Acho que vou desta para outra vida sem ver o Grande ABC dar sinais efetivos de que não é um corpo institucional moribundo. Desconfio que vou morrer pessoalmente feliz, mas frustrado como pessoa jurídica. Entendam “pessoalmente” como Daniel José de Lima e “pessoa jurídica” como Daniel Lima. Há um terceiro elemento temporão que revelo mais abaixo. Trata-se do Leinad Amil, um vagabundo como tantos outros na praça.
Esses são meus mundos diferentes no mesmo corpo e mente. Costumo dizer que ligo e desligo a chavinha para me entregar integralmente às duas missões. Como se fosse um time a disputar competições distintas. Vou desta para outra vida sentindo a dor profissional de que o Grande ABC é um convite à depressão, mas, também e para salvar a pátria, de que na vida pessoal dei conta do recado possível.
Minha relação com o Grande ABC é de otimismo e ceticismo. O idiota da pessoa física sempre é pego em contradição em relação ao sempre alerta pessoa jurídica. É muito complexo conviver com o médico e o monstro que me habitam. A luta para separá-los de modo a que não se atrapalhem mutuamente é exercício permanente. Eles vivem às turras.
Grupelhos e individualidades
Não posso baixar a guarda senão boto tudo a perder ao dedilhar os textos diários. Preciso me manter alerta para não cair no redemoinho da insensatez geral da sociedade, incapaz de, no conjunto, ignorar o que se passa nos sete municípios. Há individualidades brilhantes sufocadas por grupelhos armados de safadezas.
Se Daniel José de Lima e Daniel Lima são totalmente diferentes, antípodas, contrastantes, e, portanto, formam potencialmente uma dualidade que não pode se configurar dualidade a bem de um e de outro, porque tudo estaria perdido tanto para um quanto para outro, ou seja, no ambiente familiar e social e no ambiente estritamente profissional, o que o leitor sugeriria que eu faça? Um psicanalista talvez desse a resposta. Será?
O Daniel Lima que me controla durante a maioria das horas de cada dia não aceita que o Daniel José de Lima o sobreponha e que aceite determinados compromissos sociais com pessoas às quais não nutre nenhuma admiração institucional ou corporativa.
O Daniel Lima diz para o Daniel José de Lima que já assistiu a tantos filmes de relações profissionais que se repetem a ponto de sugerir como melhor alternativa fugir da perda de tempo colocando na agenda profissional compromissos desagradáveis.
Na maioria das vezes o Daniel José de Lima concorda, porque não é burro, mas de vez em quando ataca pelos flancos da sensibilização pessoal. O Daniel Lima resiste bravamente porque tem sob controle a agenda diária majoritariamente dele, não da metade boazinha e ingênua.
Invasão de domicílio corporal
Quem duvida que há espécie de dupla personalidade a instigar minha vida como um todo não sabe da missa um terço. Separo sim e para valer uma coisa da outra. Quem me vê todas as manhãs passeando com minhas cachorras (minhas cachorras é força de expressão, porque quem as trouxe para casa foi minha filha e quando lhe der na telha, as leva embora e eu fico a chupar o dedo) não acredita que se trata da mesma pessoa que, em seguida, senta ao computador e manda bala.
Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. O Daniel Lima é durão mesmo, e tem de ser em honra da profissão que abraçou faz várias décadas. O Daniel José de Lima se excede em contemporizações, em diplomacia, em salamaleques sociais.
Mas isso não significa que de vez em quando Daniel José de Lima não tenha a alma invada por um Daniel Lima intempestivo.
Vasos comunicantes
Como separar friamente um do outro, por exemplo, quando um bando de 30 jovens os incomoda durante anos e anos ao transformarem um imóvel vizinho em permanente algazarra a qualquer hora do dia e da noite? Nesse caso, o Daniel Lima sobrepôs-se, mas foi domado pelo Daniel José de Lima durante cinco anos. Uma barbaridade de negligência da pessoa jurídica.
Confesso que não sei de quem gosto mais, se da pessoa física ou da pessoa jurídica. O que posso responder é que preciso da pessoa jurídica para dar vazão à pessoa física. Não sei o que faria se a pessoa jurídica fosse bem menos rigorosa que a pessoa física. Mas devo dizer também que é muito tormentoso ficar dia a noite como pessoa jurídica.
Por isso muitos quebram a cara quando acreditam que a pessoa jurídica sempre se coloca adiante da pessoa física. Quando encontram a pessoa física imaginando que é a pessoa jurídica, caem do cavalo da avaliação. Não encontram o monstro de objetividade e inquietação. Têm um palhaço que adora rir e falar palavrões. A pornografia é a linguagem preferida da pessoa física nos diálogos. Também o léxico esportivo é uma tara. Esse Daniel José de Lima gosta de desafiar o Daniel Lima. E o Daniel Lima aprecia muito ver-se incorporado pelo Daniel José do Lima.
Terceira personalidade
Estou pensando seriamente nos últimos tempos a acrescentar de vez à minha dupla personalidade um terceiro elemento ao qual recorri algumas vezes como pessoa jurídica e cuja identidade está no acervo desta publicação.
Nem Daniel José de Lima, nem Daniel Lima. Talvez a porção que mais goste é um ponto intermediário, que me transforma em Maluquíssima Trindade. Quem, afinal, é esse terceiro vértice comportamental? Ora, nada mais nada menos que o Leinad Amil.
Leinad Amil não é nem Daniel Lima nem Daniel José de Lima. É Daniel Lima ao contrário. Leinad é Daniel ao contrário tanto quanto Amil é o oposto de Lima.
Leinad Amil é irreverente, gozador, aliado dos protagonistas de impropriedades e vagabundagens que Daniel Lima critica no cenário regional. Leinad Amir é, portanto, amigo dos adversários institucionais de Daniel Lima. Um vagabundo como eles.
Vingança social
Criei a irreverência de Leinad Amil, mas ainda não lhe dei uma vida mais cotidiana, mantendo-o algemado e incomunicável durante longos períodos.
Essa foi uma forma de me vingar dos bandidos sociais do Grande ABC, tornando-me um deles, caricaturizando-os para compreenderem o quanto são ridículos.
Leinad Amil está com todos eles é não abre. Elogia-os fluvialmente. São seus heróis.
Leinad Amil é o cara que me reabilita porque me coloca na mesma frequência de malandragens de muita gente que não é o contraponto de ninguém. A originalidade é imutável e intocável.
Leinad Amil vai morrer feliz com o Grande ABC que Daniel Lima acha um horror em matéria de institucionalidades e Daniel José de Lima não leva muito em consideração porque quer mesmo é se desvencilhar de maiores obrigações críticas.
No fundo, no fundo, estou numa senhora enrascada. Se já é difícil o pêndulo imposto por Daniel Lima e Daniel José de Lima, imaginem o globo da morte reunindo essa dupla e também Leinad Amil.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!