Fiz a Reportagem de Capa da edição de maio de 2000 da revista LivreMercado. Tratei de um tema que sempre foi caro àquela publicação e também à sucessora CapitalSocial: os pequenos negócios. Nos anos 1990, com a chegada das grandes unidades de corporações poderosíssimas, o Grande ABC viveu metamorfose no setor de varejo -- em forma de massacre. Contamos tudo sem excessos no que se segue.
Esta é a centésima-quadragésima-sétima edição da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País, de LivreMercado a CapitalSocial.
Ninguém vai salvar
o pequeno negócio?
DANIEL LIMA - 05/05/2000
O pequeno varejo do Grande ABC, marcantemente familiar, está vivendo desastre de proporções sociais preocupantes. Desde o Plano Real, em 1994, o território regional registra saldo negativo de pelo menos seis mil estabelecimentos. A contabilidade não é empírica, como gostariam alguns ufanistas que fazem das tripas coração para tentar esconder a realidade. Os seis mil pequenos negócios do comércio que cerraram as portas não viviam na clandestinidade do mercado informal. Eram empresas formais que integravam o cadastro do Sincomércio (Sindicato do Comércio Varejista do Grande ABC) e também do Sincovaga (Sindicato do Comércio Varejista de Gêneros Alimentícios), que tem parte da base estadual de 390 municípios no Grande ABC.
O saldo negativo de seis mil estabelecimentos é o resultado entre a criação e a desativação de pequenos negócios varejistas. Nenhum dos dois sindicatos dispõe de dados que especifiquem o perfil das empresas que fracassaram nesse período. Tem-se apenas a dura e crua contabilidade de que restaram 26 mil estabelecimentos varejistas na região, do total de 31 mil cadastrados em 1994.
O resultado não deixa margem a dúvidas quanto à dimensão das frustrações de muitos dos 125 mil trabalhadores da indústria que perderam o emprego nos últimos 10 anos e imaginaram construir nova vida profissional ao lado de familiares como microempreendedores. O universo de negócios informais do varejo não consta da pesquisa, até porque ainda não há instrumentos confiáveis para acompanhar o ritmo de quem atua na zona cinzenta da sobrevivência mais explícita.
Não se deve restringir o desastre do empreendedorismo na região a aspectos exclusivamente macroeconômicos e nem à notória falta de habilidade gerencial dos pequenos comerciantes. Esses são dois pesos absolutamente consideráveis que auxiliam na interpretação da derrocada.
Um terceiro ponto da costura de dramaticidade que os números explicitam é o que tem maior peso relativo no ranking de problemas: a ampliação dos tentáculos das grandes redes de supermercados e as vantagens de segurança, concentração de negócios e estacionamento dos shoppings centers e home-centers simplesmente estão massacrando a concorrência de menor porte. Tudo diante de omissão coletiva do Poder Executivo, do Poder Legislativo e também da maior parte das entidades de classe empresariais.
Esperar que micro e pequenos negócios varejistas tenham resistência própria para competir é torcer o nariz para a realidade histórica.
Pesquisa da Associação Comercial de São Paulo divulgada há quatro anos constatava que, das 25 maiores lojas de 1965, restavam apenas três 40 anos depois. As raras sobreviventes de então engrossam a lista de desativação: a Casa José Silva tornou-se concordatária, o Mappin faliu e a Mesbla está endividada.
“Algum tempo depois que o então Eldorado chegou a São Bernardo, na Avenida Pereira Barreto, no final dos anos 80, mandamos fazer uma pesquisa sobre a influência do empreendimento para o comércio da redondeza. Ficamos abismados com os resultados. Nada menos que 130 pequenos estabelecimentos comerciais fecharam em consequência do impacto econômico representado pelo empreendimento. Acho que também falhamos, por não agir contra esse tipo de concorrência. De lá para cá a situação se agravou ainda mais. Fizeram estardalhaço, agora, com a chegada do Carrefour em Diadema. Vamos ter um terremoto por lá também”.
O desabafo em tom de autocrítica e a previsão de novos complicadores para os pequenos varejistas são do empresário José Carlos Buchala, presidente do Sindicato do Comércio Varejista do Grande ABC e vice-presidente da Facesp (Federação do Comércio do Estado de São Paulo).
Buchala é uma das poucas vozes entre lideranças comerciais da região que decidiu deixar a postura de expectativa passiva dos acontecimentos para abrir os números e escancarar o tamanho do rombo do desaparecimento de pequenos varejistas na região. “Cinco mil unidades da nossa base de empreendedores desapareceram desde 1994, mas se somarmos a isso os que estão vegetando, vivendo os estertores da livre iniciativa, vitimados sobretudo pelos efeitos deletérios da chegada indiscriminada das grandes redes e do custo tributário de empreender no Brasil, o número seria assustador” — diz Buchala com contundência inusual entre os ocupantes de postos diretivos de entidades da classe empresarial da região, geralmente subordinados por pendores supostamente bairristas.
Ricardo Fioravanti, assessor de Marketing do Sincomércio, segue na mesma linha de interpretação dos fatos. “Nosso sindicato mede com absoluta confiabilidade a temperatura do negócio do varejo na região porque fazem parte da categoria desde uma quitanda na esquina até um supermercado. Os cinco mil estabelecimentos que desapareceram em cinco anos expressam o estado a que chegamos. É absoluto reflexo da realidade. Estamos vivendo verdadeiro massacre. A chegada em massa de grandes empreendimentos pegou os pequenos varejistas no contrapé do despreparo administrativo. E isso está sendo fatal. Faltou aos administradores públicos formatar legislação que permitisse o repasse de todo o conhecimento tecnológico de gerenciamento das grandes redes aos pequenos negócios” — afirma Fioravanti.
O executivo do Sincomércio não acredita que a baixa sensibilidade que permeia as relações entre o Poder Executivo, o Poder Legislativo e os pequenos negócios permanecerá indefinidamente. Antecipa que o Sincomércio coleciona farto material normativo, tanto do governo federal quanto da Prefeitura de Porto Alegre, para sugerir às administrações públicas locais a introdução de modificações. “Todo mundo só fala em tecnologia voltada ao setor industrial da região, mas muitos se esquecem de que a recuperação do comércio de pequeno porte passa pelo uso da tecnologia da informação, que pode ser traduzida como a preparação dos pequenos empreendedores não só para o gerenciamento administrativo propriamente dito, mas também para aspectos que se refletem na fidelização da clientela. As grandes redes precisam ser incentivadas a contribuir para o preparo do pequeno varejista. Sem a democracia de empreender, toda a sociedade perde” — explica Fioravanti.
Prioridade da Acisa
Wilson Ambrósio da Silva, presidente da Acisa (Associação Comercial e Industrial de Santo André), instala o pequeno varejo entre as prioridades da segunda gestão iniciada há dois meses. Embora afirme que a região não está isolada na dificuldade de conciliar pequenos e grandes negócios de varejo, Ambrósio acredita na possibilidade de redução do impacto social e econômico com a valorização da atividade na periferia.
A urbanização que a Prefeitura realizou em alguns chamados centros de bairros projetam novas perspectivas, embora carreguem também a possibilidade de despertar o interesse de corporações de maior porte.
“Estivemos reunidos com comerciantes de Santa Terezinha e do Parque das Nações e já agendamos encontro na Vila Luzita justamente para tratar do assunto. Estamos sugerindo ações para manter os consumidores locais mais próximos dos negócios de bairros, inclusive absorvendo parte da população da periferia da Capital limítrofe a Santo André. O pequeno comerciante precisa se unir, agir sob o conceito do cooperativismo. Só assim pode enfrentar o grande estabelecimento. A Acisa não tem absolutamente nada contra grandes supermercados e shoppings. Aliás, reconhece a importância das redes nacionais e estrangeiras no atendimento aos consumidores, mas não pode ficar de braços cruzados diante da situação que se apresenta e que, na verdade, não interessa a ninguém” — afirma o dirigente.
A possibilidade de promover sorteios sistemáticos está entre as propostas da Acisa para que comerciantes da periferia de Santo André motivem e fidelizem os consumidores.
Filipe dos Anjos Marques, ex-presidente e atual membro do Conselho Superior da Acid (Associação Comercial e Industrial de Diadema), segue linha de enfrentamento ao disparar artilharia de críticas à Prefeitura comandada pelo socialista Gilson Menezes, ex-sindicalista com fama de não se importar com o empreendedorismo privado. “O Poder Público está desacreditado junto aos comerciantes” — afirma Filipe.
Ele cita o mais recente episódio envolvendo o titular da Diretoria de Desenvolvimento Econômico do Município, David Schmidt, como emblemático do alheamento da Administração à ocupação de espaços comerciais sem a providencial intervenção pública. “O noticiário do Diário do Grande ABC sobre a chegada da primeira grande rede de supermercados em Diadema, o Carrefour, deixou claro que a Prefeitura não tinha conhecimento da novidade. A declaração do titular da pasta de Desenvolvimento Econômico, surpreso com a notícia, e, em seguida, mostrando-se satisfeito com o investimento, mostra o quanto os pequenos comerciantes estão desassistidos em Diadema” — desabafa o comerciante.
Para o dirigente da Acid, a chegada do Carrefour vai afetar não só pequenos negócios localizados no entorno mais próximo como também a área central: “Muitos consumidores da região onde se instalará o Carrefour fazem compras de alimentos, vestuários e tudo o mais no Centro de Diadema e certamente mudarão de percurso com o empreendimento. Infelizmente, os pequenos não estão preparados para disputar o consumidor com os grandes e nem o Poder Público está se incomodando com isso” — afirma.
Exclusão regional
Para o economista Guilherme Lacerda, professor da Universidade Federal do Espírito Santo e ex-secretário de Planejamento do Estado, a realidade do Grande ABC se confunde com a dos grandes centros econômicos. Ele considera que as economias regionais estão em perigo que vai além da devastação do micro e pequeno varejo. Denuncia que, após adquirirem redes regionais de supermercados, os grandes grupos de varejo passam a adotar política de exclusão de marcas locais. As compras se restringem às mais fortes, de âmbito nacional, produzidas na maioria das vezes por grandes empresas, muitas das quais multinacionais.
O professor capixaba afirmou recentemente em artigo na Gazeta Mercantil que o Carrefour inaugurou o primeiro hipermercado no Espírito Santo no início dos anos 90, com apoio do setor público, e o investimento foi tratado como vetor de desenvolvimento. Situação semelhante aos festejados desembarques do grande varejo na região. “Mais recentemente — segue o economista –, adquiriu a maior rede de varejo regional e passou a deter cerca de 40% do mercado. Hoje verifica-se que o desenvolvimento esperado não passa de pesadelo para muitos segmentos econômicos do Estado. Sob diversas alegações, tem ocorrido redução dos fornecedores locais na oferta de bens vendidos pela rede, desconsiderando-se o compromisso que a empresa havia feito quando da aquisição dos pontos-de-venda da rede regional” — escreveu o acadêmico.
Preparar o comerciante para o jogo bruto da globalização que também invade o setor terciário vai fazer cada vez mais a diferença entre sucesso e fracasso. Quem não tiver essa perspectiva no horizonte e prevenir-se contra a avassaladora onda de fusões e incorporações no varejo vai ver seu negócio virar pó.
A observação faz parte do repertório de orientações do consultor empresarial Nelson Barrizzelli, um dos maiores especialistas em varejo no Brasil. Professor da FEA (Faculdade de Economia e Administração) da USP (Universidade de São Paulo), Barrizzelli já fez palestras para mais de dois mil empreendedores sobre o futuro do varejo no Brasil. Lamenta que a estrutura econômica do setor não conte com algo semelhante ao que faz o governo federal norte-americano. Uma agência governamental especializada no setor, a Small Business Administration, tem representação capilarizada em todos os municípios e atua diretamente na preparação técnico-operacional dos pequenos varejistas.
Mesmo com todo esse arcabouço organizacional, Nelson Barrizzelli afirma que a contabilidade norte-americana registrada no ano passado, comparativamente ao ano anterior, anotou o desaparecimento de 72 mil estabelecimentos varejistas de um universo de 16 milhões de empreendimentos, dos quais nove milhões dirigidos por mulheres.
O modelo norte-americano também favorece a explosão do varejo de grande porte e de shoppings. “O Sebrae é uma entidade de qualidades excepcionais, mas por ter excessiva abrangência não consegue oferecer retaguarda de fato para o fortalecimento dos pequenos varejistas. Enquanto o Brasil não tiver algo semelhante ao que os Estados Unidos criaram, apontaremos mais e mais dificuldades. O tratamento bancário ao qual se submetem os pequenos negócios quando necessitam de empréstimo para capital de giro e para investimentos é exatamente o que se oferece ao grande, quando não, em piores condições de negociação. Não se pode nivelar uma mercearia e uma grande rede de supermercado com o mesmo peso quando se trata de financiamento e também em tantos outros aspectos, como o tributário. Enfim, o problema é estrutural e como tal tem de ser tratado” — afirma Barrizzelli.
Negociação desfavorável
Enquanto a orfandade dos pequenos varejistas continuar múltipla, porque começa no governo federal, chega à esfera estadual e se consolida no âmbito municipal, a realidade vai-se agravar profundamente, segundo leitura de Wilson Tanaka, presidente do Sincovaga, entidade com sede na Capital. Ele explica que à medida que o mercado varejista dá claros sinais de concentração de boa parte das vendas em número cada vez menor de grandes redes, acentua-se a diferença de tratamento aos fornecedores.
As grandes redes ficam com o caviar da preferência, enquanto aos pequenos negócios sobram, quando sobram, as migalhas da discriminação explícita. “A concentração dos negócios do varejo avança no Brasil sem que se crie qualquer espécie de proteção aos pequenos empreendedores. Não se trata de proteger incompetências, mas de estimular potencialidades” — afirma Wilson Tanaka.
Dos 35 mil estabelecimentos cadastrados pelo Sincovaga em 1994, nove mil naufragaram nas águas das transformações macroeconômicas que sacudiram o País desde o fim da inflação e da chegada de grandes conglomerados varejistas internacionais. Wilson Tanaka dirige um sindicato presente em 390 municípios do Estado. Estima que pelo menos 10% do contingente de náufragos tinham endereço no Grande ABC. O Sincovaga conta hoje com 26 mil empresas cadastradas, 90% das quais de micro e pequeno porte. Principalmente quitandas e mercearias, cujo atendimento é no balcão e de administração predominantemente familiar. O restante do contingente é formado por autosserviços, que se utilizam de checkouts — caixas registradoras.
Os estabelecimentos que reúnem de um a quatro checkouts prevalecem entre os restantes 10% do segmento e significam grau superior de estrutura física e de nível gerencial em contraposição aos de balcão. A relação de varejistas relacionados ao Sincovaga com mais de quatro checkouts é reduzida e ajuda a explicar o tamanho do rombo de fechamentos, porque a incidência de mortalidade empresarial é maior à medida que o estabelecimento é estrutural e economicamente mais refratário a inovações de gestão e tecnologia.
“Só grandes conglomerados varejistas têm poder de negociação de preços com grandes indústrias, gozando de preferência das ações promocionais. A vantagem da negociação para quem dispõe de escala de vendas é uma situação incontornável para o pequeno negócio. Isso significa que a concorrência é desproporcional já a partir das compras. Quando se vai então para a área de venda, as diferenças aumentam. O grande negócio tem marketing, atratividade física, diversidade de produtos, melhores preços. Tudo isso é levado em conta por um consumidor cada vez mais exigente. Os hipermercados se transformaram em supercenters, que vendem produtos das mais diversas linhas. Se os varejistas de médio porte já não estão resistindo às grandes redes, que colocam no mesmo espaço desde um quilo de arroz até geladeiras, de confecções a linha branca, de calçados até eletroeletrônicos, o que dizer do pequeno?” — lamenta Tanaka.
Para Gilberto Wachtler, diretor da regional da Apas (Associação Paulista de Supermercados) no Grande ABC e proprietário do Supermercado Primavera, no Parque Capuava, em Santo André, a passividade do Poder Público municipal é desestimulante à atividade. Ele reclama do vácuo legislativo que beneficia a expansão de grandes redes e cita o exemplo de Porto Alegre, que obrigou o Carrefour, entre outras medidas, a reservar espaços nas instalações para pequenas empresas localizadas no entorno geográfico. “As grandes redes levam vantagens em vários pontos e tornam a competição desigual. Esses empreendimentos contam com estacionamento, marketing, poder de compra, pessoal especializado, tributaristas exclusivos, poder de negociação de espaços nas lojas; tudo isso faz diferença. Sem contar que ocupam menos mão-de-obra, já que as indústrias colocam promotores de venda à disposição, sem custos. Além disso tudo, os fornecedores bancam parte da despesa de montagem de novos estabelecimentos” — relata Gilberto.
O dirigente da Apas sabe que não adianta apenas ruminar problemas. É preciso pôr a mão na massa. Para isso, inclusive, foi criada a distrital do Grande ABC. Até o final de março último a entidade somava treinamento gratuito a 300 funcionários de supermercados associados. São cursos especializados que colocam os profissionais mais próximos dos níveis de qualidade das grandes corporações.
Gilberto Wachtler faz eco às preocupações de José Carlos Buchala, do Sincomércio, quanto à elasticidade dos problemas: “A área onde o pequeno supermercado atua sofre série de mal-estar com a chegada de um grande. O hipermercado simplesmente acaba com floriculturas, padarias, chaveiros, borracharias, jornaleiro, mercadinhos e mercearias. Ao contrário do que muitos pensam, não geram emprego, porque o balanço final dos postos de trabalho é negativo. O pequeno significa equilíbrio social; gera empregos diretos e indiretos que se multiplicam e mantêm viva a pequena indústria” — analisa Gilberto Wachtler.
Com o pragmatismo de quem opera o próprio negócio e gera 38 empregos diretos com nove checkouts, o dirigente da Apas não recomenda aos pequenos supermercados seguir os preços dos grandes. “Vender leite condensado a R$ 0,89, pão francês a R$ 0,04 e óleo Liza a R$ 0,99 não é o melhor caminho para o pequeno varejo. O negócio é ser diferente, vender confiança, atendimento e qualidade. É preciso conhecer o cliente e gerar fidelidade” — recomenda.
Mesmo com todas essas instruções, Gilberto Wachtler demonstra preocupação com a chegada das grandes redes. A disponibilidade de área de quase 50 mil metros quadrados que a Rhodia está desativando na Avenida dos Estados, em Santo André, onde funcionava o clube de seus trabalhadores, serve de sinal de alerta ao empresário, já que interessaria a Extra e Carrefour. Embora não esteja tão próximo de seu estabelecimento, acaba por influenciar o fluxo de vendas. A unidade da Coop a algumas centenas de metros do Supermercado Primavera já lhe dá dores de cabeça e inquietação: “Como a cooperativa não paga impostos federais, ganha maiores condições de competitividade” — compara.
O dirigente da regional da Apas prevê futuro mais sombrio caso se concretize o que chama de profecia dos especialistas em varejo: “Dizem que em três anos 70% do faturamento do setor estará nas mãos de três grandes redes que vão ditar as regras às indústrias, pagando o que bem entenderem pelos produtos que comprarem. O consumidor final vai pagar mais caro, porque menos concorrência é igual a preços mais altos” — vislumbra.
Há excelência
Enquanto o futuro não chega, com cores sombrias ou não, nem todos os pequenos negócios estão condenados à morte. Pesquisa feita com 85 lojas de pequeno varejo, de 57 supermercados, com média de área de vendas de 623 metros quadrados, seis caixas e faturamento de R$ 400 mil por mês, revelou dados surpreendentes para quem imagina que tudo está absolutamente entregue a Deus.
Essas lojas apresentaram, em um ano, aumento real do faturamento de 5,3%. A pesquisa, coordenada por Nelson Barrizzelli, foi repetida no mesmo período um ano depois. Foram pesquisados supermercados localizados em todas as regiões da Capital de São Paulo.
Nelson Barrizzelli explica que o desempenho das vendas dos pequenos supermercados com até três lojas evidenciou que os cuidados dos varejistas se sobrepõem aos fatores externos de concorrência. Mais da metade das lojas pesquisadas (53,4%) está instalada no mesmo local há mais de 10 anos, contra 26,2% entre cinco e 10 anos, 11,7% entre dois e cinco anos e 8,7% há menos de dois anos. “O hipermercado não é concorrente da loja de vizinhança desde que o pequeno ofereça ao consumidor o que ele quer” — afirma Barrizzelli. Uma equação aparentemente simples, mas verdadeiro enigma para micros e pequenos varejistas que se atormentam com impostos a pagar e vencimento do prazo de validade do crédito junto aos fornecedores. São esses empreendedores o núcleo do catastrófico desmanche empresarial no Grande ABC.
Os dados do Sincovaga e do Sincomércio, que envolvem universo varejista e período muito mais amplos que os da pesquisa de Nelson Barrizzelli, não estratificam a pirâmide de longevidade empreendedora. A experiência de observadores do mercado varejista sugere que há inversão dos percentuais, comparando-se os dois trabalhos. Há maior incidência de mortalidade de estabelecimentos mais recentemente abertos exatamente porque a maioria dos varejistas de balcão não consegue chegar ao segundo ou terceiro ano de atividades. Esses negócios também sofrem com a proximidade dos pequenos supermercados mais bem preparados para o confronto com as grandes corporações.
Os estudos do professor Nelson Barrizzelli são mais recentes e analisam dados limitados aos dois últimos anos. Por isso, os resultados se chocam também com outro trabalho, realizado pelos pesquisadores Cláudio Felisoni, do Programa de Administração de Varejo da FEA, e AbramYu, também da FEA. Entre 1994 e 1998, os pequenos supermercados perderam a competitividade em ritmo acelerado. A eficiência média das oito melhores empresas de pequeno porte apresentou queda média de 42%. Uma contraface da eficiência média das oito maiores do setor, que cresceram 16%. Por ser segmento praticamente marginal do varejo, não há dados comparativos envolvendo os pequenos negócios de balcão.
Os pesquisadores avaliam como indicadores de eficiência cálculos que consideraram faturamento bruto das redes, número de lojas, de caixas registradoras e de funcionários. Um universo, como se nota, que não guarda qualquer relação com o varejo de micro e pequeno porte de estrutura familiar. As empresas foram selecionadas no ranking do setor, elaborado pela Abras (Associação Brasileira de Supermercados).
A constatação dos dois pesquisadores segue o ritual dos especialistas: a concentração varejista é inevitável, por causa da perda de eficiência das empresas menores. “A elevação do padrão de consumo leva o cliente a optar pelas lojas mais atraentes, bem iluminadas e que ofereçam menor preço porque seus administradores compram produtos em grande escala e conseguem negociar melhor com a indústria” — disse Felisoni, durante o anúncio dos resultados.
Cláudio Felisoni prevê futuro ainda mais desalentador para os pequenos, que continuarão quebrando, e a polarização na disputa pelo consumidor entre os hipermercados e lojas específicas que atendam a determinados nichos. “Ao pequeno restam duas alternativas: especializar ou passar o ponto” — afirmou o estudioso, repetindo com outras palavras declarações de Nelson Barrizzelli a LivreMercado, edição de setembro de 1998. Barrizzelli, numa longa entrevista, reiterou a alternativa de nicho especializado.
Outras informações sobre os estudos dos dois pesquisadores aprofundam a consistência da quebradeira no varejo de pequeno porte no Grande ABC e em regiões atingidas por transformações semelhantes. Entre 1994 e 1998, alargou-se a diferença entre a eficiência das empresas maiores em relação aos pequenos supermercados, passando de 19 para 58 pontos. A estabilização da moeda a partir de 1994 também tem efeitos mensuráveis na pesquisa: o faturamento cresceu 30% no setor, descontada a inflação; o número de funcionários manteve-se praticamente inalterado em 267 mil pessoas; a área de vendas cresceu apenas 9%; a quantidade de lojas recuou 6,5% e o número de caixas registradoras caiu 1,1%.
O Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos) tem dados mais elásticos no tempo sobre o setor supermercadista. Entre 1990 e 1998, as 300 maiores redes fecharam 823 pontos-de-venda. Responsáveis por 95% do faturamento do ranking da Associação Brasileira dos Supermercados, as 300 empresas mantinham 4.042 lojas no início da década, contra 3.219 no final de 1998 — redução de 20,4%. Foram suprimidos, no período, 13,3% de empregos no setor, ou 41 mil postos de trabalho, número equivalente a mais que duas Volkswagen em São Bernardo. Menos lojas e menos emprego significaram número maior de funcionários por loja — 82,9 por unidade. A rotatividade dos trabalhadores também foi intensa: 40% não completaram um ano de casa. O contingente de quem não conseguiu emplacar dois anos no mesmo endereço sobe para 60%.
Internet como aliada
Deverá aumentar a distância entre micros e pequenos varejistas em relação aos pequenos supermercados. Já a diferença de eficiência entre os pequenos supermercados e as grandes redes pode diminuir se o Projeto Sincovaga tiver os resultados esperados. O programa pretende massificar o uso da Internet como instrumento de capacitação de cerca de oito mil estabelecimentos, que representam 15% das 53 mil lojas existentes no País. O presidente do Sincovaga, Wilson Tanaka, espera reduzir os custos no atendimento aos pequenos supermercados.
O segmento dos pequenos supermercados cujas unidades tenham pelo menos três checkouts e faturamento anual de R$ 2 milhões será abrangido pelo portal de negócios Ocla (Open Commerce Latin America) com três anos de atraso em relação à introdução do comércio eletrônico entre 215 supermercados paulistas e 12 grandes indústrias, resultado de trabalho conveniado entre o Sincovaga e a FIA (Fundação Instituto de Administração), da USP. A diferença é que agora a Internet entrou em campo, enquanto a relação eletrônica empresa-empresa da FIA foi concebida inicialmente pelo sistema EDI, de troca de dados.
O novo processo ganha agilidade e eficiência e democratiza a possibilidade de participação do pequeno varejo mais estruturado. Pela Internet, segundo Wilson Tanaka, será possível multiplicar o número de relações corporativas. Nelson Barrizzelli explica que a Internet descomplica as relações comerciais, porque os programas para adaptação à rede mundial de computadores são mais leves e compatíveis com os equipamentos em uso nos escritórios.
Contas feitas pelo presidente do Sincovaga atribuem às compras eletrônicas potencial de redução de preços entre 3% e 4%. Como só o grande varejo tem participado dessa festa, não é difícil entender por que os preços nas gôndolas das redes nacionais e internacionais líderes no ranking da Abras são mais sedutores e que o controle de estoque enquadre ativos financeiros na jaula da racionalidade.
Os pequenos supermercados só precisarão contornar sério obstáculo para não ser barrados no baile da eficiência: a distribuição dos produtos pode aumentar excessivamente os custos de entrega. A FIA estuda contornar a dificuldade com a chamada carga conciliada, que procura concentrar todas as entregas dos fornecedores em um único lugar — espécie de depósito central — e, a partir daí, se racionaliza o processo de logística. Outra ponte que precisa ser ultrapassada é a definição de quem pagará a conta da distribuição.
Gilberto Wachtler, da Apas do Grande ABC, colocou seu supermercado de pequeno porte entre os que se integraram inicialmente ao business-to-business da EDI e agora migraram para a Ocla, via Internet. Por isso, vem recolhendo os frutos da iniciativa. Mas o Supermercado Primavera é um ponto de excelência na ilha administrativa dos pequenos supermercadistas na região. Gilberto Wachtler acredita que entre os 47 empreendimentos associados à regional da Apas, apenas um terço descobriu o encurtamento da distância, o ganho de tempo, a supremacia da estratégia e a rapidez das decisões, entre outros benefícios, que o comércio eletrônico empresa-empresa permite.
Se a disseminação do comércio eletrônico entre empresas é instrumento estratégico de competitividade que ajuda a diminuir o fosso que separa pequenos organizados e grandes dominadores, o que está no horizonte quando se alarga a faixa da rede mundial de computadores e se coloca os consumidores como grandes parceiros dos negócios? Para o pequeno varejo de estrutura familiar, certamente os resultados poderão ter o sentido de definitiva pá de cal.
Por enquanto, o serviço de Internet mais rejeitado é o de compra de produtos. Mas convém preparar-se para mudanças. Dos 25 mil internautas consultados recentemente pelo Ibope, 27% afirmaram que nunca comprariam produtos pela rede por receio de perder a privacidade de dados ou fraude. O resultado não surpreende, porque a modalidade ainda é recente no País. Quando massificar-se, e está caminhando para isso, provavelmente a literatura sobre o comércio varejista vai se dividir, pelo menos nos grandes centros metropolitanos, entre o antes e o depois da rede mundial de computadores.
O comércio eletrônico movimentou US$ 1,059 bilhão no ano passado na América Latina, segundo dados da IDC (Internacional Data Corporation), empresa de pesquisa de mercado. “Qualquer negócio na região consome horas ou até dias. Quando aparece uma opção que economiza tempo e elimina a necessidade de fazer filas e enfrentar dezenas de funcionários, é abraçada com entusiasmo” — afirmou recentemente Greg Keoff, presidente da Zona Financeira, site da Internet que facilita o acesso a serviços financeiros como crédito bancário, hipotecas e seguros para casas e carros. O Brasil representa 59% do varejo eletrônico latino-americano. Nas classes alta e média, a porcentagem de conectados à rede mundial de computadores chega a 32%.
A IDC prevê que os internautas da América Latina passarão de 7,3 milhões em 1999 para 19 milhões em 2003, número que corresponde a apenas 3,7% da população. Os especialistas consideram, segundo recente publicação do The Wall Street Journal Americas, que esse é o segmento da população com verdadeiro poder de compra, com acesso a cartões de crédito e que vive em áreas onde a entrega dos produtos não é difícil.
A Internet cresce em proporções geométricas no Brasil. São criados por dia, em média, 1.230 sites. Embora apenas 4% da população brasileira tenha acesso ao computador, redes varejistas não querem ficar fora de um mercado com potencial para movimentar US$ 500 milhões em 2000 e atingir US$ 4 bilhões em 2003. Nos dois últimos meses, quatro redes de comércio popular — Marisa, Lojas do Gugu, Riachuelo e Ultralojas — fizeram estréia no comércio eletrônico.
A estimativa da OCDE, organização que reúne um bloco de 30 países, como Estados Unidos, Japão e Itália, é que o comércio eletrônico representa 0,5% das vendas. Mas prevê salto supersônico até 2003, quando chegará a 15%. No Brasil, passará de menos de 0,1% para 3%. O que será dentro de 10 anos? E o que acontecerá com os pequenos negócios de varejo familiar, último vagão de um modelo ortodoxo de vendas que já começou a descarrilar? As pequenas pizzarias, por exemplo, que se cuidem: está chegando a São Paulo (à região é questão de tempo) o site Pizzaria On-Line, reunindo 250 estabelecimentos num projeto que inclui distribuição própria e franquias.
A revolução que atinge o varejo de todos os portes incomoda também os atacadistas, que tiveram espaço reduzido nos últimos anos com a concentração das vendas nas grandes redes de supermercado. Tanto preocupa que estão investindo no pequeno estabelecimento para tentar manter a fatia do mercado. Salsicha entre as indústrias e os hipermercados, os atacados avançam nos autosserviços dos grandes centros e na venda fracionada para atrair pequenos varejistas.
Para o presidente da Abad (Associação Brasileira dos Atacadistas e Distribuidores), Paulo Hermínio Pennacchi, a queda da inflação quebrou a cultura de compras de grandes quantidades na virada da tabela, para fazer caixa. A inflação elevada jogava a favor dos atacadistas, que compravam grandes lotes e vendiam no início do mês seguinte por preço menor do que o da própria indústria. A concorrência entre atacado e indústria já faz parte do passado. Agora são atividades complementares. E nem poderia ser diferente porque, dos 400 mil pontos-de-venda atendidos pelo atacado, que reúne pequenos supermercados, bares e lanchonetes, uma indústria atende diretamente de 10 mil a 20 mil. O restante — força de expressão porque se trata da maior parte — fica para os atacadistas.
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