Sociedade

Comer e comer

DANIEL LIMA - 30/12/2004

Não necessariamente se vai a determinados restaurantes apenas para almoçar ou jantar. Principalmente a endereços mais nobres. A comida generosa e irresistivelmente saborosa muitas vezes é apenas pretexto de sociabilidade planejada.


Come-se por vários motivos num restaurante chique. Não se come apenas pelo prazer de comer. Vejam alguns cenários em que se envolvem frequentadores casuais e assíduos de mesas mais disputadas.


Homens de negócios que se encontram sob o teto chiquérrimo de um restaurante de cardápio que pode custar o olho da cara estão ali porque apreciam mais que o refinamento do ambiente. É preciso mostrar que a saúde da corporação está em dia. Mesmo que seja apenas cortina de fumaça para desqualificar o apontamento do Serasa ou o comentário mais malicioso do concorrente sempre de tocaia.


Um descendente de asiático que frequentava ponto badaladíssimo em Santo André destilava a convicção de que nadava em dinheiro. Ninguém jamais ousou levantar dúvida sobre a pujança dos negócios de revenda de veículos. Estava sempre sorridente.


Demorava-se em mesuras. Chamava a atenção pela robustez dos pratos, da carta de vinhos, das sobremesas, das gorjetas.


Quando fugiu da praça e deixou rombo de milhões, foi um deus-nos-acuda. Os credores jamais se perdoaram. Sim, porque nada é comparável ao sentimento de revolta de quem se sentiu ludibriado pela roupagem de credibilidade do transgressor. Quando se perde dinheiro, qualquer que seja o dinheiro, sabendo-se do risco implícito do negócio, as dores não são tão intensas, a revolta da alma é controlável. Quando, entretanto, aparece alguém mais engenhoso e consegue superar a todos na arte de fugir com a mala cheia, a decepção é duplamente impactante: pelo dinheiro que se foi e pelo sentimento de otário que ninguém suporta porque impele a vítima ao silêncio envergonhado de não passar recibo.


Não falta também quem aperte o orçamento o mais que pode para bater ponto pelo menos semanal num desses centros de referência da gastronomia mais requintada. Deixar de se mostrar aos demais clientes além do prazo de validade de sete dias é risco que correm de ser observados com desconfiança.


Mostrar a cara mesmo que o bolso já mambembe denuncie escorregadela profissional é vital para manter as aparências. Mas não é só isso. Tem-se de tomar cuidado com endereços mais modestos de inevitáveis opções de almoço ou jantar. Geralmente quando conhecidos em comum se encontram nesses locais mais populares há certo mal-estar de quem se acha descoberto em flagrante delito. A vantagem é que é muito pouco provável que se delatem a amigos mais ou menos chegados porque o procedimento seria espécie de autodeduragem.


Tempos de eleições e mesmo de composições de secretários são sempre recomendáveis aos políticos que frequentam restaurantes estrelados. Principalmente quando o objetivo comum é demonstrar possibilidade de composições, de nomeações. Não falta quem tome essa iniciativa exatamente para sentir a reação dos demais frequentadores. Sim, esses points de gastronomia mais badalados são portentosa caixa de ressonância de quem forma opinião e de quem toma decisão. A reação a determinados encontros de assemelhados ou adversários políticos muitas vezes determina até que extremo ou não seguirão adversários ou alinhados.


Come-se também nesses locais climatizados em que garçons esparramam gestos largos de atenção porque se pretende provar para si mesmos que a vida está muito além das guerrilhas diárias da economia, da política, da cultura, do social. Estar ali acompanhado preferencialmente de familiares é uma maneira de contrabalançar o déficit de atenção àqueles que durante toda a semana mal passam de cédulas de identidade de ramificação parentesca. Exatamente por isso essas mesas são ocupadas geralmente nos finais de semana. Nem mesmo o agregado de genros e noras impede a denúncia genética.


A possibilidade de comer nos restaurantes de classe internacional e pagar em reais está somente ao alcance de quem traduz os vencimentos em dólar e pode se sentir norte-americano. Exceto, é claro, alguns casos de notório oportunismo em que o cheque sem fundos que aparece no caixa bancário denunciará a esperteza de quem não se conforma com a desigualdade social e se comporta como arrivista gastronômico. É claro que eles não têm fartura gástrica longa. Definitivamente, esses templos do prazer de saborear as mais finas iguarias não têm vocação para forrar estômagos que desafiam os limites do bolso.


Outras tipologias de frequentadores de restaurantes de ricos poderiam ser listadas. Inclusive de comensais ocasionais que fazem de tudo para fugir de olhares cobiçosos em encontros que exigem anonimato. Nesse caso, eles preferem ir a restaurantes finos da Capital. É carregar muito peso de azar, nessas circunstâncias, dar de cara com algum conhecido. Nesse caso, resta torcer para que a recíproca da imperiosidade do anonimato seja verdadeira.


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