Há situações em que é indispensável situar os leitores. É o caso da repartição do ICMS pelo governo do Estado. Fui o primeiro jornalista deste País, na revista LivreMercado, a tocar numa ferida que muitos desconheciam, alguns escondiam porque exigia respostas e uns poucos de fato se preocupavam com as consequências, embora não fizessem nada para estimular mudanças.
A transferência de recursos oriundos do ICMS aos municípios paulistas é genocídio tributário com reflexos dantescos em muitas comunidades. Embora o assunto pareça árido, basta um pouco de atenção para que a compreensão do enunciado seja digerível. Sei que daria mais audiência escrever sobre frivolidades, porque esse é um País de baixo compromisso com o futuro, mas não abro mão da missão que me foi reservada.
Mais intrigante que a persistência do repasse do ICMS grandemente influenciado pela produção industrial, sem levar em conta um peso maior da população, é o desinteresse da classe política. Exceto o deputado estadual Vanderlei Siraque, durante algum tempo reprodutor das críticas deste jornalista, nenhum outro se meteu nessa seara. A explicação talvez seja de que, por temerem eventuais baixas eleitorais, preferem manter o pé no freio da cautela e da sobrevivência individual.
A disparidade entre o peso da produção industrial e da população está na raiz das distorções: são 76% para o Valor Adicionado e apenas 15% para a demografia. Municípios da Grande São Paulo, principalmente do Grande ABC, entraram em convulsão porque associam o pior dos mundos nos últimos 15, 20 anos: rebaixamento vertiginoso da indústria de transformação por conta da evasão industrial em direção ao Interior mais próximo e elevação gradual da população.
Com isso, perderam indiscutivelmente, porque na medida não necessariamente simétrica em que tiveram rebaixamento de repasses do ICMS por conta da contração industrial, receberam novos contingentes de moradores. Se a contabilidade for feita na ponta do lápis, a desgraça não tem tamanho. Já fiz mil exercícios e os revelei aos leitores, ao traduzir os repasses em valores por habitante. É uma calamidade.
Sem que se resolva o nó górdio do ICMS e, sobretudo, sem que as mexidas estejam casadas com a reformulação institucional da Grande São Paulo, com a criação, o planejamento e, principalmente, o financiamento do conceito de região metropolitana, manteremos a atitude de enxugar gelo.
Sei que tudo isso que volto a escrever não é novidade para os leitores mais assíduos, nem o faço por falta de assunto, porque é impossível não ter uma lista de prioridades ao se consumir criticamente montanhas de informações. Entretanto, é indispensável que de vez em quando as autoridades públicas sejam lembradas da obviedade de que o ICMS perpetua distorções distributivas de arrecadação do Estado e acentua a cada temporada a gravidade do quadro social e econômico dos municípios de maior porte, atropelados pela guerra fiscal, entre tantos fatores.
Por isso, quem paga a conta nesses núcleos mais densos acabam sendo mesmo os moradores, conforme mostrou ontem a manchete de primeira página deste Diário, num temário que embora não seja novidade, porque há trabalhos nesse sentido do IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos), sempre é providencial. O aumento da carga de impostos municipais para compensar apenas em parte o refluxo contínuo dos repasses estaduais e federais, principalmente no primeiro caso, relativos ao ICMS, sacrifica o bolso de populações mais duramente atingidas pela quebra da qualidade de vida.
Vivemos, portanto, o pior dos mundos porque as populações que, de uma forma ou de outra têm de sacar recursos para sustentar parte das perdas dos municípios, são as mesmas que menos recebem proporcionalmente dos municípios, por causa do entupimento parcial dos dutos de receitas repassadas.
Para se ter idéia mais precisa do descalabro, basta dizer que o Grande ABC teria de ter arrecadado R$ 427,4 milhões adicionais de repasses do Estado e da União em 2003 para cobrir o buraco deixado pela desindustrialização. Esse dinheiro representa a soma dos orçamentos deste ano de Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra.
Note-se que estou me referindo apenas à diferença ponta a ponta entre o que o Grande ABC arrecadou direta e indiretamente em 1997 e o que recolheu igualmente em 2003, deflacionando os valores pelo IGP-M da Fundação Getúlio Vargas.
Se a conta for retaliada, ano a ano, os valores seriam ainda mais estonteantes e ajudariam a explicar por que o Grande ABC contabiliza mais de 200 mil desempregados, 500 mil moradores sem esgoto e criminalidade alarmante, entre tantas mazelas.
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24/10/2024 UFABC fracassa de novo. Novos prefeitos reagirão?