O Diário do Grande ABC de glórias mil de minhas lembranças, que não são lembranças de agora, de ontem, mas de muito tempo, perdeu dois profissionais que tanto contribuíram para dar à publicação a força de tração da tradição que faz a diferença nestes tempos sombrios. Percy Faro e Edward de Souza se juntam a tantos outros com os quais convivi nos anos 1970-1980, e mesmo mais recentemente, entre 2004-2005, quando estive de volta ao comando da Redação.
Ontem tomei conhecimento pelo amigo Ricardo Hernandez que Percy Faro fora embora. Já lutava havia muito tempo contra os estragos naturais na saúde. Hoje foi outro companheiro de jornada no Diário do Grande ABC. Luiz Mister, empreendedor em Orlando, Estados Unidos, me transmitiu a mensagem de WhatsApp dando conta que Edward de Souza sofrera ataque cardíaco fulminante nesta madrugada.
Tenho muita saudade daquele tempo de redação em que éramos jovens decididos a tudo para manter a sociedade informada. Não tínhamos hora para nada, exceto ao trabalho. O jantar era um sanduiche de um restaurante na Rua Catequese, onde o jornal se instalara e está até hoje. A redação fervilhava. Não havia o ambiente desagregador de agora, de direita versus esquerda, de manipulação da informação. De tudo que todos hoje reconhecem no primeiro parágrafo.
Dores de cabeça
Aquela redação apertada e que só mais tarde descobri ser uma fonte de minhas dores de cabeça, porque finalmente um exame detectou alergia crônica a produtos de limpeza, aquela redação encarpetada era um ancoradouro da informação.
Vivíamos num outro mundo, como toda redação de jornal de então. Sem tecnologia que facilita a tarefa nestes dias, a corrida pela informação se dava no corpo a corpo árduo de entrevistas tête-à-tête. Havia mais humanismo, mais comprometimento. A interação com as fontes de informações nos colocava a todos em sintonia fina com o processo social e econômico da região.
Edward de Souza e Percy Faro fazem parte de minhas lembranças na Redação do Diário do Grande ABC. Não conseguiria apagar minhas memórias com tantos companheiros de trabalho a ocupar espaço na minha mente. Vejo-os lá, cada um no seu canto, dando conta do recado. Ambos eram empáticos, simples, alegres.
Percy Faro e seu inconfundível colete era mais discreto no seu mundo automotivo. Edward, que conhecia tudo de Delegacia de Polícia, sempre tinha uma anedota a contar. Os delegados de Polícia são um escoadouro de casos. Geralmente verdadeiros, do dia a dia de ações contra delinquentes, mas nem sempre fiéis. Havia uma pitada de agudeza, de dramaticidade ou de fanfarronice, quando não de galhofa, em cada história relatada.
Time de saudade
Vejo naquela Redação do Diário do Grande ABC não só quem mesmo não estando mais lá sobrevive nestes tempos, mas, por conta da emoção, principalmente aqueles que se foram. Amigos que ganharam agora a companhia de Edward de Souza e Percy Faro. O intensamente dedicado diretor de Redação Fausto Polesi, seu irmão religioso Mário Polesi, o doce Rafael Guelta, o metódico Valdir Fumene, o sempre barulhento Edison Motta, o sarcástico Renato Campos, o brincalhão Edson Di Fonso, o visitante circunstancial Guido Fidelis e tantos outros. Já nos anos 2004-2005, foi-se embora Irati Motta, mulher resiliente, corajosa e discretamente inconformada ante injustiças corporativas.
Todos eles e outros que também nos deixaram (0 boa-praça Claudio Maiato, o escritor José Louzeiro, o agitado Vadenízio Petrolli) fazem parte da história do jornalismo regional. Juntos, fazíamos a diferença. Os leitores sentiam. Sentiam e sentem, porque o Diário do Grande ABC, abalado como tantos jornais regionais pela transformação tecnológica, além do empobrecimento local, ainda vive da força que vem do passado. Deve a maior parcela disso aos profissionais de jornalismo que esculpiram a marca com talento e determinação e aos últimos dos moicanos de uma redação em permanentes ajustes.
Em todos os lugares
Sempre sofro abalo emocional quando o chamamento do irreversível chega até mim. É impossível controlar o tempo que retrocede como um bólido. A tristeza individual do momento se funde ao orgulho coletivo do passado. Automaticamente minha memória busca naquela redação exígua o espaço físico ocupado pelos que se foram já há algum tempo e pelo que estão indo agora.
Vejo-os todos nos respectivos lugares. O comportamento de cada um, os diálogos rarefeitos que sobrevivem na minha lembrança são uma preciosidade em homenagem a eles. Em homenagem a mim também, por ter vivido tantos anos em comunhão por um jornalismo sério e comprometido. Um jornalismo feito de irmandade corporativa com comprometimento social de verdade.
Um jornalismo em que a disputa por uma chamada de primeira página era o estado latente de uma concorrência sadia e consagradora, tantos eram os temas do dia. Uma chamada de primeira página que ganhava a forma metafórica de disputa de espermatozoides pela vida.
Na reta de chegada
Quanta saudade tenho da redação do Diário do Grande ABC do passado cada vez mais desfalcado de talentos que se foram deste plano.
Só quem chegou à determinada idade sabe que a saudade que se sente no presente tendo o passado longínquo como referencial tem significado especial de saudade com cheiro de necrologia próprio que, querendo ou não, haverá de chegar. Alguns assassinos tentam apressar os passos do destino, mas o Todo Poderoso é quem está no comando.
Minha gratidão a Edward de Souza e Percy Faro e a tantos outros dessa redação de saudades por terem me dado de presente o compartilhamento de nossas vidas. E um especial muito obrigado a Edward de Souza, a quem não via havia muitos anos, por ter, numa rede social, solidarizado comigo após aquela tragédia de primeiro de fevereiro. Mais que solidarizar-se, Edward registrou um grito de indignação em minha defesa, recordando o passado na redação do Diário do Grande ABC. Serei eternamente grato. Pena que não lhe tenha telefonado ou lhe mandado uma mensagem de agradecimento, tantos foram e são os contratempos que ainda estou a superar.
Saudade eterna daquela redação do Diário do Grande ABC que permanece cheia de vibração na minha memória. O desfalque físico daqueles que já se foram não abala a imagem metafísica que guardo com emoção com data marcada para se apagar.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!