana, emprego e renda, segurança pública, saneamento e condições de moradia. O objetivo do convênio é nobre, visto sob a ótica conceitual. O Consórcio de Prefeitos e a Agência de Desenvolvimento Econômico pretendem orientar os técnicos das prefeituras para a elaboração de políticas públicas.


Ora bolas, se é exatamente para isso, por que estou preocupado e inquieto? Querem saber de verdade, sem meias palavras, sem meias-verdades, sem lero-lero nem biro-biro? Querem que eu confesse de público por quê estou encafifado? Pois eu vou contar. Tintim por tintim.


Primeiro porque Consórcio de Prefeitos e Agência de Desenvolvimento Econômico não têm o arcabouço de capital social que tanto prezo. Ou seja: não reúnem representatividade efetivamente participativa da sociedade para, mesmo através de convênio, oferecerem ao público um produto de pesquisa que não cause desconfiança. Basta lembrar as lambanças do economista João Batista Pamplona à frente da Agência de Desenvolvimento Econômico e também as pontualidades de uma administração municipal e outra quando desfilam números insustentáveis. Sem sociedade, é provável que muito se esconda. E que o formato desse medidor de qualidade de vida venha a apresentar vieses incontroláveis.


Querem um exemplo prático de que a imprensa de maneira geral compra gato por lebre sem pestanejar? Pode até ser que não seja gato, mas não custa desconfiar de um release divulgado há três semanas pela Prefeitura de Mauá. Dava-se conta de que algumas dezenas de indústrias estariam se atirando nos braços do Pólo de Sertãozinho. Não havia nada de efetivamente sólido no material de imprensa distribuído e que virou manchetes em vários veículos que garantisse a veracidade das informações. Insisto: podem ser informações corretas, éticas, mas nada até agora assegura esse perfil. E a mídia nem se importou com isso, porque o que interessa à maioria é não perder a oportunidade de dar uma boa notícia.


Interposta essa observação, voltemos ao caso desse indicador de qualidade de vida proposto ao Imes. Acompanhem comigo o que relatou o Diário do Grande ABC na mesma matéria de 9 de setembro: “A prefeita de Ribeirão Pires e vice-presidente do Consórcio Intermunicipal, Maria Inês Soares (PT), disse que a publicação terá objetivo também de divulgar a imagem da região para atrair investimentos externos”.


Então, sentiram o golpe baixo? Se o medidor de qualidade de vida do Grande ABC vai incursionar pelos campos da segurança pública, da saúde, da educação, do saneamento, das condições de moradia, da qualificação urbana, do emprego e renda, e se isso será ferramenta de marketing, está mais do que claro o convite a uma cerimônia de casamento improvável entre a credibilidade e o triunfalismo.


No contexto de compreensão de minha desconfiança sobre esse produto estatístico, não se pode desdenhar o fato de que ainda recentemente a prefeita de Ribeirão Pires procurou levar este jornalista às raias da Justiça porque, como todos sabem, combati duramente no campo conceitual as fantasias estatísticas de João Batista Pamplona.


É claro que não é porque tentava avalizar as fraudes numéricas do pesquisador da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC que a prefeita Maria Inês Soares deva ser condenada por antecipação. Não é isso. Entretanto, como há o pressuposto de atratividade de investimentos estrangeiros a embalar esse novo jogo estatístico, não custa nada ficar de olho arregalado.


Aliás, essa história de reunir dados estatísticos específicos do campo social e econômico — muito mais social do que econômico, na verdade — para seduzir investidores é um aleijão de marketing cujos resultados costumam ser tão consistentes quanto a garantia de que a partir de 2005 o Brasil conseguirá começar a pagar a dívida externa, e não apenas os juros que tanto nos esfolam. É preciso, em suma, ter muita fé.


O problema todo é que dinheiro é tão arredio quanto seletivo e há consultorias especializadas que destrincham pelo menos três centenas de requisitos para definir onde recomendar novas plantas produtivas. Como se sabe, a Lei de Incentivos Seletivos, espécie de guerra fiscal mitigada que os prefeitos do Grande ABC implantaram já há muito tempo, praticamente está virgem. Melhor dizendo: só perdeu a virgindade na própria Ribeirão Pires de Maria Inês Soares, quando ali se instalou uma empresa.


Duvido muito, mas muito, que os quesitos da pretendida pesquisa conciliem com a proposta de atrair investimentos. Como se sabe, vamos de mal a pior em emprego e renda.


Caímos pela tabela em saúde pública sobrecarregada pela leva de desempregados e de rebaixamento de renda da classe média desertora de planos de saúde particulares.


A segurança pública é digna dos indicadores da Baixada Fluminense. As condições de moradia se deterioram em proporções dantescas, especialmente em São Bernardo e Diadema que receberam quase 200 mil novas almas nos últimos nove anos e, por mais que façam, têm sempre mais a fazer.


A educação segue os níveis do País, de quantidade em vez de qualidade. Na área de saneamento básico a população é atendida em níveis elevadíssimos, mas tratamento de esgoto não passa de sonho. Já qualificação urbana é algo que precisa ser conceituado para ser debatido.


Desde que não haja a permear o IRQVU algo excepcionalmente especial de conhecimento a um número muito restrito de especialistas capazes de provar com todas as provas que não temos nada de maravilhoso a sustentar os sete itens elencados, desconfio de que os gestores dessa proposta estão contando com a aparente irreversível incapacidade analítica e questionadora dos meios de comunicação.


Sim, porque se os dados alimentados pela pesquisa forem projetados de forma a confrontar com áreas geográficas menos qualificadas, acabará transparecendo um oásis artificializado, só explicado pelo confronto do concurso de beleza entre uma balzaquiana necessitada de reformas e uma setentona que abusou das noitadas desde a puberdade.


A pronunciada queda das representações municipais do Grande ABC no estudo publicado há alguns dias sobre qualidade de vida (o IDHM da ONU) — portanto, depois do anúncio do Consórcio de Prefeitos — sugere que, se o objetivo é tratar com seriedade os indicadores propostos, que se esqueça a veia marquetológica, porque será um tiro no próprio pé.


Ou se esqueceram que Santo André caiu do 12º para o 93º lugar, que São Bernardo desabou do 14º para o 102º lugar e que os demais municípios desapareceram do radar dos primeiros 400 colocados? E olhem — justiça seja feita — que a leva de atuais prefeitos da região muito fez ao longo dos últimos anos na área social. O drama é que a avalanche é muito maior e que os recursos orçamentários, solapados pela desindustrialização rebaixadora de repasses do ICMS, escasseiam.


Por isso, caros prefeitos do Grande ABC, cuidado com o andor estatístico porque o santo de credibilidade é de barro.


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