Sociedade

Estorvos sociais

DANIEL LIMA - 26/01/2009

Demoro menos de 10 minutos no trajeto entre o apartamento de Dona Maria, minha mãe, em Santo André, e minha residência, em São Bernardo, após insubstituível almoço de todos os domingos.


Saio 15 minutos antes das quatro da tarde, a tempo de assistir futebol na TV aberta ou paga, dependendo de onde estão aqueles alvinegros que me arrebatam e me enlouquecem.


Ontem, domingo, a rotina se manteve. Rádio ligado, ouço o presidente do São Paulo, Juvenal Juvêncio, numa entrevista a uma das emissoras de rádio, não me lembro qual. Antes, o repórter ouvira Marco Aurélio Cunha, também da diretoria são paulina, recentemente eleita vereador paulistano.


Sinto tanto num quanto noutro certa encenação verbal, que pode ser traduzida como esnobismo de quem está por cima da carne seca. Os “erres” são mais acentuados, a entonação é teatral, a pastos idade é evidente, a dramatização é latente na pausa entre uma frase e outra.


Mas não é de comportamento psicológico que pretendo escrever. É até natural que haja certo deslumbramento em representantes de um clube que não cansa de conquistar títulos. Os vencedores contínuos se perdem em excessos, sejam tricolores, sejam de outras identificações cromáticas.


Juvenal Juvêncio e Marco Aurélio Cunha criticaram duramente a Federação Paulista de Futebol, por conta de acontecimentos de bastidores desde a final do Campeonato Brasileiro.


Entretanto, não foi à coragem de cutucar aquela entidade que mais me impressionou.


A declaração de Juvenal Juvêncio em defesa de tratamento desigual aos desiguais no futebol, citando como exemplo os R$ 10 milhões adicionais que o São Paulo vai receber este ano em relação ao ano passado no Campeonato Brasileiro, por conta das transmissões da TV paga, é um alento. Também Corinthians, Flamengo e outros dos principais clubes brasileiros vão receber muito mais, de acordo com o potencial de consumo de respectivas torcidas.


Os três clubes de maior torcida no País vão receber proporcionalmente cotas mais volumosas da TV paga em relação aos demais beneficiários porque o princípio de tratamento igual aos desiguais foi soterrado numa luta que São Paulo, Corinthians e Flamengo encetaram contra a poderosa televisão dos irmãos Marinho. Quem tem mais torcida assinante de TV paga leva mais para os respectivos caixas — eis o princípio democrático.


Afinal, aonde quero chegar realmente?


Simples: é indispensável que a sociedade, em qualquer segmento em que se divida, tenha agentes de mudanças, mesmo que pareçam atrevidos, beligerantes e supostamente intratáveis.


O acovardamento geral e irrestrito é, por exemplo, a marca registrada da sociedade do Grande ABC. Talvez acovardamento seja termo forte, mas é deliberado, para mexer com os brios de quem lidera os respectivos guetos mas prefere, invariavelmente, deixar como está para ver como é que fica. Faltam lideranças conflitivas.


O conflito, os contraditórios e assemelhados fazem parte do jogo democrático. Fazem parte da própria existência do homem.


A maioria dos homens não exerce o livre arbítrio além dos próprios interesses pessoais. E também se deixa dominar pelo politicamente correto de seguir a manada do comodismo e do conformismo, enquanto o circo da desesperança apresenta espetáculos corridos com ingresso único.


O presidente e o diretor do São Paulo podem até passar a impressão de que carregam uma dose suplementar de auto-suficiência, que fazem da ironia arma nem sempre adequada para questões mais sérias, mas que botam o dedo na ferida, isso não se pode negar.


Muito melhor do que os falsos humildes que praticam dia e noite, noite e dia, espetáculos de bom-mocismo, de docilidade, de contemporização, mas, de fato, não constroem absolutamente nada.


A sociedade está cada vez mais fugidia de responsabilidades coletivas. E os bonzinhos improdutivos deitam e rolam em eventos que tonificam o ego mas não ajudam em nada à superação da desigualdade social e, no caso específico do Grande ABC, à recuperação das iniciativas de integração regional.


Vivemos tempos de mediocridade planejada e aplaudida.


Os contestadores, em muitos casos, viram estorvos que precisam sair de cena, voluntariamente ou não.


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