Você que anda sobre-rodas no Grande ABC, prepare-se para informação nada agradável: os 20.115 furtos e roubos de veículos registrados pela polícia nos primeiros nove meses deste ano colocam a região na liderança absoluta desse tipo de criminalidade no Estado de São Paulo. Vou repetir a informação com valor agregado: além de espezinhada pela administração do governo federal ao longo da última década, ou principalmente por isso, o Grande ABC chega ao topo da criminalidade no quesito roubo e furto de veículos, superando inclusive a vizinha e mais automotiva Capital.
Roubam e furtam 75 veículos por dia no Grande ABC — média de três veículos por hora. Como estabelecer referências desse tipo de delito nessa região e nos demais municípios paulistas com um mínimo de segurança para não cair do cavalo da imprecisão estatística? A recomendação de organismos internacionais é a divisão dos casos por 100 mil habitantes, já que o estoque de veículos em cada município não deve ser levado em conta dada a mobilidade implícita do objeto de pesquisa. Nessa equação, o índice do Grande ABC é de 85,59.
Isso posto, preparem-se para notícia que também ajuda a explicar por que o custo das apólices de seguros de veículos no Grande ABC é semelhante ao do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense. A comparação com a vizinha Capital é francamente desfavorável à região: o proprietário de veículo no Grande ABC corre risco 18% superior de roubo ou furto em relação à cidade de São Paulo. Nos nove primeiros meses deste ano, a Capital acumulou 73.243 casos de furtos e roubos, contra 20.115 do Grande ABC. Como temos 2,350 milhões de habitantes contra 10,4 milhões da Capital, a diferença na aferição de casos por 100 mil habitantes é desfavorável à região.
A perda da competição para a Capital e tantos outros municípios da Região Metropolitana de São Paulo e do Interior é emblemática da indiscutível queda da qualidade de vida do Grande ABC na última década, escancarada também no rebaixamento da participação relativa e absoluta da economia regional no Estado de São Paulo. Aliás, a economia em declínio ajuda a explicar o restante.
No período de 1991 a 2000, segundo dados oficiais da Fundação Seade, organismo do governo do Estado, o Grande ABC passou de 41,85 para 54,42 homicídios por 100 mil habitantes. Santo André deu salto de 35,66 para 54,52. Sem contar que há 20 anos sua marca estava rigidamente em oito assassinatos para 100 mil moradores, como lembrou Celso Daniel poucos meses antes de ser assassinado.
Apenas Campinas — com um milhão de habitantes e centro de uma Região Metropolitana de população equivalente à do Grande ABC — chega perto da média de roubos e furtos de veículos, com 80,23 por 100 mil moradores, ou seja, 6,26% menos que a região. Osasco e Guarulhos, no cinturão da Grande São Paulo e tão próximas da Capital quanto vários municípios do Grande ABC, oferecem números bem mais palatáveis: Guarulhos de 1,1 milhão de habitantes registra 40,13 roubos e furtos de veículos por 100 mil moradores, contra 49,30 de Osasco. São José dos Campos, Capital do Vale do Paraíba, apresenta média de 34,37, próxima aos 34,23 de Santos.
Comparando: o Grande ABC tem incidência de roubo e furto de veículos 53% superior a Guarulhos, 18% a São Paulo, 60% a São José dos Campos, 6,26% a Campinas e 42,39% a Osasco. Não vou confrontar os números com minha terrinha, a pequena Guararapes, próxima de Araçatuba, que conta com 28 mil moradores, porque seria covardia. Lá, nos primeiros nove meses deste ano, roubaram e furtaram apenas 10 veículos; ou seja, tomaram na mão grande em 270 dias o que afanaram em três horas no Grande ABC.
A situação de Santo André e de São Caetano é alarmante no interior do quadro já por si só delicadíssimo do Grande ABC. São Caetano tem a segunda maior taxa de roubos e furtos do Estado, com 125,35 casos para cada 100 mil habitantes, enquanto Santo André ocupa a liderança absoluta, com 133,86 casos — praticamente o dobro do anotado na Capital e quatro vezes mais que a média do Interior paulista.
A radiografia da criminalidade veicular nos dois municípios é distinta. Já analisamos o caso de Santo André, centro geoeconômico do Grande ABC que faz limite com vários bairros da zona leste de São Paulo e dona da maior taxa de evasão industrial do Estado. São Caetano também sofreu forte evasão industrial, tem vizinhança paulistana que não é das mais recomendáveis e geografia diminuta, de apenas 15 quilômetros quadrados densamente ocupados por veículos porque detém renda per capita razoavelmente equilibrada e superior à média nacional.
É evidente que em situação como a que está impressa nessa numerologia toda especial, o chamado Custo ABC deixa de ser expressão supostamente vazia para se consolidar como verdade inquietante. As companhias de seguro não têm vocação para Madre Tereza de Calcutá e, por isso mesmo, analisam a fundo o perfil de sinistralidade nas praças em que atuam.
É evidente que os números aqui expostos refletem também o desleixo histórico do governo do Estado com o território do Grande ABC na área de segurança pública, além da fragilidade institucional da região para pleitear contrapartidas legítimas à intensidade com que, mesmo cambaleante, a economia regional abarrota os cofres estaduais e federais.
Por mais que o governador Geraldo Alckmin tenha investido nos últimos tempos, coincidentes com as eleições, há fratura exposta na qualidade de vida regional também por causa do vetor de segurança pública sob o comando das Polícias Civil e Militar. Se de um lado o governo Fernando Henrique Cardoso sangrou a região pela abertura econômica desmedida, entre outras questões fartamente analisadas, por outro o governo estadual fez, durante muitos anos, vistas grossas à depauperação social fermentadora de um quadro em que a criminalidade está estreitamente relacionada com a perda de mais de uma centena de milhares de postos de trabalho formais, à informalidade de sobrevivência e ao desemprego endêmico.
A fama de prosperidade e riqueza que o Grande ABC cultivou com méritos durante mais de três décadas ainda prevalece em mentes descuidadas ou deliberadamente triunfalistas, escondendo, portanto, o quadro de exclusão social crescentemente alarmante. As imagens de miséria que as emissoras de TV flagram no Norte/Nordeste poderiam lhes poupar tempo e dinheiro com o registro das periferias do Grande ABC e da Grande São Paulo. A diferença é que na Região Metropolitana de São Paulo o choque entre excluídos e incluídos induz à criminalidade. O tráfico de drogas está consolidado não apenas em bairros da periferia, mas também e descaradamente nos redutos de classe média.
Uma pracinha da Rua Mediterrâneo, no Jardim do Mar, em São Bernardo, a mil metros do Paço Municipal, transformou-se em self-service 24 horas de traficantes e toxicômanos, sob vistas grossas da polícia. A comunidade próxima, entretanto, não move uma palha para mudar a situação, porque adolescentes de pais incluídos financeiramente mas excluídos comunitariamente poderiam promover represálias. Quantas situações semelhantes a essa se multiplicam pelo Grande ABC? Quantas praças que ambientalistas exigem para dar mais vida a uma região cinzenta tornaram-se fortalezas de criminalidade?
O fato é que da mesma forma que ignoraram solenemente o esgarçamento da força econômica atingida em cheio por bombas atômicas de imprevidências federais, estaduais e também municipais, as instituições do Grande ABC fecham os olhos para a avalanche da criminalidade em forma de roubos, furtos, assassinatos. Acredita-se, equivocadamente, que o melhor antídoto contra o crime organizado e os desajustes econômicos é o individualismo exacerbadamente competitivo.
Quem consegue escapar da carnificina econômica precisa se multiplicar para não virar estatística criminal. Quem consegue driblar a estatística criminal precisa ter muita sorte e competência para não entrar para o obituário econômico.
Enquanto alguns tolos filosóficos pensam com seus botões algo como o efeito-Tostines, numa pendular dúvida se o Grande ABC seria criminalmente cada vez mais preocupante porque é economicamente cada vez mais vulnerável ou se o Grande ABC seria cada vez mais vulnerável economicamente porque é cada vez mais preocupante criminalmente, as estatísticas inflam e nos remetem a todos para o purgatório. Iremos para o inferno da sociedade fragmentada ou para o céu do capital social?
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11/11/2024 GRANDE ABC DOS 17% DE FAVELADOS