A quantidade de tecido vendida por Sadalla Melhen durante os 80 anos de vida e 60 à frente da Sedanossa seria suficiente para cobrir, ida e volta, a distância que separa o Brasil da Europa. O comerciante que nasceu em Santo André, mas tem nas veias o dom genuíno para negócios herdado dos ascendentes libaneses, veste a população da cidade desde a época em que mocinhas casadouras punham-se impecáveis para as sessões de quinta-feira do Cine Carlos Gomes. Mesmo nestes tempos em que a moda pasteurizou-se e os conceitos de beleza e elegância atendem aos padrões estéticos globais, Sadalla resiste com a receita caseira da venda por metro e do atendimento sob medida.
Não fosse a determinação e o carisma pessoal de Sadalla Melhen, talvez a Sedanossa já tivesse baixado as portas há tempos. Ou estaria nas mãos de herdeiros, em trajetória similar a outros comércios tradicionais da Senador Fláquer e área central que resistiram à implacável transformação que tirou de Santo André as chaminés das indústrias e trouxe os totens dos shoppings centers e das grandes redes varejistas.
Mas quem observar uma hora da rotina de Sadalla Melhen vai entender por que a idade não pesa para esse verdadeiro herói da resistência e seu negócio sexagenário. Ele faz do trabalho um remédio, do respeito ao próximo uma missão e nunca se esquece do precioso mimo — um sorriso, uma sugestão oportuna ou um desconto espontâneo — que vai trazer o cliente de volta à casa de tecidos.
Sadalla Melhen é um gentleman. Daqueles que fazem questão de lavar o copo antes de oferecer água para o fotógrafo sedento ou insinuar aquele charme entristecido quando o convidado recusa o convite para o café das 10h ou das 16h, horários religiosos da agenda diária. Sadalla também ama Santo André e intensifica a relação com a cidade toda vez que resolve caminhar de casa até o trabalho ou dar uma volta na tradicional Padaria Brasileira, onde chama as funcionárias pelo nome e é prontamente interpelado com o carinhoso oi, seo Sadalla.
Polido, evita criticar eventuais erros que ao longo dos anos fizeram o aconchego da cidade sucumbir à frieza do quadro de exclusão social. No entanto, não se furta em dar o recado.
“Estamos em época de eleição, por isso é necessário votar consciente, estudar com carinho os bons candidatos para que o dia de amanhã não seja sombrio para nossos filhos, nossos netos e a população em geral” — recomenda por meio da mensagem manuscrita, na qual anotou tópicos que considerou importantes para abordar durante a entrevista.
O conselho de Sadalla Melhen mescla passado e futuro em palavras simples, mas sábias. O comerciante — um dos cinco eleitos na categoria Empreendedor Histórico do Prêmio Desempenho 2002, de LivreMercado — não utiliza a palavra globalização para explicar as mudanças que assistiu no setor têxtil ao longo de 60 anos. A própria relação com fornecedores diz tudo. Sadalla iniciou atividades vendendo tecidos produzidos nas fábricas de Santo André, passou pelas grandes remessas que vinham de Americana e Santa Bárbara D’Oeste, no Interior paulista, até chegar ao quadro atual: 70% do que a Sedanossa comercializa é fabricado fora do País.
Esse verdadeiro sinal dos tempos não amedronta o homem que comanda os negócios de uma mesa com feltro verde instalada no fundo da loja, sobre a qual estão uma antiga máquina de calcular e um telefone manual de número 61230 tratados com as devidas deferências de preciosas relíquias. Longe dos manuais de gestão moderna, Sadalla assiste entre 30 e 40 fregueses entrarem diariamente à Sedanossa em busca de cortes para calças, blusas, vestidos e tudo o mais que a criatividade e a insistência das milagrosas costureiras e alfaiates — como ele faz questão de dizer — forem capaz de produzir.
A fidelidade entre as gerações concede ao comerciante o privilégio de atender avó, mãe, filha, neta e com um pouco de sorte até a bisneta. “Quem vem aqui, sempre volta” — gaba-se o simpático octogenário.
Essa fidelidade que tanto orgulha Sadalla Melhen e é importante pilar de sustentação dos negócios está ancorada em equipe que conhece cada centímetro do que precisa ser feito para cativar a freguesia. Manoel está na loja há mais de 30 anos, Arlete há quase 20, além de Bezerra e Gilson, um pouco mais novos de casa mas igualmente entrosados. “Tenho orgulho de ter formado uma equipe de trabalho como essa” — não economiza em elogios o homem que já viu ex-funcionários tornarem-se empreendedores de sucesso. Um dos grandes importadores que atua no comércio atacadista da Rua 25 de março, em São Paulo, trabalhou na Sedanossa.
A vida de Sadalla Melhen e a trajetória da Sedanossa fundem-se de forma tão homogênea que qualquer abordagem separada das duas histórias tornaria o roteiro incompleto e sem graça. Um certo dia de 1943 passou em frente ao número 26 da Senador Fláquer e apaixonou-se por um ponto comercial que estava sendo desativado. Fechou o negócio, mas enfrentou a objeção do pai Salim — também comerciante de tecidos — que queria vê-lo formado dentista. Sadalla estava prestes a entrar na faculdade e a família não se conformava com a súbita mudança de plano.
Embalado pelo amor à primeira vista em relação ao ponto, contou com a ajuda de um primo que lhe ofereceu sociedade para tocar a idéia adiante. Os dois trabalharam juntos até 1968, data da morte do parceiro, e deixaram para a história comercial de Santo André uma relação entre sócios que até hoje é apontada como referência. “Foi um casamento perfeito” — orgulha-se Sadalla Melhen, ao enumerar outro fator que também ajudou a construir a carreira de sucesso. “Nada de preços abusivos” — ensina.
Como bom descendente dos povos do Oriente Médio e contrário a deduções derivadas da generalização, Sadalla Melhen preza em primeiro lugar a família. Só depois vem o dinheiro. Ele considera abençoado todo homem que consegue ter o respeito dos filhos dentro do lar para comandar a família harmoniosamente, sem a imposição do poder de uma conta bancária recheada. Para o casal de filhos e os quatro netos Sadalla deseja, acima de tudo, saúde. Sonho mais do que sábio para quem chegou aos 80 anos cumprindo rotina de trabalho que se ameniza apenas aos finais de semana, ou numa praia do Guarujá em companhia da família ou no rancho às margens do Rio Piracicaba.
Sadalla também tem as amizades em alta conta. Brincalhão, conta que vira e mexe a Sedanossa transforma-se em espécie de posto do INSS, tamanho o movimento de amigos que se reúnem na hora do café para colocar a prosa em dia. Os assuntos remontam a casos antigos, às políticas local e nacional e ao futebol, como não poderia deixar ser toda vez que dois ou mais representantes do sexo masculino esboçam algum tipo de reunião. Corintiano pouco fanático, não perde oportunidades de entrar no clima de gozação inerente aos resultados do Timão e seus eternos rivais.
O maior sonho de Sadalla Melhen é viajar para o Líbano. O homem que herdou terras dos antepassados naquele país jamais colocou os pés onde os pais nasceram, mas acredita que a vida ainda vai conceder-lhe mais essa graça. Por algumas vezes já esteve com as malas quase prontas para viajar com a esposa Anair, mas os constantes conflitos entre os países árabes fizeram o casal adiar os planos. Nascido em Santo André, no largo do Ipiranguinha, Sadalla Melhen não pareceu disposto a enfrentar a rotina de guerra por aqueles lados do mundo.
O futuro de Sadalla Melhen e os destinos da Sedanossa também estão intimamente ligados. O ex-quase dentista formou uma família de odontólogos e sabe que dificilmente terá um herdeiro com feeling para dar continuidade ao negócio dos tecidos. Sabe também que o momento de diversificar o mix da Sedanossa vai chegar logo e que não será mais possível ter apenas tecidos nas prateleiras. Também já se rendeu à modernidade dos cartões de crédito e débito e admite aderir, em breve, ao dinheiro de plástico. Daqui para frente é tudo ou nada. “Está nas mãos de Deus” — resigna-se.
Bate-Rebate
Leitura — livros científicos e Olavo Bilac
Futuro — saúde
Santo André — Deus ilumine nossos políticos
Tecido — algodão e cambraia
Roupa — sob medida
Cor — azul claro
Número da Sorte — sete
Comida — todas
Total de 1089 matérias | Página 1
11/11/2024 GRANDE ABC DOS 17% DE FAVELADOS