A incógnita dos dias futuros angustia o homem desde os primórdios de sua existência. Ultrapassa o enfoque individualista para se transformar em permanente desafio aos que se ocupam com a saga humana em suas implicações mais abrangentes e globais. Hoje, mais que nunca, dada a aceleração do conhecimento científico e a descoberta de possibilidades de ação e comunicação antes insuspeitas, o exercício dessa futurologia é amplo e se espalha sem grandes pudores por todas as áreas. Assim, tentar desenhar o perfil de uma região como o Grande ABC, que estampou como poucas as diversas fases do desenvolvimento nacional na segunda metade do século passado até hoje, é uma empolgante tarefa para os que se ocupam das ciências sociais e das influências que a matéria sofre de todos os lados.
A ascensão à classe média de expressivas fatias das classes C e D, principalmente nos grandes centros urbanos, como o Grande ABC, surpreende muita gente que não consegue entender o fenômeno. Não é tão simples compreender esse tipo de mecanismo, mas ele é apenas reflexo de algo mais abrangente do que a inequívoca colocação da economia brasileira em rota adequada para começar a atingir seu potencial de grande nação.
O controle da inflação e a continuidade de sua implementação há mais de uma década, deram o ponto de partida para a mudança do padrão de vida de milhões de brasileiros. Mas não foi tudo e há muito ainda a ser contextualizado para que se possa ao menos margear o fulcro das causas e consequências das extraordinárias alterações por que passa o Brasil.
O contexto das evidentes mudanças sociais que se atropelam com extraordinária rapidez não deriva apenas de certo ordenamento oficial mais lógico ao universo econômico nacional. Após décadas de desequilíbrio na gestão do Estado e de suas influências na vida dos cidadãos, alguma ordem foi colocada nos rumos da nação. O controle da inflação é tido como o mais evidente e salutar para a mudança nas estruturas sociais, ainda em fase inicial mas reais. O motor dessas alterações comportamentais de grandes parcelas da sociedade brasileira é a melhoria da organização financeira e política interna, mas não se resume a isso. Deve ser tributado também ao conjunto de macrotendências internacionais, cujas sementes começaram a germinar nas últimas décadas do século XX.
A revolução técnico-científica, corporificada de forma mais visível nas tecnologias da informação e comunicação, mudou e vem mudando a chamada cultura pop, ou pós moderna, com ênfase em valores tidos como pouco éticos até então. Uma revolução conceitual como poucas vezes se viu na história da humanidade, envolvendo todas as esferas da ação do ser. E o grande alvo dessa investida são justamente as classes menos favorecidas, que se veem diante dos ditos prazeres que observavam de longe nos mais abonados, cultos e preparados para o mando.
Sem estrutura para assimilar e decodificar tantas ofertas, a grande massa derrama-se no culto exacerbado ao corpo e ao prazer, ao hiperindividualismo e a negação de valores como família, religião e política. Bem ou mal, sustentáculos da maioria das sociedades neoliberais do capitalismo e até mesmo do ideário socialista.
Como se comportarão as próximas gerações diante do que estudiosos chamam de neocinismo, a cada dia mais presente não apenas entre os rebentos das camadas melhor situadas, mas atingindo de forma brutal quase todos que iniciaram ou já usufruem dessa escalada em direção a um hipotético topo da pirâmide social. E que influências essas alterações comportamentais poderão ter sobre o perfil socioeconômico do Grande ABC nas próximas décadas?
Novo salto para o futuro?
Para uma região que há mais de meio século vem sofrendo transformações políticas e sociais expressivas e modificadoras dessa mesma pirâmide, o estudo desses fenômenos é atraente e desafiador. E, acima de tudo, arriscado pela forte atração que desperta ao exercício da futurologia, espaço sedutor e frequentado sem grandes pudores pelos cientistas sociais de hoje e de sempre.
Qual será o perfil de nossa sociedade em meados deste século, ponto escolhido pela maior facilidade de traçar parâmetros históricos com uma realidade ainda presente na vida de muitos dos que hoje continuam atuando nas mais diversas esferas. Um século é pouco na perspectiva histórica, mas abrangente em termos de Grande ABC, que teria dormido três depois que os primeiros aventureiros romperam a Serra do Mar rumo ao Planalto.
Cem anos desde o início da extraordinária expansão populacional e econômica dessa enorme e bem situada extensão geográfica pelo planalto a partir do alto da serra: cem anos, após três séculos de abandono e obscurantismo, só interrompido por um arrojo tecnológico de grande modernidade para a época. Um sonho de alguém que se corporificou apesar dos contratempos e da descrença das elites da época. A estrada de ferro que o Barão de Mauá espetou na terra até alcançar o litoral, cruzando a Borda do Campo e a Serra do Mar, é marco interessante para investigar os rumos desse destino, hoje outra vez instigado pelos desafios que começam a mudar a face do planeta.
O Grande ABC tem condições sociais, políticas e empresariais para, neste século, redimensionar e empreender a aventura desenvolvimentista do século anterior? No lugar das chaminés e da fumaça que caracterizaram o incrível desenvolvimento industrial de ontem, no que será possível apostar nessa imensa gama de opções que os avanços tecnológicos prometem para as próximas décadas? Ou ficar, como de certa forma estamos, deitados sobre as inegáveis conquistas de antanho e aparvalhados ante as diferentes exigências sociais e políticas destes novos tempos?
Sete cidades sem fronteiras
A amplitude dessas questões permite que diversos enfoques conturbem ainda mais qualquer tentativa intelectual de compreender e direcionar as possibilidades de traçar panoramas mais realistas sobre essa fascinante matéria. Mas não impede que algumas questões sejam colocadas, sem pretensão de sempre acertar o alvo, mas calcadas e analisadas em fundamentos palpáveis.
Dentre tantas exigências para consolidar e desenvolver uma região deste porte diante dos desafios dos avanços científicos que mudam a face de mundo com rapidez inimaginável, a união política é fundamental. União que extrapola partidos, agremiações, empresários e trabalhadores, classes sociais e níveis intelectuais. União que, grosso modo, pode ser classificada de exercício da cidadania, independente deste ou daquele Município, entre os que formam o Grande ABC.
A realidade é que as sete cidades se estruturaram em seus respectivos nichos geográficos e econômicos, ignorando e até repelindo as demais. Historicamente essa visão tem origem nas lutas emancipacionistas do século passado, mas, assim como as chaminés, não podem e nem devem vigorar no mundo atual e no futuro.
Inúmeras tentativas foram feitas para aglutinar e dar peso à defesa dos interesses coletivos, a maioria torpedeada pelo individualismo de pseudolideranças nos diferentes universos das classes melhor situadas na pirâmide. De políticos a empresários, de intelectuais a tecnólogos, de ateus a crentes, todos, em momentos de decisão, ignoraram o coletivo e tentaram fazer prevalecer interesses menores, que reduziam a pó o poder latente de uma comunidade com chances de fazer prevalecer seus interesses nas instâncias superiores. O abandono por parte do Estado e da União, fruto desse divisionismo, permanece até hoje.
O Rodoanel e a novela de sua consolidação é exemplo recente dessa falta de sincronia reivindicatória, mas não é o único e nem o mais importante. O abandono da preservação e correta manutenção da Represa Billings é outro, invadida constante e progressivamente por aglomerados urbanos e transformada em depósito de detritos, prova a inércia do Estado e das autoridades locais. E o destino do lixo, cada vez mais abundante e problemático, que os municípios tentam resolver ou fingem ignorar, cada qual à sua maneira? E a integração dos transportes coletivos, em vigor em vários locais do Brasil e aqui nem mesmo discutida com o vizinho de rua?
Os problemas são inúmeros e fartamente conhecidos. Mas, continuar aguardando providências ou buscar apenas sensibilizar instâncias maiores de reivindicação, com escora em figuras já esmerilhadas, é voltar a incorrer nos mesmo erros. Assim como apenas avalizar escolhas e indicações dos que implantaram fóruns, consórcios e outros grupamentos elitistas que a nada levaram, apenas à notícias na imprensa e centenas de cafezinhos, também é persistir em percorrer o vácuo.
Unir é preciso. Chegar a isso, o desafio
Além da importação de tecnologia, que o real forte possibilita cada vez mais e vem inundando e elevando a capacidade produtiva do país, o Grande ABC precisa disputar espaço com outras regiões também interessadas em desenvolver a economia. Ofertas de novos domicílios empresariais são inúmeras, atraentes e continuam esvaziando os cofres dos sete municípios. A prestação de serviços, que realmente se agigantou com o crescimento da classe média, poderá sobreviver sem um parque industrial moderno e gerador de riquezas, semelhantes às que proporcionaram a tal escalada da pirâmide?
Quais os representantes sociopolíticos de fato empenhados em desatar esses nós? Onde estão prefeitos, deputados, vereadores, intelectuais, empresários, comunicadores que não se unem de verdade para codificar e enfrentar esses desafios que nasceram ontem, agigantam-se com rapidez e ninguém pode prever a estatura que terão nas próximas décadas? Vinte anos depois, continuam festejando o nada e oferecendo sonhadoras planilhas de ação para o próximo decênio.
A mulher, cujo desempenho social e político também cresce em todo o País, ainda está longe de ter voz e ação nessa conjuntura, principalmente na região. A eleição da primeira presidente da República e uma ministra oriunda de Santo André, com função destacada no governo, podem significar muito em matéria da amplitude do papel feminino na vida regional. Mas também podem nada representar, visto qualquer retorno às origens ser encarado como retrocesso em uma vitoriosa carreira no coração do País.
O universo do conhecimento científico e tecnológico, com formação de pesquisadores das mais diferentes matérias, também não sugere grandes perspectivas. Apesar de algumas honrosas exceções, mais individuais do que corporativas, esse território continua patinando desde a fundação das primeiras faculdades e universidades.
A indústria automobilística, um dos maiores vetores, se não o maior, da formatação do chamado Grande ABC no século passado, hoje enfrenta a concorrência global, com a chegada de novas montadoras pelo País afora e que até ontem mesmo eram apenas devaneios consumistas dos mais bem informados.
A petroquímica, da qual também a região foi uma das pioneiras, permanece logo ali, fechada em copas, sem qualquer empatia empresarial com lideranças locais ou mesmo a população. Pelo contrário, encarada desde sempre como um problema ambiental, apesar da disputa pela parte dos impostos que deve pagar aos hospedeiros.
São inúmeros os exemplos de estagnação e conformismo com o que já foi conquistado, da mesma forma com o enfrentamento das questões sociais escandalosamente colocadas à vista de todos.
A ascensão social das chamadas classes C e D, corporificada mais acintosamente na disseminação dos celulares, cartões de crédito e nos veículos particulares, sem citar as viagens aéreas, com certeza dirá algo ao futuro. Positivo ou negativo, não é fácil mensurar, diante da inapetência dos atuais líderes em reunir esforços para que a voz do Grande ABC seja ouvida. Nem a eleição de um presidente da República, oriundo das lutas sindicais locais, ou uma ministra de Estado também aqui gerada, demonstram qualquer sinal de que o auxílio virá de fora.
Resta aos que ainda acreditam no Grande ABC como uma região diferenciada das demais que integram a grande metrópole, se unir e fazer valer tudo o que nos é devido. Como essa corrente pode se estabelecer, com rapidez e eficácia, é difícil esquematizar na prática e na chamada vida real. Vaticinar que, sem uma ação forte e coordenada a partir de ontem, o Grande ABC perderá esse status, é mera consequência do atual quadro. As cidades não deixarão de existir, mas simplesmente perderão a identidade regional e apenas formatarão o rol de tantos outros municípios que cercam a grande metrópole, uma das maiores cidades do mundo, São Paulo.
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