Regionalidade

Somos hoje às escondidas o que
Brasília escandalizará amanhã

DANIEL LIMA - 21/02/2013

Quase 19 anos depois da “Carta do Grande ABC”, que marcou o lançamento do Fórum da Cidadania do Grande ABC, eis que decidi produzir a “Carta da Província do Grande ABC”, espécie de contraponto àquelas linhas bem alinhavadas que ganharam a forma de um documento histórico na noite de 28 de julho de 1994. Aquele evento realizado na Fundação Santo André descortinava um Grande ABC que jamais imaginávamos chegar ao estágio de Província do Grande ABC ao findar de duas décadas. Mas, infelizmente, chegou, baixou e saravou.

 

Decidi reproduzir aquela “Carta do Grande ABC” entremeada pela “Carta da Província do Grande ABC” porque saltamos de um pretendido estágio de cidadania regional para um consolidado desastre de anomia. A Brasília mais desavergonhada do futuro é a Província do Grande ABC do presente.

 

É claro que o documento original de quase 20 anos e a contrapartida de agora seguem a mesma linha enxuta, incisiva, provocativa e combativa. A diferença é de contexto e de resultados. Naqueles meados de 1994, quando o Plano Real ganhava os primeiros passos de reformismo macroeconômico, estávamos cheios de expectativas. Hoje, ainda com o Plano Real a dar as cartas, apesar de gambiarras, a perspectiva é de escorregões no gelo do descaso com roupagem de novidades de um marketing ordinário.

 

Só quem viveu aqueles tempos e tem a graça divina de estar em condições de combate hoje conhece a exata dimensão do tamanho da montanha de esperança e do buraco da decepção entre a fita de largada e a reta de chegada da “Carta do Grande ABC” e a “Carta da Província do Grande ABC”, entre o Fórum da Cidadania do Grande ABC e o Movimento Contra a Anomia da Província do Grande ABC. Estranhará o leitor a menção do “Movimento”, provavelmente desconfiado de que esteja alijado de alguma coisa importante para que a região volte a respirar. Acalme-se. Trata-se apenas de uma nomenclatura fantasiosa, de efeitos jornalísticos, por assim dizer, porque nada de novo há no horizonte regional nesse sentido, no sentido de criar uma instituição que dê voz e vez à sociedade como um todo.

 

Confronto de cartas

 

Vamos ao que interessa, e o que interessa são as duas “cartas”, uma envelhecida e frustrante de quase 19 anos atrás e outra que surgirá agora, dedilhada com o inconformismo de sempre por quem acredita numa regionalidade minimamente vigorosa.

 

Antes, entretanto, uma ressalta: diferentemente da “Carta da Província do Grande ABC”, produzida por este jornalista com base no conjunto de informações e experiências das duas últimas décadas, a “Carta do Grande ABC” foi elaborada sem minha participação. Cheguei oficialmente ao Fórum da Cidadania pouco depois do lançamento. Integrei-me ao movimento com cara e coragem, sem convite algum, a partir de distribuição de panfletos nas ruas de Santo André em defesa do voto regional nas eleições proporcionais previstas para aquele ano. Mais tarde participei ativamente e fui uma das primeiras vozes discordantes na instituição que pretendia fazer do conceito de consenso total uma armadura protetora às traquinagens. Tudo retratado em inúmeras matérias que redigi para a revista LivreMercado, criada por mim em 1990.

 

A “Carta do Grande ABC” redigida em julho de 1994 não expressou em sua totalidade, à época, o pensamento deste jornalista. Uma mistura contraditória de cirurgia sem anestesia nas críticas à classe política de então e umas palmadinhas de leve, se tanto, nos demais agentes da sociedade, sobressai naqueles parágrafos. Em determinados trechos, os quais os leitores terão a oportunidade de aferir, a tentativa de isentar entidades corporativas do processo de esvaziamento político e econômico da região, acabava desmoronando nos parágrafos seguintes. Mas nada disso, entretanto, por mais que se imantasse uma diferença abissal de estilo entre os responsáveis pela “Carta do Grande ABC” e este jornalista agora com a “Carta da Província do Grande ABC”, se consumou como um pecado capital a desclassificar aquele trabalho. Nada disso.

 

Agora, divididos em vários blocos, publicaremos a “Carta do Grande ABC” assinada pelo Fórum da Cidadania, sempre entremeada pela “Carta da Província do Grande ABC”, preparada por mim.

 

Primeiros trechos da “Carta do Grande ABC”, do Fórum da Cidadania:

 

 O Grande ABC está no limiar de sua maturidade politica. Num ano decisivo para a vida brasileira, a região atravessa, talvez, a etapa mais importante de sua história político-administrativa desde os movimentos autonomistas dos anos 40 e 50. Nunca, nas últimas décadas, houve uma demanda por rigor e seriedade dos políticos da região tão intensa como a que hoje reivindicam os segmentos mais expressivos da sociedade local. Nunca a região viu um descompasso tão flagrante entre seu excepcional crescimento econômico, sua diversidade social e sua débil representação política, tanto no Parlamento quanto no Executivo, tanto no Município quanto nos planos estadual e federal. Nunca a região congregou um grupo de lideranças empresariais, comunitárias, sindicais e classistas com tão alto grau de consenso sobre as necessidades básicas da região, um consenso que exige muito mais sensibilidade de seus representantes eleitos para dar curso a tais demandas.

 

Agora os primeiros trechos da “Carta da Província do Grande ABC”:

 

 A Província do Grande ABC está enredada aparentemente de forma irreversível no lamaçal da inexpressividade política. Em mais um ano decisivo para a vida brasileira, a Província atravessa, sem margem a dúvida, a etapa mais desestimulante de sua história política-administrativa desde os movimentos autonomistas dos anos 40 e 50. Nunca, nas últimas décadas, apesar de tudo de dantesco que já ocorreu, houve uma demanda tão desavergonhada com o deixa para lá porque não estou nem aí não só envolvendo os políticos da região como a sociedade como um todo. Somos a fermentação da Brasília de amanhã, a Brasília dos escândalos que se sucederam com o caradurismo de sempre. Nunca a Província do Grande ABC congregou um grupo de supostas lideranças empresariais, comunitárias, sindicais e classistas com tão alto grau de desinteresse coletivo sobre as necessidades locais, numa desavergonhada orquestração de salve-se-quem-puder que passa ao largo da baixa sensibilidade e do cansaço evidente da comunidade como um todo. A classe política e o entorno empresarial aproveitam-se desse vácuo de orfandade cidadã para deitarem e rolarem.

 

Segundo trecho da “Carta do Grande ABC” do Fórum da Cidadania:

 

 Tocado pelo ímpeto do desenvolvimento industrial, o Grande ABC dos anos 60 tinha mais a dar do que a receber. Gerou durante décadas boa parte da renda nacional, mas foi prejudicado por um processo de crescimento para o qual não se preparou. O desenvolvimento não planejado, a competição de outras regiões e a ausência de uma ação política orientada para seus interesses trouxeram sequelas para o Grande ABC que só há pouco ficaram claras para toda a sociedade loca. A região dispõe de uma infraestrutura superior à da maioria das grandes cidades brasileiras, mas apresenta graves problemas sociais, enquanto seus políticos assistem passivamente ao esvaziamento de seu parque industrial.

 

Segundo trecho da “Carta da Província do Grande ABC”:

 

 Estruturado perigosamente no desenvolvimento industrial centrado na indústria automotiva, a Província do Grande ABC dos anos 1990 mais perdeu do que gerou de riqueza, atingida em cheio pela abertura econômica e pela descentralização de produção de veículos de passeio. O processo de crescimento econômico comprometido a partir dos anos 1980 atingiu ainda mais fundo a Província nas décadas seguintes. A ausência de planejamento estratégico que contemplasse interesses da região, em vez de especificidades municipais, cavou um buraco ainda maior de perdas, com evidentes prejuízos à sociedade. Até mesmo a decantada infraestrutura foi para o acostamento da competitividade, porque outras regiões do Estado e do País souberam se organizar para receber investimentos. A chegada do trecho sul do Rodoanel, cantada em verso e prova como salvadora da lavoura, não operou o milagre desejado entre outros motivos porque a Província não se preparou para tentar beneficiar-se do traçado fechado demais à inserção econômica tão provincianamente alardeada.

 

Mais trechos da “Carta do Grande ABC” do Fórum da Cidadania do Grande ABC:

 

 Todos sabem que o potencial do Grande ABC é mais do que suficiente para redesenhar uma região moderna, dinâmica, ajustada às necessidades de seus cidadãos e planejada de modo a integrar o desenvolvimento com a preservação ambiental. Mas esse patrimônio não é percebido, muito menos valorizados por seus representantes eleitos. É urgente, portanto, identificar liderança políticas, no plano municipal, estadual e nacional, capazes de ter na prosperidade de todo o Grande ABC um ponto de consenso, acima de suas divergências partidárias. Antes, porém, é preciso dizer que durante anos e décadas as entidades mais importantes da região, embora atuantes, sempre se manifestaram na arena política de forma isolada e muitas vezes tímida, colaborando assim, involuntariamente, com os erros de seus representantes.

 

Mais trechos da “Carta da Província do Grande ABC”:

 

 Todos sabem que o potencial econômico da Província do Grande ABC já não é o mesmo de outrora. Mais que isso: vivemos uma crise de perspectivas, porque não temos encontrado a saída para retomarmos o crescimento em ritmo que se assemelhe aos novos principais rivais por investimentos produtivos. Entretanto, essa mais que evidente queda não é percebida ou não é aceita pelas badaladas e quase sempre inúteis lideranças incrustradas na sociedade e no meio político-partidário. Vivemos num quase desértico terreno de alternativas à renovação física e intelectual de agentes da sociedade, situação que se manifesta claramente no imbricamento pecaminoso com administrações públicas. As entidades mais importantes da região sempre atuaram no sentido de convergirem interesses às águas mais rentáveis dos poderosos de plantão, manifestando-se na arena política de forma seletiva e interesseira, às vezes com algum pudor ideológico, mas, no fundo, desavergonhadamente. Nestes momentos atuais, nada está mais dominado que o grupo de organizações privadas e não governamentais pelos respectivos paços municipais.

 

Mais “Carta do Grande ABC”, do Fórum da Cidadania:

 

 É exatamente porque se assiste hoje à emergência de um vigoroso e articulado movimento da sociedade civil da região – apartidário, não classista e supramunicipal – que o dia de hoje assinala uma guinada de dimensão histórica. Esta guinada caracteriza-se precisamente pelo fato de que as lideranças que hoje lançam este manifesto dispõem-se a inverter os termos da equação político-partidária da região. A sociedade civil do Grande ABC quer ser ouvida, e não apenas ouvir. Quer apresentar suas propostas, e não submeter-se ao prato-feito do cálculo político menor que hoje predomina em todas as esferas do poder local.

 

A contra carga da “Carta da Província do Grande ABC”:

 

 É exatamente porque se assiste hoje o suprassumo da anomia social, resultado entre outros do fracasso do Fórum da Cidadania do Grande ABC no passado não muito distante e do esfarelamento contínuo das representações de classe, que chegamos ao estágio de desencanto combinado com a acomodação geral e irrestrita. Chegamos ao extremo de não se identificar nem meia dúzia de lideranças sociais minimamente sensíveis a uma empreitada restauradora da mobilização social em busca de novos tempos. A sociedade civil da Província do Grande ABC já era no melhor passado que já teve apenas um ensaio elitista, imagine-se então nestes tempos de covardias explícitas em que todos fogem às responsabilidades inerentes ao traçado de novos caminhos a percorrer.

 

Mais “Carta do Grande ABC” do Fórum da Cidadania:

 

 O “Fórum pela Cidadania do Grande ABC” quer mostrar-se abertamente como aquilo que de fato é: uma plenária das entidades e segmentos mais representativos de uma das regiões mais importantes do País, e não como simples reserva de voto a que os políticos recorrem apenas nos períodos pré-eleitorais. Quer constituir-se como um organismo permanente e pluralista de articulação da sociedade civil do Grande ABC, com o objetivo de cobrar e fiscalizar o Executivo e o Legislativo, bem como debater e propor soluções para a região. As entidades aqui reunidas têm pelo menos dois pontos em comum: em primeiro lugar, a consciência de que apenas uma abordagem administrativa integrada de toda a região poderá equacionar seus graves problemas; em segundo lugar, a certeza de que a visão corporativa da política e da sociedade desserve ao Grande ABC e ao País. As entidades signatárias deste manifesto estão convencidas de que a maioria das opções políticas apresentadas ao Grande ABC não está sendo capaz de oferecer à sociedade local um projeto justo e eficiente de desenvolvimento urbano. A política clientelista e provinciana que há décadas tem predominado no Grande ABC corresponde hoje uma visão sectária e corporativa da vida social e econômica, igualmente prejudicial ao desenvolvimento da região e, portanto, condenável. É preciso dizer com toda clareza: o clientelismo e o corporativismo são, hoje, duas faces da mesma moeda – iguais na visão arcaica e perdulária dos recursos públicos, iguais na criação de reservas de mercado, de privilégios e de votos a expensas da maioria da população, iguais na perpetuação do atraso na economia e da demagogia na ação política, iguais até nas práticas e nos conceitos predatórios ao meio ambiente.

 

Mais uma réplica da “Carta da Província do Grande ABC”:

 

 O que encontramos diariamente na Província do Grande ABC são extratos condensados de rescaldos dos desvarios perpetrados ao longo de décadas sem que nos déssemos conta de que teríamos conta a acertar com o futuro. O evangelho da regionalidade está tão envelhecido e desrespeitado que não é por acaso que o que outrora era Grande ABC virou Província. O direcionamento original de metralhadoras críticas ao Executivo e ao Legislativo era apenas uma tentativa de estigmatizar dois setores de baixa produtividade técnica e de alta rotatividade de interesses escusos. Também a sociedade civil como um todo deve ser colocada no prato de débitos dessa balança de avaliação do que somos e queremos. Mais que isso: o ideal seria colocar a sociedade civil num tacho fervente de autocrítica para se evitar, novamente, que industrializadores de ilusões continuem a salvo dos descalabros coletivos por ação e por inação. Não mudamos nada, absolutamente nada, no modus operandi da política administrativa e da política partidária. Mais que isso, perpetuarmos e agravarmos delinquências que se tornaram rotina no País. Não somos diferentes da maioria dos microterritórios nacionais, mas vivemos situação mais grave porque perdemos o rumo do desenvolvimento econômico sustentável.

 

Último trecho do manifesto do Fórum da Cidadania:

 

 O “Fórum pela Cidadania do Grande ABC” propõe-se a ser uma voz crítica a tais concepções estreitas da vida social. Busca sintonizar a prática política do Grande ABC a uma visão moderna e pluralista da economia e da sociedade. Reivindica sua parcela de responsabilidade neste processo, consciente de que as opções feitas aqui serão capazes de oferecer parâmetros construtivos para todo o Brasil. Oferece ao debate público as idéias e reivindicações, em anexo, considerando-as prioritárias para qualquer projeto político que leve em conta o futuro do Grande ABC e do País. Exige, neste e nos próximos pleitos, um claro compromisso com o desenvolvimento integrado da região por parte de seus candidatos e de todos os candidatos que têm consciência da importância nacional do Grande ABC. Assegura, enfim, que tais compromissos lhes serão cobrados permanentemente.

 

Último trecho do Manifesto contra a Anomia da Província:

 

 Estamos absolutamente esgotados em paciência e em esperança quando tratamos de questões que envolvem o enorme guarda-chuva da regionalidade na Província do Grande ABC. As experiências fracassadas no passado e a ausência de perspectiva no presente formam uma associação cujo baixo-astral não pode ser atirado sob o tapete da hipocrisia e de ajeitamentos deliberados a enganar o distinto público. Neste ponto, a revista digital CapitalSocial tem sido permanentemente o porto de garantias do manancial de coerência e de comprometimento com a sociedade que outras instâncias da mídia e da sociedade como um todo ignoram ou minimizam, agasalhando-se no silêncio ante a confluência de malversadores públicos, sociais e econômicos. Enquanto estivermos entregues ao controle ditatorial de formadores de opinião sem lastro e inteligência e, acima de tudo, com compromissos única e exclusivamente com os próprios bolsos, não temos a menor possibilidade de reagir ordenadamente. A Província do Grande ABC vive uma eterna ressaca do desalento deixado pelo Fórum da Cidadania, movimento que pretendia revolucionar as relações sociais na região mas que, por força de estocadas mortais de solapadores internos e externos, transformou-se em inexpugnável marco de decepção e atraso.



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