Parcela substantiva do esplendor econômico do Grande ABC acumulado nas três décadas que antecederam ao Plano Real e também as mudanças provocadas pela abertura econômica foi mesmo para a cucuia nos últimos 13 anos, entre janeiro de 1995 e dezembro de 2007, conforme pungentes testemunhos da realidade social das ruas e das estatísticas. É o que temos apresentado nesta série especial e inédita sobre esta importante região brasileira com improcedente e farsesca fama de berço do capital social que o País inteiro inveja. Estamos muito longe disso.
Somos um mito de cidadania participativa. Como o Brasil, não passamos pela estreitíssima porta do corporativismo legítimo nas fábricas, nas instituições empresariais, nos redutos culturais, nas comunidades. Capital social é outra coisa. É o rompimento de diques econômicos, sindicais, culturais. Mais que o rompimento, é a integração de agentes diversos em busca de objetivos em comum, principalmente em defesa de gerações futuras. O Grande ABC virou palco de um salve-se-quem-puder despudorado. O que vale é o aqui e agora. O resto que se dane.
No capítulo anterior expusemos o Grande ABC como única região entre as cinco principais do Estado que apresentou declínio do PIB de transformação industrial, base do PIB convencional, nos 13 anos pós-Plano Real.
Agora vamos ao detalhamento.
A queda do PIB do Grande ABC de 0,95% ao ano, em média, nesse período, passou completamente ignorada — e mais que isso, covardemente relegada a segundo plano — das chamadas lideranças sociais e econômicas da região. Exceto este jornalista e a equipe que comandou na revista LivreMercado (agora sob nova administração, que prefere o oba-oba do jornalismo de conveniência) praticamente nenhuma voz se levantou com frequência para denunciar a derrocada.
É verdade que uma ou outra representação da sociedade se manifestou em situações especiais, como articulistas de Nosso Século XXI, em duas edições coordenadas por mim e também pela jornalista Maria Luisa Marcoccia. Fora isso, o que tivemos foi um festival desavergonhado de manipulação de dados, de cenaristas empedernidos movidos por interesses na maioria das vezes mesquinhos, mercantilistas. Era preciso tapar o sol da desindustrialização a qualquer custo. Não faltaram prefeitos que boicotaram a publicação da qual era o responsável editorial. Não lhes convinham, entre vários pontos, atrapalhar a abertura de cortinas de espetáculos midiáticos mistificadores da realidade.
Fosse um país que perdesse tanta produção de riqueza durante tanto tempo, seria um escândalo. As medidas econômicas seriam tomadas a toque de caixa para buscar alternativas. Como o Grande ABC é uma periferia gataborralheiresca subordinada à grandiosidade da Capital tão próxima, e como por aqui vagueiam fantasmas triunfalistas que ganham formas materiais permanentes porque detêm o controle do capital monetário, do capital financeiro e do capital político-partidário, nada aconteceu no período. Exceto a tentativa de demonização deste jornalista.
E olhem que a gravidade do quadro foi ainda maior nos oito primeiros anos do governo de Fernando Henrique Cardoso, quando o PIB da indústria de transformação caiu em média por ano 4,12%. Uma catástrofe igualmente ignorada pelos chamados formadores de opinião e pelos tomadores de decisão. A ordem unida era ignorar os pontos negativos e vitaminar supostas conquistas.
Mesmo com a recuperação da indústria automotiva durante os seis primeiros anos do governo Lula da Silva, o Grande ABC não apagou as profundas marcas da desindustrialização pós-Plano Real. Tanto que a queda média anual de quase 1% do PIB em 13 anos desestabiliza qualquer iniciativa de reapresentar a peça de engodo das forças políticas e econômicas sempre prontas a vender gato por lebre.
Choque numérico
O levantamento que dá conta de que o Grande ABC tornou-se a única região que se lascou nesse período na produção de riqueza é um choque que precisa ser assimilado até mesmo por mim: ao buscar números de outras áreas geográficas, imaginava que uma ou outra situação análoga teria se reproduzido.
Qual nada. Até a Baixada Santista, de nove municípios, 1,6 milhão de habitantes, território três vezes maior que o Grande ABC, aponta dados bem melhores: cresceu em média por ano no período 3,90%. A economia da Baixada Santista não passava de 20% da economia do Grande ABC quando da introdução do Plano Real. Treze anos depois alcança 42%, com população quase na mesma proporção. O que, em última instância, coloca o PIB de produção industrial per capita em patamar semelhante. Isso parece supérfluo, mas não é: o repasse do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) se dá em grande escala com base na proporção do Valor Adicionado, ou seja, do PIB da indústria de transformação.
A comparação com a Região Metropolitana de Campinas (G19) é ainda mais indigesta à autoestima local. Aquele território de 19 municípios, população equivalente a do Grande ABC e espaço quatro vezes maior, cresceu em média por ano durante aquele período 4,96%. Não há segredo nesse vôo de competência. Os municípios que formam a segunda maior concentração de riqueza do Estado, atrás apenas da Capital, utilizaram-se de atratividades que até flertaram com excessos desnecessários da guerra fiscal, tantas são as condições de infra-estrutura para chamamento de empreendimentos novos ou atravancados na Região Metropolitana de São Paulo.
Metrópole paulistana
Se a Baixada Santista e a Região Metropolitana de Campinas já não bastassem para humilhar o Grande ABC, pego um exemplo mais contundente para mostrar o quanto os sete municípios locais dormiram em berço esplêndido e o quanto foram ludibriados por vigaristas estatísticos de plantão.
Trata-se da área menos nobre da Região Metropolitana de São Paulo, o chamado G29, integrado por todos os municípios, menos o G7 (Santo André, São Bernardo, São Caetano, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra), além de São Paulo, Osasco e Guarulhos.
Esse grupo de 29 municípios (Carapicuíba, Franco da Rocha, Itapevi, entre outros) apresentou crescimento médio do PIB industrial de 6% durante os 13 anos. Não há erro de digitação: foram mesmo 6% de crescimento médio ao ano. Saiu de redondos R$ 28 bilhões em 1994 (já corrigidos pelo IGP-M) e atingiu 50,6 bilhões na ponta da pesquisa, em 2007. O que isso quer dizer? Que o crescimento da indústria de transformação na Grande São Paulo se dá em direção oposta a do Grande ABC que, entre outros obstáculos, enfrenta a barreira ambientalmente complicada da Mata Atlântica. Num quadro comparativo, o G29 representava apenas metade do PIB da indústria de transformação do Grande ABC. Na outra ponta da pesquisa, não só empatou o jogo como ultrapassou em 1%.
Outra geografia que consta desse trabalho é a Microrregião de Sorocaba, com 15 municípios. Após a implementação do Plano Real, aquela área de 1,3 milhão de moradores e de território cinco vezes maior que o Grande ABC registrou avanço médio anual do PIB da indústria de transformação de 4,66%. A nomenclatura não é obra do acaso: Sorocaba sozinha representa 40% do PIB microrregional. Mas nem isso serve à defesa de teorias contestatórias — no Grande ABC São Bernardo tem influência no PIB regional semelhante.
De todas as áreas das quais lancei mão para confrontar os números do Grande ABC nos 13 anos pesquisados, a Microrregião de São José dos Campos exibiu números mais modestos, mas melhores. Foi 1,73% de crescimento médio anual do PIB. A capital daquela área, São José, controla 50% do PIB industrial. Os demais municípios do chamado G8 giram em torno da capital nacional da indústria aeroespacial.
O G90 (todos os municípios das cinco áreas pesquisadas) praticamente não perdeu participação relativa no Estado de São Paulo, de 645 municípios. Em 1994, o G90 contava com 73,7% do PIB estadual. Treze anos depois caiu para 71,6%. Nada alarmante.
Bem diferente da situação do Grande ABC, o G7, que, no mesmo período, viu o estilhaçamento da riqueza industrial derrubar participação estadual de 13,89% para 9,19%. O G19 (Campinas à frente) aumentou participação de 9,86% para 12,26%, numa lógica inversão de valores com o Grande ABC. O G9 (Santos à frente) quase não se moveu, de 3,29% em 1994 para 3,88% em 2007. O desempenho do G15 (Sorocaba à frente) foi um pouco melhor, ao sair de 2,83% de participação estadual em 1994 para 3,44% no ponto extremo da pesquisa.
Já o G29 (Grande São Paulo sem o Grande ABC e sem São Paulo, Guarulhos e Osasco) adiantou mais os atacantes de produção industrial, passando de 7,06% para 9,49%. O G39 (Grande São Paulo completa) foi comprometido pela fragilidade do Grande ABC e caiu de 51,88% de participação estadual em 1994 para 46,65% em 2007.
São Paulo decepciona
O crescimento do PIB da indústria de transformação do Estado de São Paulo durante esses 13 anos se deu à média anual de 2,49%, resultado do avanço em números absolutos de 32,46% no período. Como mostraremos mais adiante, em novos capítulos, o desempenho paulista deixou muito a desejar. Como Estado, também sofremos o remelexo geral de outras áreas federativas que se deram conta de que indústria é a porta de entrada da mobilidade social.
Verdade que o Grande ABC usufruiu durante pelo menos três intensas décadas de sucesso do parque industrial formado por grandes conglomerados internacionais e também por pequenas empresas familiares, a maioria das quais exterminadas do processo por conta da internacionalização da economia sem as devidas contrapartidas.
Os efeitos da abertura econômica que atingiu em cheio a indústria automotiva do Grande ABC foram mais contundentes do que a rebeldia do chamado Novo Sindicalismo, Lula da Silva à frente. Também apresentaremos nesta série números e fatos que sustentarão essa afirmativa.
Antes que apressadinhos ideológicos atirem tomates, antecipo que não dispenso a ponderação de que o movimento sindical no Grande ABC incomodou e provocou evasão de empresas. Mas essa é a parte mais evidente e mais simplificada da questão, que precisa ser analisada sem paixão. E o será no devido momento.
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