Regionalidade

O que teremos depois da
Década da Orfandade?

DANIEL LIMA - 11/01/2010

Não tenho a menor sombra de dúvida de que a expressão que mais se aproxima da realidade do Grande ABC entre os anos 2000 e 2009 é Década da Orfandade. A dúvida que tenho é o que virá nesta nova fornada do calendário gregoriano que se iniciou neste 2010 e se seguirá até 2019.


O que nos reserva o futuro regional? Já está na hora de reação, porque o poço tem secado faz um bocado de tempo. Depois da Década da Industrialização nos anos 1950, passando pela Década da Consolidação nos anos 1960, chegamos à Década do Inconformismo nos anos 1970, atingimos a Década do Estremecimento nos anos 1980, até alcançarmos a Década do Esvaziamento nos anos 1990. Depois da Década da Orfandade, o que teremos? — insisto na pergunta.


Teremos finalmente a Década da Recuperação?


Ou viveremos mais um longo capítulo de derrocadas com a Década da Frustração?


Talvez fosse desnecessário, mas não custa repetir que tudo a que me refiro se prende ao Grande ABC de sete municípios e de 2,6 milhões de habitantes. Não vejo Município por Município quando se trata de qualquer coisa que faça referência ao Grande ABC. Exceto quando o individual for importante para o coletivo.


Meus olhos, portanto, são como os olhos do consumidor, do trabalhador, do investidor. Grande ABC é uma coisa só.


O problema é que, forçados pelas circunstâncias de que têm de responder aos respectivos eleitores, os administradores públicos não dão muita bola para o que ocorre além das fronteiras municipais. Sem massa de regionalistas minimamente respeitável, jamais eles se mobilizarão de fato além-fronteiras.


Por que Década da Orfandade?


A resposta é temporalmente apropriada, porque o enquadramento dos anos que começaram em 2000 e se encerraram em dezembro último se refere à luminosidade do homem público que mais pensou e trabalhou em torno do Grande ABC — até que se cansou antes mesmo de morrer. Completa-se na próxima quarta-feira o oitavo aniversário da morte física de Celso Daniel.


E apesar de todas as tentativas, a morte doutrinária está longe de ocorrer. Pelo menos resistirá enquanto houver um único regionalista que tenha vivido a experiência pessoal ou profissional de acompanhar os passos de um Celso Daniel que despertava tanto respeito, admiração e entusiasmo quanto inveja e idiossincrasias. É sempre assim e será sempre assim a reação dos medíocres de carteirinha.


O Grande ABC viveu uma Década da Orfandade porque os legados de regionalismo de Celso Daniel ficaram relegados a terceiro plano. Algumas ações públicas caricaturais provam que não adianta nada o repasse da fórmula da macarronada da Nona sem a Nona na cozinha.


Celso Daniel deixou as estruturas de um Grande ABC que precisava se encontrar com o sentido de regionalidade mas ninguém foi capaz de desenvolver políticas públicas que chegassem próximas do mínimo indispensável.


Tanto que continuamos nadando, nadando e morrendo na praia. O trecho sul do Rodoanel é um bom exemplo da incúria regional e metropolitana: vai chegar agora em março e não tivemos capacidade alguma de preparar o terreno para ganhos sistêmicos planejados a potencializar os pontos positivos e amenizar os riscos de a mão de investimentos privados seguir invertida, favorecendo outras áreas geoeconômicas, agora com mais mobilidade logística.


A Década da Industrialização dos anos 1950 marcou a chegada de montadoras de veículos e de um parque de autopeças robusto.


Nos anos seguintes, da Década da Consolidação, entre 1960 e 1969, tivemos um Grande ABC com notável crescimento econômico e social. Mobilidade social mesmo diante de fluxo migratório intenso foi mais que possível.


No final dos anos 1970 tivemos a força grevista dos metalúrgicos comandados por Lula da Silva. Daí a Década do Inconformismo. As relações entre capital e trabalho eram tremendamente desiguais.


A Década do Estremecimento marca os anos 1980, porque foi um período de espalhamento do ímpeto sindical, que atingiu indistintamente grandes, médias e pequenas empresas. Com direito a exageros de lado a lado e de cristalização de ambiente bélico nas relações trabalhistas.


Os anos 1990 foram os mais tormentosos para o Grande ABC, daí a Década do Esvaziamento. Perdemos mais de 100 mil empregos industriais com carteira assinada. Menos Fernando Collor de Mello com a abertura dos portos, e mais Fernando Henrique Cardoso com medidas de sustentação do Plano Real e de desconsiderar o gradualismo como ação preventiva ao tecido industrial, promoveram um desastre econômico nesse território. Perdemos um terço do Produto Interno Bruto industrial.


Repetindo, então, o ciclo econômico e social do Grande ABC desde que as primeiras montadoras de veículos chegaram a este território:


Década da Industrialização, Década da Consolidação, Década do Inconformismo, Década de Estremecimento, Década do Esvaziamento e Década da Orfandade.


Notaram que já há quatro décadas estamos patinando e despencando, patinando e despencando?


Notaram que estamos sobrevivendo economicamente, com todos os percalços sociais que isso significa, graças principalmente aos alicerces já deteriorados que construímos entre os anos 1950 e 1970?


Temos comido o pão que o diabo amassou ao longo das últimas quatro décadas e não somos capazes de reagir porque a ficha demora a cair aonde o pão escasseia mas não falta.


Despencamos no ranking de geração de riquezas mas ainda enchemos o peito para gargantear grandeza. De participação no PIB nacional de 4,78% em 1970 caímos para 2,39% em 2007 (últimos dados disponíveis) — e ainda achamos que somos os tais.


Perdemos em números relativos e em números absolutos.


Ou seja: somos menos importantes para o Brasil porque o Brasil mesmo fraquejando cresceu mais que o Grande ABC e somos menos importante para o Brasil também porque perdemos capacidade de produzir riqueza quando nossos números são confrontados com nossos próprios números.


Somente os incautos ainda oferecem credibilidade a ladainhas de palanque que alardeiam, por exemplo, que somos a melhor esquina do Brasil, só porque o Rodoanel está prestes a chegar por aqui. Como a melhor esquina do Brasil se nada, absolutamente nada, foi organizado para preparar essa mesma esquina para a chegada do Rodoanel?


Mais que isso: entregaram essa suposta esquina à sanha de especuladores imobiliários.


Não vejo nada no horizonte regional, nem mesmo no cantado caráter salvacionista do Pré-Sal, que possa me embalar no sentido de que teremos uma Década da Recuperação a partir deste 2010. Onde falta institucionalidade, o sentimento de periferia, de gataborralheirismo, dificilmente desgruda da alma.


Falta honestidade à maioria dos agentes públicos, privados e sociais para dizer à sociedade o que lastimam nos bastidores: o Grande ABC, mesmo nesta etapa de intensa atividade automotiva, é um ponto fora da perspectiva de um Brasil aparentemente pronto para decolar rumo aos primeiros postos do ranking internacional — como é a perspectiva de chegar ao quinto maior PIB do planeta ao final de 2015.


Longe de apresentar-se como leitura pessimista ou catastrofista, o que nos move a costurar o futuro é o latente inconformismo por não sermos capazes de produzir uma sociedade com grau de rebeldia que possa sacudir as lideranças que se encastelam em postos-chave.


As individualidades que tentam aqui e acolá alterar o rumo dos acontecimentos são duramente punidas e muitas acabam se dobrando à maioria quase absoluta que mantém um jogo de espelhos embaçados, disformes, mas, por ser maioria, se acha perfeitamente adequada à plástica comunitária. Os esquisitos são os outros, normais apenas em sociedade mais maduras e responsáveis.


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