Sociedade

Um polivalente cultural

MALU MARCOCCIA - 10/01/1998

Se você precisa falar com Milton Andrade, nunca esqueça de mencionar com qual dos Miltons deseja contato. Aliás, ele próprio, sempre bem humorado e falante, faz a pergunta ao interlocutor do outro lado do telefone ou do imenso muro que protege sua residência, uma das mais antigas de São Caetano, que resiste ao furacão comercial que varre a badalada avenida Goiás. Milton Andrade foi quem criou a renomada Fundação das Artes de São Caetano, é advogado, professor, locutor de rádio, ator e, não satisfeito, agora envereda pelo mundo dos livros. Está preparando um inédito Dicionário do Espetáculo, com verbetes usuais nas áreas de teatro, dança, circo, dramaturgia e ópera, entre outras manifestações artísticas com as quais convive há pelo menos 30 de seus 60 anos de idade.


A obra é uma contribuição não apenas aos profissionais do meio artístico, mas ao público leigo que aprecia espetáculos culturais e que engole a seco quando se defronta com palavras como libreto, suítes e grupo de percussão.


“Não há nada parecido no Brasil ou em Portugal” — diz ele, entusiasmado com mais esse entre novos desafios que pretende abraçar, agora na condição de recém-aposentado da Eletropaulo, onde vinha cuidando do patrimônio histórico das quatro energéticas paulistas – incluindo Cesp, Comgás e CPFL (Cia. Paulista de Força e Luz). Outro fato novo que o instiga é a criação da Orquestra Sinfônica do Grande ABC, para a qual acaba de ser convidado a contribuir, a partir da experiência de 16 anos no comando da Fundação das Artes de São Caetano.


Basta dizer que saíram da Fundação, sem exceção, todos os jovens regentes atuais do Estado de São Paulo, incluindo Flávio Florence, de Santo André, que dirige a maior orquestra regional do País. “Temos que viabilizar uma Fundação de direito privado, em que as Prefeituras cuidariam da gestão, as Câmaras fiscalizariam e a iniciativa privada seria sua grande mantenedora, com patrocínios, e também consumidora, adquirindo a bilheteria dos espetáculos” – antecipa, como uma das soluções.


Para os mais jovens, não é difícil identificar Milton Andrade: há cerca de 10 anos ele faz o papel de vovô no comercial do Bankfone do Banco Itaú. Foram oito peças publicitárias que invadiram as mídias no Brasil inteiro. Já teve também minutos de fama em comerciais rodados em outros Estados para a Encol, Souza Cruz e Shopping Brasília. Para os mais eruditos e aficcionados por teatro basta citar suas atuações nos últimos cinco anos em peças como Um Dia Muito Especial, com Tarcísio Meira e Glória Menezes, Macbeth, com Antonio Fagundes, Divinas Palavras e Rastro Atrás e, durante todo este mês de janeiro, na interpretação de um conde arruinado em Ivanov, com o Grupo Tapa, no Teatro da Aliança Francesa na Capital.


Mas tem mais: para mostrar que não falta energia a um sexagenário disposto a continuar a gerir as atividades com a mesma intensidade com que trabalhava no Departamento Jurídico da ZF e na década e meia em que esteve à frente da Fundação das Artes, Milton já está envolvido nos ensaios de Sábado, Domingo, Segunda-Feira, com estréia marcada para março e elenco encabeçado por Paulo Autran e Cleide Yaconis. A direção é de Ulisses Cruz e vai falar sobre os dramas existenciais de uma família napolitana que, num único fim-de-semana, confraterniza, briga e se reconcilia, na respectiva sequência dos dias.


Também em março, Milton Andrade deve reencontrar-se com os bancos escolares. “O Colégio Singular, onde dei aulas por 12 anos, quer que volte a lecionar Literatura” – comenta ele, que já foi mestre ainda da Metodista, na disciplina de teatro, e da FEC (hoje UniABC), onde ensinou literatura dramática. Milton volta a exercitar seu lado de pedagogo após nove anos, período em que esteve na Eletropaulo, primeiro na área administrativa e, até três meses atrás, catalogando fotografias para o projeto do patrimônio histórico.


Está preocupado porque teme que os novos donos das energéticas — todas na lista de privatização — não dêem continuidade ao projeto. “É uma pena, porque há material muito valioso para a memória e a cultura de São Paulo” — diz Milton, preservacionista de carteirinha, dono de biblioteca que avalia em 10 mil títulos, a maioria ligada ao meio artístico. Com essa credencial, passou, também recentemente, a integrar o grupo de escritores que a Livraria Alpharrabio, de Santo André, quer mobilizar para fazer emergir uma vida cultural mais intensa no Grande ABC.


A escritora Dalila Telles Veras, da Alpharrabio, foi buscar Milton Andrade da mesma forma que o prefeito Walter Braido, em 1967, pediu emprestado à ZF seu então diretor jurídico, que já se notabilizava pelas ações culturais, as únicas à época na cidade. Milton criou grupos de corais e teatrais e foi responsável pela instalação do teatro Sótão 1005, na rua Baraldi, no alto de um prédio de escritórios. A ZF alugou o espaço e equipou-o com 200 lugares.


A decisão de criar no Município uma Fundação das Artes veio na esteira da empolgação de Braido com um festival de corais que a ZF promoveu há 30 anos, trazendo 16 grupos de São Paulo. “No encerramento do festival, ele me procurou para criar projeto cultural para São Caetano. Logo pensei em uma escola que formasse artistas. Foram os melhores anos de minha vida. Vivíamos de chapéu na mão pedindo verbas, mas tínhamos grande programação” — diz.


Entre as lembranças dessa fase ele destaca um dos pilares da Fundação — os cursos livres à comunidade, que já não existem. Milton lamenta, aliás, que ao se vincular anos depois à Secretaria da Cultura do Estado para reconhecer como profissionalizantes seus cursos, a Fundação “passou a diplomar artistas, não a formá-los”, o que teria limitado a qualidade dos talentos. “A Fundação era da comunidade, mas fechou-se em si própria, não mais se responsabilizando por trazer espetáculos para a cidade” — desabafa seu criador, que chegou a São Caetano por acaso, como diz, para comer feijoada na casa de um amigo que havia reconhecido sua voz na rádio Eldorado, onde passou a trabalhar quando chegou à Capital, vindo de Campinas.


Milton ficara impressionado com a combatividade de um grupo de jovens que, naquele dia, fazia manifestação contra a Câmara de Vereadores que — ao que se recorda — havia aprovado aumento de impostos. O amigo era conterrâneo de Itapira, sua cidade natal no Interior de São Paulo, de onde saiu rumo a Campinas para cursar Direito na PUC. Foi na PUC que começou a pegar gosto pelo teatro e a misturar arte e profissão. Hoje seu nome está nas principais agências de atores de São Paulo e outra mão forte sempre lhe está estendida: Cláudia, de 33 anos, a mais velha dos três filhos (há ainda Cristina, de 32, e Alexandre, de 26), fez escola de teatro e frequenta com intensidade o mundo artístico.


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