Sociedade

Relações corporativas

DANIEL LIMA - 27/01/2005

Tenho horror à expressão “patrão”. Provavelmente porque foi estigmatizada pelos “trabalhadores unidos, jamais serão vencidos”, refrão de socialistas empedernidos. Metralho com os olhos e abomino com os sentimentos o verbete, porque “patrão” evoca anticapitalismo estúpido e avoca socialismo retrógrado que praticamente desapareceu da face da terra. Sem contar que também tem a conotação de subordinação acrítica aos “patrões” de plantão.


De vez em quando um ou outro desastrado me faz alguma menção à hierarquia funcional supostamente de subordinação escravagista, porque é isso que significa “patrão”. Sou obrigado a reagir. Com classe, evidentemente, mas de forma incisiva. Não tenho patrão e tampouco sou patrão. Aliás, de fato, jamais tive ou fui. Jamais. Minha biografia profissional não comporta concessões no sentido deletério de “patrão”.


Costumo dizer que tenho companheiros de trabalho, acima ou abaixo do nível hierárquico que ocupo cumulativamente em duas companhias de comunicação.


O melhor elogio que podem fazer a este profissional é a propagação idiossincrática de que sou insubordinado. Está aí elogio, e não crítica, que adoro. Nada mais condenável a um profissional que lida com informação, e informação é responsabilidade social, do que a subalternidade das marias-vão-com-as-outras.


Quando ouvi a primeira vez que minha suposta insubordinação corporativa poderia atrapalhar minha vida profissional, sorri como quem acabasse de conquistar um troféu de independência. Era a senha de que precisava para enfatizar a importância de o público externo entender que, longe da arrogância do sabetudismo, reverso do entreguismo intelectual, a insubordinação subliminarmente ou explicitamente mencionada era atestado de seriedade.


Diferentemente, como se observa, do sentido dilacerante do mesmo verbete no campo civil, especificamente no cumprimento do ritual reservado a todos ou quase todos os jovens que prestam o serviço militar.


Lembro-me daqueles meses como atirador do Tiro de Guerra de Santo André, em 1970, como um dos períodos mais férteis de minha vida. Uma convivência democrática que só incomodava pela obrigação de acordar às 5h30. Felizmente, minha mãe não deixou que eu faltasse uma vez sequer ao expediente militar.


Ganhamos, pela Primeira Companhia, os campeonatos de futebol de salão e de campo, espécies de propriedades exclusivas da Segunda Companhia do Sargento Torres. O então sargento Cláudio Silvestre, nosso comandante, foi à forra. Nossa turma era mesmo de primeira.


Jamais fui craque de futebol, mas tinha certa competência para gerenciamento tático do grupo. Era técnico do time de futebol de salão do TG e quebrava o galho como titular da equipe de futebol. Entrava eventualmente no time de futebol de salão no segundo tempo.


Tinha uma tática infalível para vencer os adversários: deixava o melhor jogador da equipe no banco de reservas e ele, fulo da vida, quando chamado no segundo tempo, arrasava com o jogo. Não me recordo o nome dele. Era um negrão forte que treinava na Portuguesa de Desportos. Tinha preparo físico insuperável. Se começasse jogando, rendia menos. Achava-se o bambambam e se perdia em firulas. Cutucado pela reserva, reagia da forma que queria. Jogando muita bola.


Bons tempos aqueles do Tiro de Guerra de Santo André, repito, porque a escola de igualdade que o Exército patrocina é uma das lições mais importantes à formação de caráter na juventude. O sargento Cláudio Silvestre tinha por mim afeição senão especial, pelo menos interessante. Os outros sargentos também.


Longe de mim, acreditem, qualquer tática de aproximação deliberada com os comandantes. Apenas cumpria regularmente os rigores do quartel. E dava sorte também. Além do sucesso no futebol e no futebol de salão, num dos plantões como cabo de guarda atendi um homem espumante e estirado na calçada do TG, ainda instalado nas imediações da estação ferroviária. Meus companheiros de jornada diziam que ele estava alcoolizado. Dei-lhe uns trocados para pegar o ônibus e relatei os fatos no livro da guarda. Lembro-me que ele morava na Rua Suíça. No dia seguinte, seus familiares foram ao Tiro de Guerra para agradecer pessoalmente aos comandantes pela ajuda. O homem sofrera um ataque epilético.


No dia da formatura das turmas do TG de 1970, período de linha dura dos militares, de conquista da Copa do Mundo e de emprego duplo como locutor da Rádio ABC e repórter do jornal “O Repórter”, de Santo André, fui escolhido orador dos reservistas. Redigi o próprio discurso que proferi num Paço Municipal lotado. Newton Brandão era o prefeito.


O então sargento Cláudio Silvestre, radicalmente hierárquico, tinha por mim apreço especial porque dizia que eu era um atirador disciplinadíssimo.


E continuo sendo. Só me insurjo e me insubordino contra os malfeitores. Aí, viro bicho.


E é por isso que detesto o termo “patrão”, síntese do mandonismo atentatório à liberdade de viver com responsabilidade individual e coletiva.


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