Regionalidade

Regionalidade sem ônus
do municipalismo

DANIEL LIMA - 27/11/2003


O tempo provou e comprovou que o modelo de tentativa de instauração de regionalidade no Grande ABC por meio de instituições gestadas e desgastadas nos anos 90 não assegura respostas que o ritmo da globalização exige. Essa constatação pragmática não significa que se deve atirar ao lixo o Consórcio de Prefeitos e a Agência de Desenvolvimento Econômico. Já quanto à Câmara Regional e ao Fórum da Cidadania, não resta dúvida de que se tratam de abstrações. O que fazer, então?


Primeiro e antes de tudo é preciso que as secretarias de Desenvolvimento Econômico sejam elevadas a posições menos submissas nos respectivos organogramas. Enquanto os prefeitos não entenderem que é do coro da economia que sai a correia dos serviços públicos, mais e mais se multiplicarão as dificuldades orçamentárias em colisão com o acúmulo de demandas sociais. As secretarias precisam ser moldadas sob conceitos de empreendedorismo. Portanto, devem romper com o estigma do burocratismo característico da maioria das atividades públicas. Dotá-las de recursos humanos e materiais para procedimentos de guerra contra o esvaziamento econômico é ponto de honra.


A casa econômica regional não pode mais ser cuidada por agentes das prefeituras locais, deslocados tanto para o Consórcio de Prefeitos quanto para a Agência de Desenvolvimento Econômico. Essa migração não conduz a resultados esperados porque os projetos se diluem nas idiossincrasias municipalistas. Acreditar que funcionários públicos pagos com recursos de determinada Prefeitura vestem a camisa regional sem qualquer ranço discriminatório ou protecionista é subestimar as fraquezas humanas. Por mais que se esforcem pela região, os laços de fidelidade corporativa estarão presos à origem do contrato de trabalho. Haverá sempre desconfiança em casos específicos de possíveis vantagens territoriais de acordo com o poder de decisão do profissional envolvido.


Então, depreende-se que por melhores que eventualmente sejam os executivos públicos do setor econômico das prefeituras da região, eles jamais deverão participar do jogo da regionalidade? Claro que não, claro que não. Os conhecimentos específicos de cada território dessa divisão em sete partes não podem jamais ser descartados, sob pena de cometimento de haraquiri regional. O que não pode é que, divididos de fato, embora até se esforcem para parecerem unidos, esses protagonistas sejam alçados à responsabilidade de conduzir as políticas econômicas do Grande ABC. O assessoramento em questões regionais que sugerem intervenções municipais sempre será bem-vindo.


Quem deve, então, tratar da regionalidade? Já escrevemos sobre isso e vamos repetir: essa missão é para consultores especializados em competitividade regional. Gente acostumada a lidar com planilhas que listam até três centenas de quesitos que influenciam nas decisões locacionais de investimentos. Gente que não estará contaminada por interesses localizados e saberá, tecnicamente, recomendar os caminhos mais apropriados para o jogo da sedução do capital. Gente que não enxergará o Grande ABC sob ótica triunfalista, de torcedor que ignora os adversários. Gente que colocará o Grande ABC sob a lupa da racionalidade e que, por certo, acabará por descobrir e fazer aflorar pontos potencialmente interessantes que o fanatismo municipal e o afrouxamento regional são incapazes de identificar.


O que o Poder Público precisa entender nessa quadra do novo século é que o Campeonato de Competitividade Nacional não comporta mais improvisações. Já se foi a etapa em que se investia em determinado território por laços de amizade, de aproximação política, de comodismo funcional. Os tempos são outros e terrivelmente pedagógicos para quem insiste em ignorar as transformações. Não há como manter as raízes de uma empresa em determinada localidade, por mais tradição que registre, quando o torniquete da concorrência aperta e estrangula participação no mercado. A Gráfica Bandeirantes tinha orgulho dos 40 anos em São Bernardo mas, recomendada por consultoria especializada, debandou para Guarulhos porque as condições logísticas, decisivas na definição de custos, lhes eram muito mais compatíveis com os planos de crescimento.


O modelo ideal de competitividade do Grande ABC introduz profissionalismo na cabeceira da pista de decolagem de um vôo que precisa ser refeito depois das barbeiragens de Fernando Henrique Cardoso. E profissionalismo significa enquadrar o Grande ABC nas lentes sensíveis da valorização da pauta econômica. A vagarosidade e a pouca transparência do Consórcio de Prefeitos e a debilidade financeira e estrutural da Agência de Desenvolvimento Econômico não oferecem a mínima garantia de que o trem bala da quebra do parque industrial da região diminuiu de velocidade, quanto mais tenha se preparado para estratégica próxima parada.


Durante o debate de anteontem à noite no Imes (Centro Universitário de São Caetano), quando um dos convidados indagou sobre a melhor maneira de vender o Grande ABC, preocupado que estava com o quadro que pintamos sobre a atomização industrial dos últimos anos, respondi que tremia só de ouvir falar no assunto.


Nossa experiência em vender o Grande ABC se mostrou patética, porque se estendeu o tapete vermelho de mentiras deslavadas e se lançaram holofotes ofuscantes sobre personalidades nefastas ao enriquecimento cultural dos debates.


Como vender o Grande ABC — e o assunto era o aproveitamento da potencialidade do Porto de Santos — se o Grande ABC não se conhece como produto, exceto os automóveis da indústria automotiva, um mundo à parte em nossa geoeconomia? Foi exatamente por não saber como vender o Grande ABC que os aprendizes de feiticeiros estatísticos usaram e abusaram de informações delituosas.


Pobres coitados que imaginam as consultorias especializadas um bando de incompetentes e alienados. Os erros cometidos por uma ou outra consultoria no passado de recursos financeiros abundantes desapareceram na exata proporção da amplitude dos endereços que se abriram à recepcionar novos negócios.


Esse quarto escuro em que se meteu o Grande ABC, ou seja, de não saber exatamente como se virar nestes tempos de globalização, se explica porque não temos engenharia regional, até porque também em nível municipal as condições que se colocam às respectivas secretariais econômicas são quase trágicas.


A alternativa de contratação de especialistas para coordenar o espetáculo econômico regional, assessorados pela comunidade, por empreendedores, por sindicalistas, por acadêmicos, por gestores públicos, se apresenta como absolutamente factível no campo teórico e econômico. A dificuldade é política, como se sabe. Gestores públicos não são exatamente generosos em terceirizar decisões sobre as quais possivelmente imaginarão a perda do direito à paternidade.


A dificuldade de o Poder Público, de maneira geral, entender a dinâmica específica do mundo econômico, explica na maioria dos casos, sobretudo na região, os transtornos orçamentários que acrescentam novas camadas de dificuldades administrativas. O Consórcio de Prefeitos e a Agência de Desenvolvimento Econômico chegam ao ponto de fecharem as portas à comunidade, apropriando-se das questões mais candentes da região. Um comportamento diverso de organismos internacionais cujo nível de transparência e participação deveria servir de exemplo.


A prática de capital social é sugestão que irrita alguns gestores públicos avessos a qualquer possibilidade de compartilhamento institucional. Ao estender o domínio político para o campo da regionalidade, gestores públicos acreditam-se soberanos destas terras. O prefeito Celso Daniel talvez não fosse a única exceção desse figurino conservador, mas bem antes de seu assassinato dizia estar decidido a acrescentar ao Consórcio de Prefeitos espécie de Conselho Consultivo com diferentes expressões da sociedade. Também se projetava modelo semelhante para a Agência de Desenvolvimento Econômico.


Ou o Grande ABC sai o quanto antes do quadradismo institucional em que está metido, em contraponto suicida ao que ocorre em outros municípios de regiões que exercitam desenvolvimento econômico sem preconceitos, ou continuaremos soçobrando.


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