Regionalidade

Globalização dá de goleada
na falta de ação regional

DANIEL LIMA - 05/12/2000

Que tal deixar de conversa fiada, dessas que torram a paciência, e, parafraseando o hilário Odorico Paraguaçu, de O Bem Amado, partir para os finalmentes? Que finalmentes? Os de que, apesar de todo o foguetório dos últimos seis anos, desde a criação do Fórum da Cidadania, passando pelo ressuscitamento do Consórcio de Prefeitos, pelo lançamento da Câmara Regional há três anos e meio e também pela fundação da Agência de Desenvolvimento Econômico, o que temos no Grande ABC é um grande, grandiosíssimo vazio institucional de sufocantes consequências econômicas, sociais e políticas.

É verdade que todas essas instituições tornaram-se novidade no esgarçado tecido de uma região que passou pelo menos quatro décadas desfrutando das vantagens da industrialização sem dar a mínima bola para o dia seguinte, ou melhor, para o século seguinte. O problema é que os tempos são outros.

Vivemos em plena globalização econômica, de competitividade internacional, e o Grande ABC vem apanhando feio da concorrência doméstica e dos estrangeiros. Estamos praticamente a nocaute. Andamos a passos de cágado, quando a mundialização dos negócios impõe velocidade de banda larga. Andamos de charrete, contra bólidos de Fórmula-1.

É claro que não faltarão triunfalistas de ocasião, que precisam garantir bom relacionamento pessoal, profissional ou empresarial com as autoridades constituídas, que vão fazer esforço gigantesco para tentar ludibriar os incautos e que procurarão excomungar os fatos. São dons quixotes contra os moinhos de ventos de uma realidade dura, límpida, imensuravelmente problemática.

Disputa desigualConsiderando-se que o Grande ABC está no epicentro das transformações provocadas pela globalização, não resta outra constatação mais autêntica: perdemos fragorosamente a disputa por competitividade institucional que se desdobra em competitividade econômica. O que isso significa? Significa que estamos em maus lençóis. Nossa principal matriz econômica — a indústria automobilística e a cadeia de suprimentos que gira em sua órbita — está de pernas para o ar porque sofre intensamente com o jogo da produtividade internacional aliado com a descentralização produtiva.

Não bastasse isso, ficamos piores ainda diante da constatação de que muitos outros municípios e Estados disputam para valer cada naco de produção industrial. Vivemos o paradoxo de sermos observados e analisados externamente como bloco único de identidade econômica, social e cultural — o que é um grande erro de avaliação porque Santo André nada tem a ver com Ribeirão Pires e São Caetano muito menos a ver com Diadema —, mas agimos de forma fragmentada. Prevalece a territorialidade municipal.

A regionalidade continua sendo utopia que administradores públicos fingem estar construindo enquanto planejam incursões individuais que garantam vantagens igualmente individuais.

Qual é a melhor maneira de aferir a temperatura de mudanças efetivas no campo institucional, econômico e social do Grande ABC desde o lançamento do Fórum da Cidadania? Como diagnosticar o grau de inserção prática da Câmara Regional nos destinos da região? Como dimensionar os efeitos das ações da Agência de Desenvolvimento Econômico? E as manobras compartilhadas do Consórcio de Prefeitos?

Como se observa, o que não falta ao Grande ABC são macroinstituições representativas do Poder Público regional (no caso o Consórcio de Prefeitos), do conjunto da sociedade (o Fórum da Cidadania) e dos poderes públicos (Executivos e Legislativos) dos sete municípios somados ao governo do Estado e à comunidade (Fórum da Cidadania) que estão envolvidos na Câmara Regional.

Perceberam que não é por falta de arcabouço institucional que os resultados não fluíram? É preciso até leitura mais atenta sobre a parafernália organizacional da região para se compreender o perfil de cada entidade. Há tantas representações que o mais provável é que tenha sido por excesso e não por escassez de entidades que o Grande ABC se encontra como está depois de tanta barulheira nos últimos anos.

A realidade é que ao Grande ABC de múltiplas macroinstituições faltou o básico e pelo qual poucos lutam de verdade: a criação da Região Metropolitana do Grande ABC, como a Baixada Santista e a Grande Campinas conseguiram. Com a RMGABC, seria possível eliminar tanto a Câmara Regional quanto o Consórcio de Prefeitos, tanto o Fórum da Cidadania quanto a Agência de Desenvolvimento Econômico. Haveria racionalidade e complementaridade do planejamento e das ações em conjunto com o governo do Estado, que, diferente da presença voluntária na Câmara Regional, atuaria de forma compulsória e repleto de obrigações legais.

CenografiaA constatação de que nos últimos seis anos o Grande ABC viveu uma grande cenografia de engenharia institucional e econômica está na análise mais atenta de dois documentos imprescindíveis para quem tem a pretensão de conhecer um pouco da história mais recente da ainda terceira região de maior potencial de consumo do País. O primeiro documento, datado de julho de 1994, marca o lançamento oficial do Fórum da Cidadania. A representatividade social do Fórum da Cidadania dos primeiros tempos indicava que o plantio de propostas para recuperar o Grande ABC garantiria generosa colheita.

Qual nada! O que se tem é uma coleção de desilusões. Seis administradores de diferentes perfis e representatividade social já passaram pela entidade e só há resultados pífios. É evidente que os condutores do Fórum da Cidadania não podem ser acusados de negligentes. Pelo contrário. Eles só não fazem milagres. Cidadania é uma grande mentira numa região fortemente corporativa como o Grande ABC. Sim, corporativa por excelência como o Brasil, que carrega a gênese do colonialismo permeado de patrimonialismo e dependência do Estado-todo-poderoso.

Outro documento, de março de 1997, é consequência dos trabalhos dos grupos temáticos da Câmara Regional. Foram reunidas num mesmo propósito 31 ações com a participação efetiva de governos e legislativos municipais, empreendedores, sindicalistas, representantes de entidades sociais e também governo do Estado. Há alguns pontos coincidentes com o rosário de proposições do Fórum da Cidadania. Mas os resultados são igualmente decepcionantes.

Em resumo, o que o Grande ABC pintou como inovadora representatividade econômica, política e social, cantada em prosa e verso como exemplo a ser seguido, não passa de gigantesco blefe. Estamos perdendo feio o jogo da globalização para qualquer outra região do Estado de São Paulo.

Provavelmente nem o mais cético dos fundadores do Fórum da Cidadania que foram levados a um dos auditórios da Fundação Santo André em julho de 1994 projetaria resultados tão inexpressivos para o movimento que nos primeiros anos sacudiu instituições públicas e não-governamentais da região. Passados seis anos, o saldo é decepcionante.

Uma leitura no conjunto de propostas transforma em pateta o mais empedernido dos regionalistas. Para piorar a contabilidade do fracasso, o Fórum da Cidadania desenvolveu pauta de proposições que se constata exagerada. Temários que fogem completamente ao alcance de decisões de uma região que mal consegue manter-se sobre as próprias pernas bambas da fragilidade institucional e política foram acrescentados a questões exclusivamente locais. Perdoa-se o atrevimento desmesurado porque o Grande ABC vivia momentos de êxtase. Parecia que a maria fumaça se transformaria em trem bala.

A pauta econômica exposta pelo Fórum da Cidadania em julho de 1996 não só admitia a fuga industrial que muitos ainda relutavam em aceitar como propunha a criação de mecanismos para atrair novos investimentos e impedir conflitos fiscais entre municípios. O máximo que se fez em termos intermunicipais, com a criação da Câmara Regional, foi a chamada Loto Fiscal, que previa devolução de parte do ICMS da quota municipal para novos empreendedores e também para quem expandisse as plantas já instaladas. Praticamente nenhum resultado foi registrado.

Sobre os conflitos fiscais entre os sete municípios, nada impede uma guerra de guerrilhas de transferências internas de empresas em busca de maior competitividade com redução de custos de localização, trocando áreas urbanas mais valorizadas por terrenos e galpões mais acessíveis também à logística de suprimento, produção e distribuição.

A criação de novos pólos industriais não passa de conjectura sem embasamento microeconômico. A região ainda não conseguiu romper a dependência de uma indústria automotiva que compacta cada vez mais o quadro de fornecedores e de trabalhadores, sem falar de um setor químico/petroquímico atravancado pela produção exaurida e dependente de negociações políticas para aumentar a cota de nafta, matéria-prima da empresa-mãe Petroquímica União.

Não fossem suficientes os velhos tropeços industriais de quem se imaginou eternamente sob a proteção da indústria automotiva, o que se viu depois do surgimento do Fórum da Cidadania foram torpedos na área comercial. Grandes conglomerados invadiram os pontos geográficos mais nobres da região sem qualquer tipo de restrição e dinamitaram os pequenos negócios.

Na verdade, em muitos casos os novos megaempreendedores contaram com apoio ostensivo das prefeituras, que facilitaram obras viárias e urbanísticas para elevar o fluxo de consumidores. Tudo sob vistas grossas de entidades empresariais e legisladores absolutamente passivos.

Nas outras áreas abrangidas pelas propostas de 1994 do Fórum da Cidadania os desenlaces não foram diferentes. Desde a insensata proposta de criação da Universidade Pública do Grande ABC, passando por sonhados programas de habitação popular e chegando à adoção de medidas urgentes para melhoria da segurança pública.

O que dizer então da proposta de ações que garantissem a imediata interrupção de novos loteamentos clandestinos e ocupações em áreas de mananciais, quando se sabe que as imediações da Represa Billings são convite permanente para construção de novos barracos? Tanto que os níveis de ocupação da periferia superam largamente o crescimento demográfico de áreas urbanas porque a exclusão social é cada vez maior.

Cadê a sociedade?A relação de propostas do Fórum da Cidadania só não deve entrar para o anedotário popular porque o movimento foi e continua sério, embora se tenha esvaziado a cada novo coordenador-geral eleito. Tudo porque a instituição não teve respaldo da sociedade para estruturar-se profissionalmente.

Por mais que o voluntariado seja indispensável nos movimentos sociais, e até mesmo porque não se concebem movimentos sociais sem voluntariado, a literatura de organizações não-governamentais está repleta de exemplos de fracasso por falta de capacitação gerencial. É exigir demais que profissionais dos mais diferentes ramos e que precisam correr atrás do sustento pessoal tenham meios financeiros próprios e disponibilidade extra de tempo para segurar as rédeas de uma entidade que pretenda interferir decididamente nas questões regionais.

Um dos pilares conceituais do Fórum da Cidadania e que jamais foi expresso de forma deliberada em qualquer um de seus documentos oficiais também ruiu ao longo dos seis anos de atuação da entidade. Trata-se do projeto de procurar elevar suas lideranças mais proeminentes à condição de atores políticos. As derrotas de Marcos Gonçalves a deputado federal e de Fausto Cestari Filho a deputado estadual, há dois anos, além de Sílvio Pina na corrida à Prefeitura de Santo André neste ano, apenas comprovam uma realidade que os mais fanáticos soldados do Fórum da Cidadania procuravam negar: o movimento não conseguiu infiltrar-se na comunidade, apesar de elucubrações grandiloquentes de que reúne mais de 100 representações sociais.

A constatação de que o Fórum da Cidadania foi e continua sendo um movimento de cúpulas de entidades, com baixíssima densidade popular, não tem o sentido de estigmatizar a instituição com a pecha de derrotada. Nada disso. O Fórum da Cidadania, apesar dos pesares, tem valores históricos. O problema todo é que a comunidade regional é extremamente negligente a salvaguardas coletivas fora do guarda-chuva de interesses corporativos.

Câmara vaziaPraticamente três anos depois do barulhento lançamento do Fórum da Cidadania e já sob a administração de prefeitos eleitos cinco meses antes, a criação da Câmara Regional marcou concorridíssima cerimônia no Paço Municipal de São Bernardo. Passados quase quatro anos desde março de 1997, o que se tem são resultados no mínimo acachapantes. Se forem consideradas as 31 ações que definiram os pontos prioritários do plano estratégico da Câmara anunciado em julho do mesmo ano, a conclusão é ainda mais inquietante.

A inicial aproximação de enamorados entre o Grande ABC e o governo do Estado tornou-se saldo positivo para quem conhece o histórico distanciamento entre a região e o Palácio dos Bandeirantes. Entretanto, o movimento foi se desintegrando ao longo do tempo. Tanto que o governador e a maioria do secretariado estadual há muito deixaram de comparecer às reuniões da Câmara Regional. A própria entidade tem mantido encontros esporádicos.

Exceto os grupos técnicos, quase todos ligados às administrações públicas municipais, as reuniões de planejamento estratégico desapareceram do cronograma. Até mesmo os cronogramas viraram fantasmas. A Câmara só não é uma miragem exatamente porque assessores dos prefeitos e executivos da instituição mantêm a chama do organismo. Se for considerado o espectro inicialmente traçado, de envolvimento de toda a comunidade através de lideranças estratégicas, a Câmara Regional não passa de frustrada tentativa de esparramar cidadania.

Por isso, os resultados são perversamente desestimulantes. O temário eminentemente econômico é uma sequência de desilusões. Já no primeiro ponto a relação de vocações da região não passou de obviedades. Os planos para novas vocações econômicas se tornaram uma carta de boas intenções e péssimas execuções. Praticamente nada se fez, exceto programas ainda embrionários em Ribeirão Pires e Santo André na área de turismo de negócios.

Não é difícil entender por quê. Sem secretarias de Desenvolvimento Econômico minimamente preparadas materialmente e em recursos humanos para aquecer o jogo do progresso, é bobagem acreditar no destino. Investimentos produtivos são consequência de uma série de intersecções decorrentes de planejamento estratégico, não da força da natureza. Fora o âmbito particular das empresas, não se pode disseminar desenvolvimento tecnológico sem política de ações integradas e isso, com mercado aberto ou não, compete aos administradores públicos.

Os prefeitos eleitos que assumiram em 1997 esqueceram que não basta criar secretarias que cuidem do desenvolvimento econômico da região. É preciso dotá-las de aparato semelhante ao de empresas privadas competentes, porque o jogo do mercado internacional não perdoa improvisações. Além disso, regionalismo não combina com municipalismo exacerbado. O que se tem na região é cada Município tratando do próprio umbigo, numa reconversão defensiva de quem já deixou de acreditar na regionalidade.

Utopia demaisO quadro de 31 pontos aprovados em julho de 1997 pela Câmara Regional é um monumento à utopia e um flagrante do desencanto. Por mais que alguém seja otimista — e não faltam otimistas de araque na região, movidos por interesses particulares na maioria dos casos —, não é possível passar os olhos sobre essas três dezenas de metas sem que se caia em prostração. Nada, nada, nada — eis a cadeia de resultados entremeados de outro tipo de adjetivo, no caso o também doloroso insuficiente.

A diferença entre a classificação nada e a classificação insuficiente utilizada no quadro relativo às propostas iniciais da Câmara Regional é que no segundo caso algumas atividades, geralmente de caráter municipal, foram efetivamente iniciadas até mesmo de forma seletiva, sem envolvimento da maioria dos potenciais beneficiários. São espécies de vitrines sociais. No primeiro caso, nada não significa outra coisa senão nada.

Um inexorável exemplo de nada está na proposta de envolver os atores da Câmara Regional numa ampla negociação em relação à jornada de trabalho e escalonamento de horário de trabalho na região. Esdrúxula, porque desconectada das repercussões sistêmicas da economia, a idéia só poderia cair no esquecimento.

Agora, um exemplo de insuficiente: o movimento regional envolvendo a comunidade para erradicação do analfabetismo até o ano 2000. O Mova (Movimento de Alfabetização de Adultos) não teve a força milagrosa que se imaginava. Embora tenha sua importância, os propagadores do analfabetismo-zero na região caíram na conversa fácil de ejacular ilusão.

Em nenhuma das 31 propostas formuladas pela Câmara Regional houve resultado qualificado como suficiente. Para quem imagina que se trata de excesso de rigor na análise, a melhor explicação para esse veredito é a simples constatação de que os objetivos regionais intrinsecamente inseridos na Câmara Regional não flexibilizam resultados. São redondamente regionais, ora bolas!

A desconfiança de que se tentou levar a Câmara Regional para o caminho político-partidário não é inteiramente descabida. Pensando melhor, é muito mais que desconfiança vazia. É algo para se pensar com certo respeito. Ou não seria um ato também político a presença do governador Mário Covas e de 12 secretários de Estado no final de janeiro deste ano em São Bernardo, na última vez em que a cúpula da Câmara Regional esteve reunida?

O encontro foi politicamente concorridíssimo porque marcou espécie de avant-premiére eleitoral. Executivos públicos de patentes respeitadas, candidatos aos mais diversos cargos e cabos eleitorais dividiram as acomodações da Faculdade de Direito de São Bernardo. A participação de empreendedores foi mínima. Só alguns representantes da classe empresarial compareceram.

O governador Mário Covas assinou 21 acordos propostos pela Câmara Regional para obras e serviços na região, com total previsto de R$ 1,8 bilhão de investimentos. “A Câmara Regional mostra uma competência, pujança e uma força extraordinária que, normalmente, não consigo nas minhas reuniões de secretariado” — afirmou Covas sem esconder o lado levemente sarcástico de quem se surpreendera com tanto quórum.

Nenhuma outra reunião do Conselho Deliberativo da Câmara Regional entrou na agenda do governador durante todo este ano. Por isso e também por outros motivos o Planejamento Regional Estratégico, incluído entre os 21 acordos assinados, mal se sustenta sobre as pernas indolentes do divisionismo.

Não se pode afirmar que, na teoria, a Câmara Regional seja incompetente. Pelo contrário. O futuro da região foi dividido em chamados sete eixos estruturantes pelos técnicos que atuam na entidade. Eixos estruturantes são agrupamentos temáticos de programas e ações utilizados no planejamento regional estratégico. Os sete eixos são amplos: Educação e Tecnologia, Sustentabilidade das Áreas de Mananciais, Acessibilidade e Infra-Estrutura, Diversificação e Fortalecimento das Cadeias Produtivas, Ambiente Urbano de Qualidade, Identidade Regional e Estruturas Institucionais e Inserção Social.

Como se observa, não é por falta de instrumental teórico que o Grande ABC e o governo do Estado deixarão de redirecionar tanto a economia quanto o quadro social.

A montagem dos eixos estruturantes reafirma que só mesmo alguns estúpidos acreditam que o Grande ABC não é uma região em crise estrutural. Que crise?

Uma crise que vai muito além da própria indecisão quanto à identidade econômica, depois de ter perdido boa parte da musculatura industrial e de ter ganho reforços em comércio e serviços.

Uma crise em forma de dilema de não saber se conseguirá respostas para uma reação coordenada no setor produtivo ou se é melhor mesmo assumir o perfil terciário. É melhor agir com rapidez porque mais indústrias continuam deixando o território regional cada vez mais competitivo e excludente, e também cada vez mais o setor terciário é invadido, sem qualquer tipo de restrição, pelos conglomerados varejistas.

Agência Santo AndréA Agência de Desenvolvimento Econômico, espécie de braço estratégico da Câmara Regional, é esforço praticamente isolado do diretor-geral Celso Daniel, prefeito de Santo André. Está a léguas distante do que se espera de uma entidade capaz de contribuir para colocar a região na velocidade da globalização. Criada em outubro de 1998, a agência foi definida pelo prefeito como fomentadora de três papéis fundamentais: dar suporte às empresas da região e às que vierem a se instalar, sistematizar informações socioeconômicas e implementar o marketing regional, expressando a imagem cada vez mais positiva da região. Se fosse uma prova de vestibular institucional, a entidade teria sido reprovada.

A composição mista da Agência de Desenvolvimento Econômico, reunindo empreendedores, governos municipais e sindicatos, revela a tentativa de amalgamar uma sociedade tradicionalmente corporativista. Exceto o Pólo Petroquímico de Capuava, nenhuma outra representação empresarial tem participado efetivamente dos encontros.

Isso demonstra as dificuldades de operar a agência, porque o setor automotivo, que representa pelo menos 70% da indústria de transformação da região, não consta da composição. Por ciumeira política e por sediar as principais montadoras, a administração pública de São Bernardo ficou com o filé automotivo que naufragou ao sabor de interesses corporativos.

Grande parte de executivos públicos e de lideranças sindicais se afastou das reuniões da agência. O organismo tem sido espécie de extensão da administração do prefeito Celso Daniel, sempre coalhada de assessores técnicos. Os três papéis principais reservados à agência formam linhas entrecortadas.

O suporte às empresas da região não passa de ilusão porque Poder Público e empresariado se movem em direções geralmente distintas, por mais que ameacem acertar o passo. A sistematização de informações também é precária.

Pesquisa da atividade econômica encomendada à Fundação Seade (Sistema Estadual de Análises de Dados), do governo estadual, gerou dois cadernos de estatísticas que ainda não foram destrinchados porque dependem de novas tabulações. Os resultados parciais geram momentos de tensão porque técnicos da agência procuraram construir interpretações triunfalistas. Foi o que ocorreu com a revelação de que 35% das empresas industriais, que representam 80% do valor adicionado, tinham investido em produtos ou processos durante 1995 e 1996, período abrangido pelos estudos. O reverso da moeda é muito mais impactante: os números indicam que 65% das empresas não aplicaram recurso financeiro algum em produtos e serviços nos anos mais férteis pós-Plano Real, num evidente quadro de exclusão empresarial.

Sem milagresA implantação de um plano regional de marketing se mostrou outro fiasco. A edição de uma já desativada revista bilíngue sobre as atratividades da região teve sentido semelhante ao anúncio de uma viagem à lua com suporte aeroespacial do governo paraguaio. Como, afinal, seduzir investidores nestes tempos de competitividade sem que as premissas básicas de organização regional sejam de fato implantadas?

Exemplo de que a agência não faz milagre é a atualidade de declaração feita há dois anos por Jorge Rosa, representante do Pólo Petroquímico, durante a festa de lançamento do organismo: “A região é carente de infra-estrutura e tem alto custo. Estamos próximos à ferrovia e temos carência de transporte de carga ferroviário, temos dificuldades de acesso ao porto, água industrial cara e constantes quedas de energia. A solução desses problemas contribuirá para que as empresas consigam competitividade e atrairá empresas para o local” — disse.

Experiente, Fausto Cestari, então dirigente do Ciesp Santo André, também participou do lançamento da agência, mas não perdeu o sentido prático do ato: “É preciso que o andamento seja mais dinâmico, pois a região precisa de informações sobre o perfil socioeconômico” — afirmou.

Uma das propostas que deram vida à agência, o Fundo de Desenvolvimento Regional, destinado a financiar projetos para estimular pequenas e médias empresas por meio de captação de recursos junto a órgãos financiadores do Brasil e Exterior, ficou no papel. Nem uma espécie de BNDES regional move os administradores públicos.

A própria agência sente o peso da falta de financiamento. Tanto que sua estrutura funcional é franciscana. O pouco dinheiro captado junto ao BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) mal foi suficiente para contratação de consultores nacionais e internacionais especializados em planejamento estratégico.

Ninguém apostou nem vendeu melhor a Câmara Regional dos primeiros tempos do que Emerson Kapaz, então secretário de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo. Juntamente com Fausto Cestari, na época dirigente titular do Ciesp (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo) em Santo André e coordenador-geral do Fórum da Cidadania, Emerson Kapaz foi responsável pela criação da instituição. Em artigo publicado em fevereiro de 1998 no Diário do Grande ABC, o hoje deputado federal transbordou entusiasmo com a Câmara Regional:

“Com o objetivo de fomentar a competitividade de todo o Grande ABC, gerar empregos e melhorar continuamente sua qualidade de vida, está funcionando a pleno vapor a Câmara Regional do ABC” — escreveu, provavelmente já de olho na candidatura a deputado. E seguiu no artigo, depois de analisar com brevidade nove pontos considerados mais importantes para os trabalhos da entidade: “Além destas ações, outros acordos estão em preparação visando a criação de um parque tecnológico, viabilização do Rodoanel, tratamento de resíduos sólidos, fomento à habitação popular, novas melhorias no sistema viário, construção de uma concessionária regional de saneamento e construção de mais oito piscinões (…) Desta forma, os sete municípios da região estão dando um exemplo ao restante do País, mostrando como a integração planejada de esforços do governo e da sociedade civil pode levar ao desenvolvimento sustentado” — escreveu Kapaz.

Muito paparicoA fase de lua-de-mel da Câmara Regional foi prolongada. Não faltaram paparicos. Em julho de 1998 foi a vez do então secretário de Desenvolvimento Econômico de São Bernardo, Fernando Longo, derreter-se em otimismo em artigo no Diário do Grande ABC (A Grande Virada). Alguns trechos: “O trabalho articulado por esse grupo (setor automotivo) resultará obrigatoriamente em uma política de competitividade regional para o setor automotivo, reafirmando a condição de maior pólo automobilístico do País sustentada até hoje pela nossa região (…) A responsabilidade compartilhada entre o Poder Público nas esferas estadual e municipal, os trabalhadores, as indústrias automobilísticas e autopeças, assim como as instituições de ensino, tornam esse momento histórico, único, que acabará resultando na retomada do desenvolvimento econômico (…) O Grande ABC novamente estará sendo palco de uma grande virada, paradigma de desenvolvimento social e econômico do País” — escreveu o secretário, que não conseguiu levar adiante os trabalhos do grupo automotivo depois de encontrar resistência de lideranças sindicais em abrir mão do chamado Custo ABC originário das conquistas trabalhistas no setor.

Quase um ano depois, em junho de 1999, Jorge Hereda, assessor executivo da presidência do Consórcio de Prefeitos, no mesmo Diário do Grande ABC já denunciava a fragilidade de relação institucional na Câmara Regional: “A Câmara Regional vem buscando de maneira sistemática a viabilização dos acordos assinados nos dois últimos anos. Para isso, empreende uma verdadeira via crucis em que já foram feitas várias reuniões com secretários estaduais, ministros e até gestões na Assembléia Legislativa e Congresso Nacional (…) As declarações do governador Mário Covas, quando em visita à região no último fim de semana, são um fato a ser comemorado e vêm num momento crucial do nosso processo. Contudo, na nova fase em que estamos, precisamos mais que isso. As tarefas assumidas nos acordos não podem ser consideradas como uma lista de prioridades para a região sem data prevista para sua realização” — escreveu o então dirigente do Consórcio de Prefeitos.

Um mês depois, no mesmo Diário do Grande ABC, Jorge Hereda abriu contundente sua coluna com o título Cadê o Relatório?: “O novo secretário de Meio Ambiente do Estado, ao contrário dos outros que passaram pela Pasta e tiveram, no mínimo, respeito pela região, torna-se com suas atitudes mais um a engrossar a ala do governo que simplesmente ignora o esforço, inclusive do governador, para buscar soluções aos problemas do Grande ABC” — afirmou Jorge Hereda, desnudando, muito mais que uma exceção, uma regra nas relações entre o secretariado de Mário Covas e representantes do Grande ABC na Câmara Regional.

Por não viver a realidade do Grande ABC, mas sob os efeitos da disseminação das propostas, Glauco Arbix, professor do Departamento de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo), também entrou no cordão de entusiasmados cultores da Câmara Regional. Em artigo escrito para a Folha de S. Paulo de dezembro do ano passado, portanto há exatamente um ano, Arbix coloca: “Em nossa curta história industrial, não foram poucas as regiões que acabaram se transformando em conglomerados de cidades desorientadas, hostis aos seus habitantes, onde a baixa qualidade de vida e a ocupação urbana caótica passaram a ser marca registrada. O triste mosaico de regiões como o ABC ou Betim é exemplo vivo dessa realidade, que contrasta com os altos índices de arrecadação fiscal (…). Há, no entanto, sinais de reação. Mais uma vez o ABC salta na frente, ainda que nem sempre tenha recebido o devido reconhecimento. Para se defender da disputa predatória e tentar reverter seu destino industrial, as sociedades locais deflagraram uma série de iniciativas multipartidárias, de cooperação entre o setor público e o privado, que estão fazendo do ABC um dos mais importantes laboratórios produtores de novas institucionalidades do País (…). A Câmara Regional é uma de suas expressões mais vivas. Seu funcionamento obedece aos padrões democráticos de convivência e representa enorme avanço no sentido de superar o planejamento concentrado nos gabinetes de iluminados prefeitos, governadores e no staff das agências estatais” — afirmou o professor num momento em que a Câmara já dava sinais de exaustão, agravados ao longo deste ano por causa da incompatibilidade entre planejamento regional e calendário eleitoral.

O multipartidarismo foi encenação que não resistiu aos objetivos individuais dos protagonistas da Câmara Regional. A esperada formalização da Região Metropolitana do Grande ABC diminuiria o tamanho do rombo das dissensões político-institucionais simplesmente porque enquadra todos os atores nos rigores da lei. Entretanto, no fundo, no fundo, o que falta mesmo, acima de tudo, é representatividade social.

O Grande ABC tem mania de grandeza na própria denominação e não se dá conta de que está perdendo de lavada o jogo da competitividade regional.



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