Economia

Mais uma voz contra
desindustrialização

DANIEL LIMA - 18/07/2024

Um artigo escrito recentemente pelo múltiplo  Gustavo Donato para o site do jornal Repórter Diário é um convite a reflexões. Por isso, decidi pegar carona e, como se participasse de um debate virtual, meti a colher de aço de regionalista para rebocar o trabalho às páginas desta publicação que já completou 35 anos de circulação. 

O que Gustavo Donato escreve é de muita importância como estímulo ao debate sobre regionalismo no Grande ABC. Mesmo que praticamente em toda a extensão do texto não haja muita identificação com a realidade detalhada da região. Uma coisa não atrapalha a outra, ou muito diferente disso: desconhecer ou conhecer pouco a realidade regional não é impeditivo  a propostas.  Mais que isso: contribui para alargar o horizonte. 

Gustavo Nonato tem um currículo formidável e por isso mesmo tem-se que dar valor ao artigo que assinou de título emblemático: “ Da indignação à ação: caminhos urgentes para o ABC e o Brasil”. Gustavo Donato é conselheiro de empresas, professor associado da Fundação Dom Cabral, membro do B20 e ex-reitor da FEI. É engenheiro mecânico (FEI), MBA em Administração (FGV-EAESP), doutor em Engenharia (POLI-USP) e conselheiro formado pela Fundação Dom Cabral, com vivências internacionais, formação executiva (MIT) e em Futures Studies into Strategy (Copenhagen Institute for Futures Studies). Liderou dezenas de projetos de PD&I e estratégia com empresas, recebeu prêmios científicos e de gestão e é autor de mais de 140 artigos, capítulos de livros ou patentes. 

Agora vamos às questões publicadas e respondidas no site do Reporter Diário e, na sequência, de forma escalonada, às minhas contribuições: 

GUSTAVO DONATO -- A região do ABCDM, outrora um dos principais polos industriais do Brasil, enfrenta uma grave crise de desindustrialização, refletindo a perda de empregos e a redução da atividade econômica. No entanto, essa região, composta por cidades como Santo André, São Bernardo, São Caetano, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, ainda possui potencial para se reinventar. A chave para essa transformação está em um olhar crítico sobre a situação atual e em ações coordenadas e estratégicas como região para revitalizar o ambiente de negócios, a atratividade e, consequentemente, a economia local. 

CAPITALSOCIAL – A constatação empírica de que o Grande ABC é uma nau sem rumo de desindustrialização vem desde o ano de 1990, quando este jornalista lançou a revista LivreMercado. E durante todo esse período martelou-se a mesma musiquinha de cobrança e exposição da realidade. Tudo esbarrou na carência de regionalidade. Escrevemos muito sobre isso. O Grande ABC não conta com regionalidade em absolutamente nada, caso o conceito de regionalidade seja mesmo a concepção de uma megacidade de três milhões de habitantes, não um bicho de sete cabeças territoriais rivais entre si, que fingem irmandade.  Esse é o núcleo de todos os estragos. A pedagogia da regionalidade é matéria obrigatória às grandes mudanças de que necessitamos. 

GUSTAVO DONATO -- Embora o PIB da região tenha apresentado avanços no início de 2024, com crescimento da atividade industrial e da geração de empregos, não se pode perder de vista as grandes transformações em curso na região. Por exemplo, na década de 1970 o ABC era responsável por 4,57% do PIB brasileiro, fatia que decresceu para 2,52% em 2004 e menos de 2% após o ano de 2020; ou seja, uma queda vertiginosa de mais de 50% na participação do PIB nacional em menos de 50 anos. Uma vez que a região é historicamente ancorada na cadeia automotiva, é também importante avaliar o que tem ocorrido com o setor na região. O ABC era responsável por 82% da produção nacional de veículos na década de 1980, o que passou a representar algo em torno de 23% em 2005; novamente, uma redução de protagonismo muito intensa e que levou consigo não somente operações de montadoras e centros de PD&I, mas também indústrias de autopeças e diversos outros agentes das cadeias, com impactos diretos em outras atividades de sustentação.  

CAPITALSOCIAL -- Os dados mais atualizados garantem que o Grande ABC não conta com mais de 10% de participação nacional no setor de produção de veículos. Trata-se de perda relativa e também em valores absolutos. O drama é que internamente seguimos dependendo demais do setor automotivo, cuja importância relativa continua acentuada, embora não existam métricas confiáveis. Sabe-se que ultrapassaria a 50% do Valor Adicionado Industrial. Dessa forma, estamos à mercê de insistente queda de riqueza sobrerrodas. No livro Detroit à Brasileira, que comecei a produzir, descrevo todo esse histórico. A participação da região no PIB Nacional, que já chegou próxima a 5%, caiu e persiste há muitos anos em torno de 1,67%. Ou seja: estamos para o Brasil assim como Rio Grande da Serra está para o Grande ABC. 

GUSTAVO DONATO -- A realidade atual da região envolve uma dicotomia. Se por um lado observamos as montadoras que operam no ABCDM com anúncios de investimentos relevantes, como por General Motors, Mercedes-Benz, Scania, Volkswagen e Eletra (ônibus elétricos), testemunhamos o encerramento recente das operações da Ford, da Toyota, o enxugamento de alguns centros de engenharia instalados na região e não temos obtido êxito em atrair investimentos de novos players industriais de forma sistemática, a exemplo das fabricantes automotivas chinesas (sejam de leves ou pesados) ou de outras empresas industriais de setores emergentes.

CAPITALSOCIAL -- O Grande ABC é um território muito caro à produção industrial e, portanto, pouco competitivo para os padrões nacionais e internacionais. A vanguarda esquizofrênica do setor automotivo, a partir da metade do século passado, tornou-se  vantagem competitiva enquanto não havia disputa por investimentos no setor sobrerrodas. Quando o Brasil, guerra fiscal a dar com pau, descobriu as montadoras, e as montadoras locais já emitiam sinais de cansaço nos embates com o sindicalismo bravio, tudo se modificou. O Grande ABC é um território escorraçado pelos investidores que contam com outras e muitas opções. Somente em situações bem diferentes, e que preferencialmente se distanciem dos custos sobressalentes locais, o chamado Custo ABC, será possível imaginar investimentos reestruturantes.    

GUSTAVO DONATO -- Se faz necessária a autocrítica de que mesmo diante de tantas pressões e sinais de urgência pela transformação, o parque industrial do ABCDM não tem correspondido à modernização que o habilite para a eficiência das indústrias 4.0 e 5.0, não tem diversificado sua atuação para cadeias de alta tecnologia e emergentes, como de energia, agro, eletrificação, bioeconomia, TI, entre outras, assim como continua fundamentalmente voltado para o atendimento do mercado interno, deixando na mesa valor não capturado e uma valiosa atenuação de volatilidade de demanda. 

CAPITALSOCIAL -- Esperar que novos investimentos, sob conceitos de modernidade como sugere o artigo, é acreditar em Papai Noel. A  proposta do autor é respeitável, deveria ganhar amplitude, mas, infelizmente, se trata de algo que a  proposta a realidade histórica da região não possibilita dar vazão a expectativa sólida. 

GUSTAVO DONATO -- Embora a região esteja crescendo em serviços, em real state e em logística, o crescimento da indústria é essencial para a retomada da tão importante complexidade econômica sendo perdida ao longo das últimas décadas. A concorrência de outros municípios pela atração de investimentos também tem sido não só maior, como altamente competitiva. A atratividade a investimentos fabris de grande monta requer cadeia produtiva atualizada, eficiente, capital intelectual, assim como entram na equação as vantagens tributárias e condições imobiliárias e logísticas. 

CAPITALSOCIAL -- O Grande ABC passou nos últimos 30 anos por uma tempestade que levou embora praticamente todas as cadeias produtivas, salvando-se apenas duas por razões que confirmam a premissa de que nem tudo está perdido, embora o que tenha sobrado acentua  dependência que se encaminha à catástrofe por conta de uma concentração relativa ruinosa. As cadeias automotivas, de nossa Doença Holandesa Sobrerrodas, e a cadeia Petroquímica-Química, que compõe outra Doença Holandesa, são o que temos para o almoço e o jantar indigestos. 

GUSTAVO DONATO -- É evidente que o ABC possui localização estratégica, malha rodoviária, suporte logístico em expansão e proximidade com o porto de Santos. Mas é também verdade que na equação de múltiplas variáveis, que envolve uma decisão de investimentos, tem perdido para outras regiões – só para falar do entorno, vejamos casos de cidades como Sorocaba, Jundiaí, Barueri e outras que, mesmo próximas da Capital, têm implantado políticas diligentes de desenvolvimento regional e conquistado protagonismo no desenvolvimento do Estado de SP. 

CAPITALSOCIAL -- Virou fetiche a ser exorcizado a obsessão de que o Grande ABC tem localização estratégica. Não tem. Está encalacrado. Já produzi inúmeros estudos sobre isso. A lógica funcional de que logística é a menor distância entre dois pontos extremos há muito foi para a casa do chapéu. Logística de fato é o resultado de menores custos  entre dois ou mais pontos. O Grande ABC ficou cada vez mais distante do Porto de Santos, do Aeroporto de Guarulhos e de tudo o mais porque a logística interna, entre as cidades, e mesmo no interior de cada cidade, é um caso, enquanto a logística externa, do Rodoanel e Imigrantes, favorece municípios mais competitivos nos custos de transporte, exceto naturalmente, o de última milha, comum a todos. Desde a inauguração do trecho Oeste do Rodoanel Mario Covas, que beneficiou a região de Osasco, passando pelo trecho Sul, no Grande ABC,  perdemos de goleada para outras regiões no entorno da Capital.   

GUSTAVO DONATO -- De acordo com um estudo do International Institute for Management Development (IMD), em colaboração com a Fundação Dom Cabral, lançado em junho de 2024, o Brasil perdeu mais duas posições no ranking global de competitividade – ocupa a 62ª posição, entre 67 países avaliados; e preocupa ver a educação em todos os níveis e também a educação em gestão na última ou penúltima posições. Observando por sua vez os resultados do Global Innovation Index 2023 da WIPO, mesmo sendo a 9ª maior economia do mundo, o Brasil está na 49ª posição em termos de competitividade global. 

CAPITALSOCIAL -- A derrocada internaiconal do Brasil é café pequeno perto do que temos no Grande ABC,  entre outras razões porque somos um Brasil piorado praticamente em todos os indicadores econômicos, inclusive os que levam em conta a transversalidade educacional e tecnológica, por exemplo. 

GUSTAVO DONATO -- A situação é ainda mais alarmante quando se observa a interação entre universidades e empresas, onde ocupamos a 78ª posição, e o ambiente de negócios para investimentos internacionais, onde estamos em 118º lugar entre 132 países. Esses números revelam uma desconexão profunda entre o potencial econômico do país e sua capacidade de inovar e competir no cenário global. Embora a balança comercial brasileira seja superavitária, isso se deve predominantemente à exportação de commodities como soja, milho e minério de ferro, que nos são muito importantes, mas que possuem baixo valor agregado. A balança comercial de produtos transformados pela indústria e de alta intensidade tecnológica, no entanto, é negativa e continua em declínio. 

CAPITALSOCIAL -- No caso do Grande ABC, não existe integração relevante entre os setores produtivos e a Universidade Federal local. Trata-se de abstração qualquer iniciativa  para provar o contrário. A UFABC é um estranho no nicho da regionalidade. É, como na maioria dos casos das federais, um tentáculo avesso aos princípios do capitalismo. E as demais instituições educacionais de Ensino Superior seguem rituais  próprios, individualistas, específicos, sem qualquer intersecção com o conjunto ou a individualidade dos municípios. Somos uma casa da mãe-joana também quando se trata de cooperação entre capital e academia. 

GUSTAVO DONATO -- Se por um lado as constatações acima são alarmantes, são oportunidades para estados e regiões que desejam reverter tal quadro, em um país que possui a quarta matriz elétrica mais limpa do mundo, abundância de recursos naturais e localização privilegiada não só geograficamente como do ponto de vista logístico, climático e de desastres. E não se faz necessário aguardar uma grande política industrial ou movimento nacional – deve-se agir imediatamente. O que distingue organizações e regiões de sucesso é a essencial visão de longo prazo e estratégica, tanto por parte do poder público quanto das empresas e universidades. A região precisa de um planejamento que transcenda mandatos políticos e se baseie em gestão profissional e uma governança eficiente e ambidestra. Uma mentalidade ambidestra envolve entregar resultados no hoje, mas ao mesmo tempo zelar pela construção de um amanhã competitivo e sustentável.

CAPITALSOCIAL -- Há mais de duas décadas batemos na mesma tecla de planejamento estratégico para a região, a partir dos conceitos de Desenvolvimento Econômico. Chegamos a fazer concessão, torcendo para que pelo menos um Município tratasse de levar adiante a ideia, porque a medida poderia incrementar os demais, mesmo que por políticas administrativas egoístas. Houve acenos que não se confirmaram. Os mandachuvas da região estão se lixando para o futuro. Só pensam em votos e dinheiro, não necessariamente nessa ordem. Até porque a ordem dos fatores não atrapalha o desastre final. 

GUSTAVO DONATO -- Se questionarmos o Consórcio Intermunicipal do ABC e os prefeitos sobre qual é a visão de futuro para o ABCDM em 5, 10 e 15 anos, receio não encontrarmos uma resposta em uníssono ou, pior, talvez não encontrarmos uma resposta. O fortalecimento do consórcio e o desenho de uma visão e políticas ambiciosas e articuladas para a região, com a participação ativa de entidades representativas do comércio e da indústria, são vitais para criar uma mobilização efetiva em torno de um projeto de futuro. 

CAPITALSOCIAL -- O Consórcio do Grande ABC, que chamo de Clube dos Prefeitos, é uma ficção. Depois da morte de Celso Daniel, seu criador, virou pó. Qualquer coisa que se leve a sério sobre a utilidade histórica do Clube dos Prefeitos é um flerte com a ignorância ou com a insensatez. O divisionismo político e agora também ideológico se apresenta como obstáculo intransponível. Vaidades imperam. E o modelo, sujeito a mudanças antes de Celso Daniel morrer, caiu no esquecimento.

GUSTAVO DONATO -- No processo de reversão do quadro acima delineado, é imperativo investir na educação em todos os níveis, desde a básica até a superior, passando por cursos técnicos e profissionalizantes. É preciso fortalecer a formação de profissionais qualificados em áreas estratégicas como tecnologia da informação, engenharia, gestão e logística. Isso é essencial para sustentar inovação, eficiência produtiva, capacidade de geração de valor nos negócios e um processo de neoindustrialização que reinsira a região de forma competitiva em cadeias atuais e emergentes. Além disso, é crucial fomentar o ecossistema regional de inovação, pensando a região, por exemplo, à luz do conceito de distrito de inovação. Isso inclui fortalecer centros de pesquisa e desenvolvimento nas empresas, incentivar o patenteamento, fortalecer os laços entre universidades, poder público, parques tecnológicos e empresas, e apoiar startups. A promoção de um ecossistema robusto de inovação é fundamental para aumentar a competitividade da região. 

CAPITALSOCIAL -- Tudo que o autor expõe faz parte de um receituário que não cabe no figurino obeso de vícios e caricato de ações na região. Nenhum dos parágrafos se encaixa no modelo ultrapassado do Grande ABC, tanto em forma de institucionalidades como de pragmatismo. Competitividade não é uma palavra-conceito examinada com rigor entre os tomadores de decisão da região. Se apertar, muitos vão dizer que não sabem do que se trata. Talvez nem consigam pronunciá-la. Alguns certamente vão surrupiar um dos “ti” de competitividade. 

GUSTAVO DONATO -- A indignação com a atual situação deve ser uma força motriz para a ação dos agentes regionais. A região do ABCDM merece uma estratégia clara e ações concretas que voltem a fazer bom uso dos tantos recursos disponíveis, do amplo capital intelectual e humano, trazendo desenvolvimento e atratividade por meio de um novo posicionamento competitivo, profissional e sustentável em variadas cadeias produtivas que se projetem para além do automotivo. Educação, inovação e visão de longo prazo devem ser pilares de um projeto de futuro integrado e com chances reais de revitalizar a economia local, proporcionar uma melhor qualidade de vida para a população e, quiçá, se tornar um caso futuro de desenvolvimento sustentável para o Brasil. Essa transformação não será fácil ou imediata e exigirá esforço, disciplina e colaboração de todos os agentes e setores da sociedade. Mas se há uma certeza é a de que o não agir não é opção para o ABCDM.

CAPITALSOCIAL -- Infelizmente, o que temos de fato e para valer na região é um ambiente institucional fúnebre em mobilização que precisaria reunir pelo menos duas dezenas de boas cabeças para liderar movimento que, antes de ir a fundo nas propostas do autor do texto, tratem do básico em forma de preparação para saltos maiores.

E o básico é entender que o Grande ABC do passado morreu de morte matada, principalmente porque jamais viveu como exemplo de regionalidade, mas sob o signo de corporativismo. Portanto, não tivemos morte alguma, porque não se mata quem não existiu. Precisamos fundar o Grande ABC que,  há mais de meio século,  é bajulado sem fazer nada para mostrar-se efetivamente transformador e exemplo de comprometimento de lideranças narcisistas.  

É muito pouco provável que o sentimento de indignação sugerido pelo articulista sair do quarto de despejos de leniência com o quadro institucional esfacelado a partir da morte do prefeito Celso Daniel. Quem acompanha o cotidiano da região com antenas ligadas para capturar o ambiente em busca de otimismo com o futuro acabará em depressão. O Grande ABC não existe como execução institucional que possa catapultar pontos essenciais às mudanças mais simples, quanto mais à sofisticação de ferramental para o combate em busca, principalmente, de investimentos novos, de novas fontes de produção industrial e de serviços de valor agregado.



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