Na idade deles, por volta de 14 anos, já me iniciara na vida jornalística. Tinha um programa de esportes na Rádio Luz de Araçatuba e começava a dedilhar os primeiros textos numa velha máquina de escrever Remingtton, editados semanalmente na revista Cinelândia. Dedilhar é força de expressão porque os teclados tortos como as pernas do Rivaldo e duros como os dedos em riste dos autoritários de plantão exigiam tanta força muscular quanto cerebral dos primeiros tempos em que construir frases após frases, por mais que a leitura ávida me seduzia desde os oito anos, não era tarefa fácil.
Na idade deles, ajudava meu agora velho pai como secretário da Liga de Futebol de Araçatuba. Seu Gabriel era presidente da entidade e acumulava ao cargo a função de árbitro. Escalava-se aos jogos mais difíceis de cada rodada de um campeonato amador que envolvia equipes da zona urbana e da zona rural. Transcrever algumas odisséias do seu Gabriel nos campos de futebol provavelmente daria um livro muito mais emocionante e cativante do que os que costumo escrever sobre a regionalidade do Grande ABC, esse coito interrompido sobre o qual alguns caras de pau ainda tentam mistificar.
Seu Gabriel era jogo duro para os atletas indisciplinados. Rígido, suficientemente corajoso para desprezar condições de segurança, botava para fora de campo ao menor gesto e atitude de desrespeito. Leivinha, hoje comentarista sutil e de qualidade de TV por assinatura, provavelmente não se esqueceu do dia em que, ainda com a camisa do Linense, num confronto com o Ferroviário de Araçatuba, foi expulso de campo pelo seu Gabriel com menos de três minutos de jogo. Isso mesmo: três minutos. Foi advertido ao reclamar de uma falta, respondeu com um palavrão e lá estava seu Gabriel, impecavelmente de negro, forte como um touro, a lhe indicar o caminho dos vestiários. Naquele tempo não havia o marketing colorido dos cartões. Advertência e expulsão não tinham o charme de agora, mas com seu Gabriel de apito na boca não havia a menor possibilidade de contemporizar. Ex-carregador de armazém, ex-pugilista, dono de uma ousadia que não se esgota nem agora aos 80 anos, seu Gabriel era parada dura. Na boa, levam-lhe até as cuecas. Como muitos levaram-lhe. Na marra, nem um grão de feijão.
Na idade deles também costumava trocar os microfones da Rádio Luz por uma ou outra perua kombi de candidato a alguma coisa nas próximas eleições. A voz precocemente grave garantia aos ouvintes o conto da maturidade. Como a kombi passeava por Araçatuba e eu me mantinha no banco traseiro, quase que escondido, ninguém poderia supor que um pirralho de 14, 15 anos empunhava o microfone.
Na idade deles pedalava bicicleta o dia todo, da casa para o trabalho, do trabalho para casa, da casa para a escola. Gostava imensamente de jornalismo, mas também tinha olhos para a aeronáutica. Um paradoxo só aparentemente inexplicável, porque desde criança temia subir em avião. Passava mal. Dava-me tonturas. Náuseas. Aliás, em carros de passeio e ônibus também. Até hoje não suporto ser passageiro. Bingo! É exatamente essa a explicação para virar piloto de avião, porque piloto pilota, não é pilotado. E pilotando, não tenho medo de absolutamente nada.
Na idade deles vendi uma bicicleta que ganhara de seu Gabriel, peguei o dinheiro e me mandei sozinho, de trem de segunda classe, para a Capital. Há quase 40 anos um jovem interiorano deixar pais e irmãos, enfiar-se num trem barulhento e, literalmente, sem lenço nem documento desembarcar na casa de um parente próximo, era algo inusitado. O sonho de entrar numa escola de aeronáutica se desfez quando mediram-me o grau de hipermetropia. Para azar dos malversadores tão conhecidos, o jornalismo ganhou definitivamente espaço em minha vida.
Quarenta dias depois da viagem solitária, eis que aparece o velho Gabriel na casa do meu tio e me levou de volta. Rezava por aquilo. Estava cansado de uma Santo André fria e impessoal demais para quem já completara 15 anos. Mal imaginava que para cá voltaria três anos depois, de mala e cuia, com a família toda, ou quase toda, para jamais arredar pé de uma temperatura que só eventualmente incomoda e para me entregar de corpo e alma à quebra das barreiras pessoais comuns em comunidades que procuram preservar seus guetos.
Na idade deles, já tinha acumulado muita experiência na vida. Fundei até um time de futebol do bairro onde morava. Chamava-se Olaria, tinha as cores azul e branco. Encontrei um técnico oriental, que de bola não entendia lá essas coisas. Talvez tenha sido por isso que eu e meus amigos adolescentes o escolhemos. Assim a gente poderia fazer o que bem entendia. Não era craque. Longe disso. Na verdade, era uma espécie de técnico dentro de campo. Disciplinado, respeitoso com os árbitros. Lições do seu Gabriel. Até viajávamos a algumas cidades próximas para disputar amistosos.
Colecionava figurinhas. Torcia endoidecido pelo Timão ouvindo Fiori Giglioti. Lembro-me do primeiro gole de Coca-Cola que tomei. Detestei. Parecia remédio. Um Biotônico Fontoura piorado. Também não esqueço do primeiro jogo transmitido pela televisão. Jogaram Palmeiras e São Bento de Sorocaba. Esqueci o placar, como bom alvinegro. Vi o jogo pela fresta de uma janela do vizinho bem de vida. Conseguia arrumar tempo para descer a ladeira em carrinhos de rolimã. Soltava papagaios, que chamam de pipa por aqui. Mesclava atividades de vida de adulto precoce com a de criança tardia. Até campo de futebol liderei a construção, perto de casa. Suficiente para treinos e jogos. Um dia esqueci os óculos no pé da trave. Um descuido que me custou caro. Óculos quebrados, medo de apanhar do seu Gabriel, emprestei de um amigo igualmente hipermetrope os pares de lentes de que precisava para ir ao colégio. Quase comprometi de vez a visão, porque a única referência que nos unia era a hipermetropia. O grau e as especificidades técnicas eram completamente outros. Como imaginar essas peculiaridades aos 15 anos de idade?
Hoje, cinquentão e atarefadíssimo, procuro manter uma forma física relativamente saudável com corridas noturnas, único horário que me resta para impedir que os músculos se deteriorem, que o estresse me nocauteie. Somente aos sábados e domingos corro durante o dia, antes do almoço. Foram nessas corridas de sábado e domingo que os identifiquei, porque no dia-a-dia de muito trabalho a bordo de um veículo passaram-me despercebidos. Quem são eles, afinal, que me remeteram aos tempos de menino-adulto?
São os jovens que, estátuas de carne e osso, escondem-se por traz de placas de anúncios de ofertas imobiliárias. Inertes, faça chuva ou faça sol, lá estão eles, cabisbaixos, alguns ouvindo walkman, outros simplesmente de olhos fechados sobre as pernas ainda vigorosas, atuando como adolescentes-placas, uma modalidade de trabalho que extratifica o estágio de marginalização de uma geração de brasileiros que se divide também entre as incubadoras de malandragens das Febems ou engrossam a lista de usuários de drogas.
Na idade desses adolescentes meus sonhos não estavam limitados pela materialidade de placas de madeira com frases impressas em português geralmente impreciso. Minha imaginação não esbarrava no barulho ensurdecedor do trânsito das esquinas mais movimentadas. Minha criatividade não estava subordinada ao automatismo musical de um walkman. Minha vida, enfim, não estava terceirizada à pobreza intelectual ditada pelo jogo de esconde-esconde de placas à procura de clientes nem de sons de uma bugiganga eletrônica qualquer.
Que saudades tenho dos tempos de adolescente-radialista, adolescente-jornalista, adolescente-secretário, adolescente-aventureiro. O que terão os adolescentes-placa para contar daqui a 40 anos, presos ao mundinho de um metro quadrado, emparedados entre um poste e um cartaz que seguram horas a fio em troca de alguns reais? Que futuro tem um País cujos jovens se vêem presos na imensidão do tráfego de veículos, sequestrados pelo tráfico de drogas, enclausurados em supostos centros de recuperação?
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11/11/2024 GRANDE ABC DOS 17% DE FAVELADOS