Regionalidade

Carnaval regional

DANIEL LIMA - 09/02/2005

No dia em que regionalidade não for palavrão que desafie o conceito de cidadania convencional por sinal rarefeita no Grande ABC, poderemos sonhar com carnaval regional. Quem sabe até teremos um sambódromo? Quem não acredita, também, que a história regional seja massificada em diversidade temática como enredo das agremiações carnavalescas?


Como acreditar que tudo isso e muito mais sejam possíveis quando o que reunimos como prova maior de regionalidade está no âmbito de consumo, como atestam os números de frequência nos shoppings no Grande ABC, que dão uma sova nos rivais da Capital cinderelesca?


Será que exercemos nossa porção de cidadania regional apenas como consumidores atraídos por marketing profissional e logomarcas reluzentes? Nesse caso, seria justo avocar o conceito de regionalidade quando de fato o bolso, a comodidade, a segurança e a localização falam muito mais alto?


Não vejo empecilho que possa obstar o sonho de um carnaval regional no Grande ABC. Entenda-se como empecilho eventuais raízes municipais que venham a deslocar a escanteio esse possível debate.


O que falta mesmo é sentimento regional também nesse ramal de entretenimento. A própria fugacidade do carnaval, de apenas quatro dias de exibição, pressupõe desmobilização contínua dos eventuais interessados em construir uma Liga de Escolas de Samba do Grande ABC.


Mesmo assim, contrapõe-se assertiva que de fato sustenta a atividade: já a partir de julho os clubes começam a se movimentar, a definir enredos, a preparar fantasias, a organizar alegorias, a aproximar-se dos foliões.


Provavelmente o que falta ao carnaval do Grande ABC sejam dirigentes com olhar mais adiante dos tempos, capazes de, como em outras manifestações culturais igualmente refratárias a nova moldura de integração, derrubarem os muros do autarquismo territorial.


Embora pareça menos importante e, comprovadamente, discriminado pelas classes mais privilegiadas, cujos representantes se mandam para redutos de descanso ou, em minoria, zarpam em direção ao estrelismo de escolas de samba da Capital e do Rio de Janeiro, o carnaval do Grande ABC reúne potencial impressionante se tratado regionalmente.


Mais até que possíveis frutos econômicos de uma manifestação cultural direta e indiretamente geradora de recursos financeiros que lubrificam principalmente os fugidios tributários, o carnaval tem imensa força como ferramenta de disseminação de experiências e conhecimentos municipais e regionais.


A título de exemplo: já imaginaram como seria desafiador aos grupos que concorreriam no projetado carnaval do Grande ABC um temário-eixo que tratasse num primeiro momento do histórico de integração regional? Celso Daniel seria extraordinário objeto de estudos por comunidades que acompanharam sua trajetória pública sem se deter sobre seu valor histórico. E o ainda tão comentado Lauro Gomes de Almeida? Luiz Tortorello não seria um bom tema de uma escola de samba de São Caetano? E o lendário Abraham Kasinski, da Cofap. Samuel Klein, da Casas Bahia?


Quantos outros exemplares de agentes públicos, privados e não-governamentais poderiam saltar às avenidas? O quanto de criatividade não contam os militantes carnavalescos para traduzir esses e tantos outros personagens da história regional de forma que os acadêmicos sempre abstratos jamais alcançariam?


Quem sabe William Dib, decidido a democratizar o Consórcio de Prefeitos, não resolva ampliar o foco de regionalidade? Tentativa anterior, envolvendo parte da elite cultural da região, acabou frustrada. Os dirigentes de carnaval estão acostumados a trabalhar em silêncio o ano inteiro, ou quase inteiro, para embevecer o público na brevidade de desfile de uma hora, se tanto.


Não faltará, evidentemente, quem desclassifique a idéia sob pressuposto de que temos coisas mais sérias e urgentes para cuidar. Por exemplo: a criminalidade que tanto nos incomoda e que nos rouba investimentos produtivos. Verdade. Mas uma verdade pela metade, principalmente porque a variedade de ações voltadas para o integracionismo do Grande ABC não inviabiliza a confluência de resultados.


A dispersão ao longo de décadas após o separatismo político-administrativo estilhaçou a vitrine de unicidade do Grande ABC. Algo que somente a partir de Celso Daniel, no início dos anos 90, foi possível colocar em pauta, mesmo assim de forma intermitente e triunfalista.


A constituição de uma Liga das Escolas de Samba do Grande ABC não é delírio de quarta-feira de cinzas. É apenas um tijolinho a mais no edifício de regionalidade, cuja estrutura está longe da solidez sugerida pelo sistemático mascaramento de cúpula. A sociedade precisa participar do baile com o capital de suas riquezas culturais específicas.


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