Sociedade

Juízo de sentimento

DANIEL LIMA - 09/08/2007

Quando se diz:


“Esta é uma amiga de infância”


O que temos é juízo de fato.


Quando se diz:


“Esta é uma das minhas melhores amigas de infância”


O que temos é juízo de valor.


Estou sendo didático porque, sem pretensões psicanalíticas, quero chegar a uma terceira modalidade de juízo, que, salvo engano, não consta de nenhum tipo de dicionário.


Trata-se de juízo de sentimento, que pode ser decifrado desta forma:


“Esta é uma das minhas melhores amigas de infância, mas, por conta da perda dos pais logo depois de nascer, é uma pessoa bastante complicada”.


O que não falta na praça são psicanalistas de meia-tigela, gente que não consegue entender o andar da carruagem individual de cada personalidade que a rodeia e, por conta de necessidade imensa de tentar demonstrar conhecimentos e influenciar interlocutores, envereda por caminhos oblíquos de invasão inconveniente e geralmente canhestra de privacidade. São equilibristas conceituais metidos a besta que dispensam a rede de proteção do bom senso e se estatelam no solo implacável da realidade.


Desafio os leitores destes artigos a identificar neste jornalista qualquer ranço de juízo de sentimento. Jamais fundamentei observações sobre determinados valores comportamentais que fujam do núcleo profissional. Nem mesmo quando afirmo que Sérgio De Nadai é um dos maiores egos do Grande ABC, porque isso é tão de domínio público como o brilho do sol de cada manhã de primavera. Agora, dizer que ele é egocêntrico porque torce para o São Paulo, porque tem o cabelo ao estilo de Itamar Franco, porque fabrica marmitas ou porque é novo-rico, isso é outra história. Há tantos outros são-paulinos de cabelos na testa, fabricantes de marmitas e novos-ricos que não são publicamente ególatras.


Outro exemplo: alguém que não se preocupe demais com formalidade, como o uso de paletó e gravata, que dispensa cerimoniosos rituais da chamada alta sociedade, não pode ser visto como portador de baixa estima. Provavelmente seja o contrário. A indumentária e outros apetrechos não fazem diferença alguma para quem não dá importância a determinadas etiquetas. Será que o problema de baixa estima não estaria exatamente nos exemplares de paletó, gravata, muito perfume e gestos sob medida? Pode ser, pode não ser. Quem sabe? Daí o risco de sentenças amadoras.


Por isso, o campo privado de cada profissional que eventualmente caia na malha fina de reunir interesse jornalístico jamais me interessou. Tampouco juízo de valor que considere falsos alarmes de juízo de sentimento. A construção da personalidade de cada um de nós é algo tão emaranhadamente complexo, com recheios de contradições e certezas que aparentemente se desmancham quando se conhece de fato cada interlocutor. Por isso, não é possível, com mínima margem de segurança, acertar o alvo da tipologia comportamental por conta de especificidades pessoais que fujam do terreno da materialidade.


As raposas de plantão querem porque querem estabelecer juízo de sentimento entre outras razões para propagar bactérias geralmente torpes. Vivem esses fanfarrões psicanalíticos de incubadoras ingênuas, quando não igualmente maliciosas.


Ao misturar juízo de fato com juízo de valor e acrescentar juízo de sentimento, os aventureiros de plantão, e mesmo os profissionais da psique, correm sérios riscos.


Os primeiros se desclassificam porque o tempo é o senhor da razão e os exemplos dos ofendidos têm poder arrasador no mato de malandragens semânticas que avança apenas entre os incautos. Os segundos porque, por mais que se debrucem sobre pacientes que procurem serviços profissionais, haverá sempre trilhas insondáveis que, de fato, escamoteiam explicitamente ou não incursões mais esclarecedoras.


Posso parecer abstrato e subjetivo nestas linhas, mas os leitores mais atentos hão de compreender o objetivo declaradamente contrário aos invasores de pretensos sentimentos alheios.


Há abutres de plantão, sempre prontos a avançar o sinal da racionalidade que o juízo de fato e o juízo de valor propiciam quando se tem conhecimento específico mas que, por conta do insondável labirinto da mente, jamais conseguirão alcançar quando o alvo é o sentimento individual. Até porque, convenhamos, nem mesmo cada um de nós sabe de fato quem é, porque sempre há situações em que o próprio comportamento nos surpreende.


A impressão digital do sentimento é um segredo da maravilhosa máquina humana a ponto de nem tudo que parece é, como, por exemplo, a medição do grau de emoção de alguém que perde um ente querido em relação a outro, por conta da expressão externa do choro compulsivo do primeiro em contraponto à serenidade do olhar perdido do segundo. Nem será o primeiro necessariamente mais amoroso ou, em contraponto, desequilibrado, nem será o segundo necessariamente menos amoroso ou, em contraste, equilibrado.


Tem muita gente na praça se achando Deus embora flerte seguidamente com o Diabo.


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