Sociedade

Um casarão agora
cheio de histórias

DANIEL LIMA - 17/01/2002

A propósito do chamado Casarão dos Martinelli, na Avenida D. Pedro II, em Santo André, derrubado freneticamente nos estertores de 2001, tenho algumas considerações para tentar organizar o conjunto de desdobramentos. O imóvel também sediou durante muitos anos o Colégio Pentágono e converteu-se em símbolo de descaso ao patrimônio histórico regional, embora nem tombado fosse. É ingenuidade acreditar que fosse respeitada a integridade física e temporal de um imóvel sem a chancela de tombamento, quando temos o exemplo do acervo comprovadamente valioso de Paranapiacaba em franca decomposição, entre tantos outros bens que identificam parte da memória regional.


Construído nos anos 30, o Casarão dos Martinelli só ganhou as manchetes porque fazia parte do showroom da disputada avenida de Santo André, contrapondo linhas arquitetônicas do início do século passado à quase mesmice da vizinhança. Outros imóveis construídos em datas semelhantes e estruturalmente equivalentes não tiveram o mesmo funeral de notabilidade: foram simplesmente destruídos sob o silêncio do anonimato de endereços menos nobres.


Tenho sérias dúvidas sobre a importância histórica e arquitetônica do imóvel, mas não me atrevo a apor minha assinatura em qualquer documento que exprima reprovação tácita. Prefiro esperar novas informações para, eventualmente, posicionar-me. Li absolutamente tudo sobre o assunto e não encontrei arrazoados que dêem sustentação à condenação sumária do Poder Público municipal.


Em princípio, chego à conclusão de que há mais emoção do que razão nas informações. A estridência com que se tratou o assunto foi surpreendente porque patrimônio preservável não costuma ter assiduidade e impacto no noticiário da mídia aqui ou em qualquer lugar do País, exceto em municípios cujo peso do desenvolvimento econômico esteja vinculado à atratividade turística e cultural do acervo imobilizado. A preferência da mídia dirige-se a assuntos menos rebuscados e mais vendáveis. Se temas mais candentes, como desenvolvimento econômico sustentável, por exemplo, são raridade nas manchetes de jornais e revistas, o que esperar então de algo relacionado à memória histórica?


O episódio comprovou que os administradores públicos só reagem sob pressão das demandas. Patrimônio histórico faz parte das quinquilharias esquecidas no quarto de despejo de desinteresse coletivo num País de pouco passado no presente. Chorar o leite derramado do Casarão dos Martinelli por algumas semanas e depois cair na gandaia da prevaricação dos supérfluos fazem parte da rotina da falta de cidadania. Jornais, revistas e emissoras de televisão oferecem frequentemente o que os balanços financeiros e ibopeanos recomendam. Patrimônio histórico é palavrão. Apenas uma minoria consome esse tipo de informação.


Mais inquietante que o simbolismo da derrubada do polêmico imóvel é o liberou-quase-geral que o Legislativo de São Caetano concedeu ao Executivo para aumentar a densidade populacional de São Caetano. Se é verdade que o mercado imobiliário não pode ser manietado por preconceitos recheados de ideologia, também é prudente que haja um mínimo de inquietação com eventuais exageros alimentados pela gulodice mercantilista. Apesar da gravidade que reveste a elasticidade territorial de São Caetano, onde o céu passou a ser o limite em contraponto às restrições físicas da horizontalidade da terra, o que se observa é generalizada omissão quanto aos rumos do mercado imobiliário da cidade. Quantos casarões antigos vão virar pó sem que ao menos se coloque em debate a importância histórica e arquitetônica que exibem? Já se fez, por acaso, um inventário do que pode e do que não pode dar lugar a novos arranha-céus?


Por isso, o caso do Casarão dos Martinelli não pode estigmatizar especificamente uma administração pública. Não existe no Grande ABC qualquer exemplo de bom-mocismo público na área. No âmbito de cada Município, a legislação se não é completamente omissa, é tremendamente falha. O comportamento errático do secretário de Desenvolvimento Urbano de Santo André, Irineu Bagnariolli, no episódio do Casarão dos Martinelli, é sintomático e auto-explicativo. Pressionado pela iminência da demolição anteriormente autorizada, correu para expedir documento cancelando as marretadas que invadiram o silêncio da noite. Depois, simplesmente fugiu do noticiário, como se não tivesse nada com o fast-food que ali será implantado.


Para completar o despreparo da Prefeitura de Santo André em gerenciar as informações sob sua jurisdição, foram necessárias quase três semanas subsequênciais para pronunciar-se oficialmente sobre o assunto, através de Carta do Leitor do Diário do Grande ABC assinada pela Assessoria de Imprensa. Convenhamos que é tempo demais.


Para encerrar essa análise, procurarei segmentar as reações que captei tanto nas páginas do Diário do Grande ABC quanto por meio de informações transmitidas pessoalmente a mim.


Gente graduadíssima e influente sabia de cor e salteado que o casarão seria demolido, porque se há algo a que os formadores de opinião e tomadores de decisão têm acesso com facilidade são os negócios imobiliários de maior vulto. Ninguém fez absolutamente nada para denunciar em tempo a possibilidade de o imóvel virar pó. Esse exército de acomodados se comportou de maneira distinta. Alguns se fazem de inocentes, como se não soubessem de absolutamente nada. Outros estão arrependidos por não terem feito qualquer gesto que pudesse contribuir para evitar a demolição. Integrantes de outro grupo estão chateados consigos próprios porque poderiam ter agido com presteza, antecipando-se na legitimidade do valor histórico e arquitetônico do imóvel e, na sequência, se confirmada essa condição, lutado pela intocabilidade do acervo sem que isso inviabilizasse o empreendimento comercial. Até porque, a rede McDonald’s tem tradição de compatibilizar preservação arquitetônica e voracidade gastronômica.


Há manifestações claramente oportunísticas, de quem não perde jamais o bonde da visibilidade de causa polêmica. Formado por leigos, esse time que faz estardalhaço tem motivos variados para se pronunciar entre amigos, familiares, companheiros de entidades sociais, mas o que prevalece mesmo é o verniz de valorização da cultura. É interessante alardear desencanto com a demolição porque é uma forma de tentar eximir-se da omissão contínua nas mais variadas questões regionais. Basta ver quantos têm coragem de assumir publicamente que o Grande ABC é uma região que se fragiliza economicamente a cada ano. A maioria prefere ficar na moita.


Esse bloco é formado por gente que tem certo grau de conhecimento cultural em áreas específicas, que exercita profissionalmente suas habilidades mas que não costuma dar profundidade às causas que defende porque sabe que encontrará muitas barreiras burocráticas e financeiras. A demolição foi um choque para esse grupo, porque, de repente, o colocou em contato com a realidade nua e crua da falta de políticas públicas para preservação da memória. Como esses agentes exercitam espécie de voyeurismo cultural, se viram tolhidos de imagens que os encantavam como observadores, apenas como observadores.


Esse bloco de revoltados é formado por uma imensa minoria de manifestações públicas ou não. São em geral profissionais que se envolvem para valer com múltiplas ações culturais. Têm os nervos à flor da pele. Agem como salvaguardas de tudo que tem qualquer relação com o passado, mesmo que eventualmente esse passado não tenha qualquer correlação com fundamentos comprovadamente históricos. Mas isso pouco interessa, porque é uma das maneiras que encontram para procurar salvar a essência do que deve ser salvo. A premissa de que é melhor exceder do que omitir os torna guerreiros permanentes.


Poucos dos detentores deste perfil ousam pronunciamentos públicos, mas tratam de cultivar intrigas de bastidores, travestidos de preservacionistas de primeira hora. Se lhes indagarem currículo voltado para o patrimônio histórico, tratam de desconversar, porque nada têm a oferecer a não ser a demagogia barata do discurso de ocasião. Passada a onda de contestação, estarão atentos a novos temários que sustentem a vocação à oratória chula que, entretanto, sempre engravida um ou outro interlocutor desavisado ou ingênuo.


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