Por conta de situação que relato abaixo, sou obrigado a responder à demanda de hoje de manhã no WhatsApp reservado somente a leitores que selecionei ao longo dos anos e que formam um batalhão de formadores de opinião e tomadores de decisão. Sim, é muito bom que as montadoras de veículos vendam cada vez mais, porque o Grande ABC sofre da Doença Holandesa, especialmente São Bernardo. Mas, porém e contudo, isso não é tudo.
O leitor quis saber mais. Quis saber se, supostamente no comando de Redação do Diário do Grande ABC (ele vem acompanhando a série sobre o Plano Real Editorial que executei durante noive meses no jornal ) também teria alçado à condição de manchete principal da página o aumento de vendas em julho, e os enunciados correspondentes. Respondi que sim. Mas ponderei de novo: é preciso relativizar.
Como o leitor pode perceber, a conversa rendeu duas afirmativas e duas considerações. Prometi a ele que as ponderações seriam apresentadas na edição de hoje de CapitalSocial. É o que faço.
MANCHETISSIMA REGIONAL
Primeiro, um esclarecimento interessante: talvez a única especificidade que restou dos rastros daquele Planejamento Editorial Estratégico que apliquei no Diário do Grande ABC seja a regionalização da manchetíssima (é assim que chamo a manchete das manchetes de primeira página). À frente do jornal em 2004, adotei como cláusula pétrea levar temática regional a cada dia do produto impresso. Antes, a manchetíssima do Diário estava associada ao Jornal Nacional. Já contei como se deu essa história em termos de efeitos de produção e produtividade, por isso não vou repetir. Diria apenas que durante todo o processo operacional, trabalhava-se com três alternativas de manchetíssima regional. Uma teria de ser mais vigorosa que as demais para chegar ao pódio.
A manchetíssima do Diário do Grande ABC de hoje (“Montadoras têm o melhor desempenho em 57 meses”) exigiria, sem derivação, muito mais do que foi apresentado em forma de notícia. Requereria agregado de valores, que o Planejamento Estratégico de então instalava como essencial à diferenciação de um produto que iria muito além da informação rasa – caso da edição do Diário do Grande ABC de hoje, para variar.
Vou ser breve no apontamento de buracos. Vou fazer mais que isso: vou transcrever na sequência os primeiros trechos da matéria do Diário do Grande ABC e, em seguida, apresento como seria o texto encorpado, contextualização, por assim dizer. Vamos primeiro, então, ao Diário do Grande ABC:
REPORTAGEM DO DIÁRIO
A indústria automobilística iniciou o segundo semestre com boas perspectivas. Em julho foram produzidas 247 mil unidades, o que representa alta de 17% em relação a junho. Além disso, é a melhor marca do setor desde outubro de 2019. Desde o início do ano foram fabricados 1,385 milhão do ano, superando em 5,3% os primeiros sete meses de 2023. Os números foram divulgados ontem pela Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores). O consumo interno foi o principal combustível do setor. Em julho, 242 mil veículos foram emplacados. “Foi um volume tão relevante que superou até o mês de julho do ano passado, que havia sido fortemente impulsionado pela MP 1.175 do governo federal, aquela que oferecia descontos para a compra de carros zero”, comemorou Márcio de Lima Leite, presidente da Anfavea. Mereceu destaque a elevação de 43,3% nos emplacamentos de ônibus, segmento que vinha tendo uma produção muito elevada, mas sem o mesmo efeito nas vendas. “Agora os estoques começam a escoar por conta de programas como o Caminho da Escola e renovações de frotas em ano de eleições municipais, projetando um segundo semestre muito positivo para o transporte público no País”, afirmou Leite.
AGREGADO DE VALOR
Agora, vou fazer rapidamente um contraponto que levaria o leitorado a contar com mais informações:
Uma boa notícia para a Economia do Grande ABC, duramente impactada nestes século por conta da evasão industrial que vai muito além da produção de montadoras de veículos e autopeças: a Anfavea anunciou ontem crescimento de vendas em julho. O resultado é o melhor nos últimos 57 meses, ou seja, desde outubro de 2019. Os dados, entretanto, precisam ser comedidamente festejados na região, especialmente em São Bernardo e São Caetano, que concentram a maioria do sistema automotivo regional. Segundo estudos oficiais, o Grande ABC representa apenas metade da produção nacional de 2003. Recuperar o tempo perdido é improvável porque a tendência também registrada nos estudos aponta que a evasão industrial do setor seguirá adiante, deslocando-se, no caso do Estado de São Paulo, para as regiões administrativas de Campinas e Sorocaba.
DESAPONTAMENTOS
O contexto que utilizo deixa o recado de que tudo que é bom no setor automotivo nacional deve ser mesmo festejado, mas é indispensável que não se compre gato por leve para evitar desapontamentos. O que é comprar gato por lebre? É apontar um horizonte de redenção regional por causa do setor automotivo.
Não vou dizer -- entre outras razões -- porque não sou burro que a indústria automotiva da região já era, mas quem acha que continua sendo é muito mal informado. Prometo que na edição de amanhã vou apresentar mais dados, dados consistentes, que vão levar muita gente à meditação, à reflexão, quando não à inquietação.
Aliás, inquietação é o nome do jogo que deveria ser resultado do ambiente regional na área econômica. Entretanto, o que temos geralmente quando o setor automotivo ganha fôlego circunstancial, é acreditar que o Grande ABC finalmente encontrou uma luz no fim do túnel de desindustrialização continuada e insaciável. Esqueçam isso, por gentileza.
REPERCUSSÃO REGIONAL
Já estou cansado de escrever sobre variáveis que poderiam reduzir a velocidade de queda do PIB Industrial da região, que afeta o conjunto dos sete municípios. Isso mesmo, afeta todos os municípios porque embora sofram muito mais com a Doença Holandesa Automotiva, São Bernardo e São Caetano irradiam ao entorno regional vicissitudes de produção industrial que de alguma forma têm as digitais automotivas.
Tanto é verdade que num balanço deste século, que está associado aos 20 anos derradeiros do século passado, o poderio destrutivo do ambiente regional colocou de quatro praticamente todas as demais cadeias produtivas, que sumiram do mapa. Exceto o setor automotivo, apenas o complexo químico-petroquímico é representativo em termos de participação em números absolutos e relativos.
Tanto é verdade que também se tornou Doença Holandesa. Ou seja: vivemos na corda bamba do setor automotivo e com a corda no pescoço do setor químico-petroquímico. Diante dessa constatação, me parece que os cuidados jornalísticos com as notícias boas não poderiam se deslocar do pronto-socorro da contextualização, a fim de evitar que triunfalistas incorrigíveis ganhem fôlego e comecem a avançar novamente em direção a fortalezas que não passam de castelos de areia.
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