Não posso deixar de reconhecer algo no Grande ABC destes tempos: melhoramos um bocado em matéria de comportamento público de autoridades e lideranças de diversos calibres.
Vou explicar: houvesse nos anos 1990 e mesmo no início dos anos 2000 um indicador para medir o tamanho dos pervertidos éticos que usurparam espaço na mídia para vender mentiras e destilar ilusões, teríamos atingido o que os antigos chamariam de pícaros do abuso. Não foi por outra razão que escrevi o livro “Meias Verdades”.
Não foram poucas e muito menos tranquilas as batalhas para combater agentes públicos, sociais, econômicos e acadêmicos que vendiam a qualquer preço artigos e declarações para agradar a mídia mais poderosa. Todos estavam em busca de 15 minutos de glórias midiáticas e de um tempo mais prolongado de benesses negociais. O apoio silencioso de uma maioria que prefere a discrição sempre me confortou nos embates com uma minoria tão ruidosa quanto ruinosa.
Valia tudo para os atravessadores atenderem a um posicionamento sob encomenda. Havia sempre um João qualquer a perfilar-se em defesa do indefensável pelo prazer de garantir o nomezinho num artigozinho muito do vagabundo, sem qualquer compromisso com o amanhã, exceto, logicamente, com o amanhã próprio. Como se amanhã houvesse em terra arrasada pela hipocrisia deslavada.
Como as vítimas de Mané Garrincha, industrializador de Joões que o desafiavam nos apertados cantos dos gramados, os Joões do Grande ABC compunham um batalhão de bobalhões que nestes tempos de agora devem envergonhar-se de artigos, textos, declarações e estatísticas dolorosamente, e também dolosamente, conflitantes com a realidade das ruas, das fábricas, das escolas, de tudo que se poderia entender como região.
Pobres daqueles Joões sem eira nem beira de responsabilidade social que se jogavam de mala e cuia nos braços de oportunistas de plantão, fabricantes de besteiras para sustentar os negócios na artificialmente de manchetes fora do contexto.
Pobres desses Joões que, diferentemente dos Joões originais, os Joões de Garrincha, não colaboraram em nada com o espetáculo regional, porque se permitiram papéis de vendilhões, ao contrário dos Joões dos gramados de futebol, vítimas, apenas vítimas, do anjo de pernas tortas.
Ainda outro dia encontrei um desses Joões da vida, ressentido e mal informado como sempre. Lembrei-me do que ele escrevera para agradar o dono de um jornal. Fora ele, esse João, mais um oportunista como tantos outros que, em situações análogas, também se dobraram ao interesse de ocasião.
Entre os desafetos de minha vida profissional, provavelmente aquele João seja o exemplo paradigmático de tantos outros que cruzaram meu caminho com mensagens de conveniência. Olho-o com certa inquietação. Não há nada pior para quem se mete a escrever, mesmo sem ser especialista no assunto, do que atirar ao lixo os poucos escritos, pelo menos os poucos escritos nos quais se omitiu ou se entregou à vadiagem moral sobre os efeitos da metamorfose econômica do Grande ABC.
Tenho por esse João e também por tantos Joões um sentimento de lamentação, porque não deve ser fácil carregar o fardo de letras impressas que testemunham o quanto de idiotice se consolidou.
Possivelmente porque já não há tantos meios à disposição para mensagens enganadoras, o ufanismo regional não se manifesta com a frequência de antes. De vez em quando aparece na praça um ou outro interesseiro para espalhar fantasias, mas basta uma advertência aqui e outra ali para se aquietar.
Mesmo com esse novo quadro, não acredito que o ovo da serpente do servilismo editorial esteja definitivamente sepultado e inutilizado. O que está faltando mesmo no mercado é a doutrina do cinderelismo que se propagou principalmente na última década do século passado, coincidentemente durante o período em que o Grande ABC mais sofreu com as mudanças macroeconômicas. Que doutrina é essa, afinal? Simples: uma ordem unida em defesa da manipulação dos fatos que vão muito além da distorção do noticiário por interesses inconfessos.
Basta um descuido, um brecha, um convite, e, garanto, lá estarão alguns deles de novo a enfileirar argumentos recheados de meias verdades ou mentiras inteiras certos de que a maioria dos leitores não exerce objetividade crítica. No fundo, no fundo, entretanto, principalmente entre os detentores de interesse econômico, qualquer interesse econômico, mesmo que seja um apartamento, a ressonância de mentira adocicada é sempre mais palatável do que a acidez da verdade.
Somente o tempo, senhor da razão, é capaz de colocar tudo no devido lugar. Por isso, na medida em que recuperamos os textos de um passado de jornalismo sério que praticamos com outros jornalistas no Grande ABC, mais nos sentimos confortáveis com a própria consciência de cidadania regional.
Há certos valores sociais que gente sem valor social jamais vai saber reconhecer. Mais que isso: há certos valores sociais que gente sem valor social detesta saber que estão sendo reavivados em páginas públicas, ao alcance de um clique.
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