Sociedade

Cultura da imprecisão

DANIEL LIMA - 03/02/2009

Sofro um bocado com quem não consegue entender a importância de informar bem, qualquer que seja o assunto. Desde a localização de uma colher de sopa com a qual pretendo me fartar na casa da Dona Maria até o estacionamento mais próximo do escritório de um amigo.


O que dizer então do saldo bancário, se saldo houver?


Ou do horário aproximado da última fornada de pão italiano?


Pior, muito pior, quando o balconista tenta vender o pão italiano do dia anterior, e, à simples pressão dos dedos, descubro que havia mais de 24 horas estava no balcão.


Pão italiano não pode ultrapassar seis horas para o consumo. Depois disso, vira borracha.


Já vivi experiências inimagináveis com informações fragmentadas. Tinha uma secretária que aprontava sempre comigo, apesar das recomendações preventivas. O ponto final foi um dano financeiro gritante, por conta de escritura de imóvel cujo comprador não honrou cláusulas contratuais. Documento lavrado, prejuízo consumado.


São muitas as situações em que meu radar de qualidade se manifesta. Aliás, praticamente não existe situação que não passe pelo crivo da experiência acumulada, ainda mais depois dos últimos tempos de transgressões de terceiros.


Não sou de reclamar do que me servem em restaurante. Muito menos do almoço ou do jantar de Dona Maria. Exceto quando ela coloca pouco sal na salada, no feijão, no bife e no arroz. Mesmo assim são reclamações comedidas. Sei que sal é um veneno e Dona Maria, 83 anos, é uma santa.


Raramente perco a paciência com o atendimento no comércio e nos serviços. Prefiro não retornar ao estabelecimento. No ambiente corporativo, dependendo da situação, fico uma fera. Principalmente se o caso for reincidente.


Tenho um amigo que é pontualíssimo. Chega a irritar, porque não dá nem desconto de jogo de futebol. Horário marcado, lá está ele para o cumprimento da agenda. Não tem por onde. Outros, entretanto, são especialistas em desculpas.


O jornalismo me tornou minucioso, sobretudo depois que enveredei pelo caminho da copidescagem, que significa revisão ortográfica, contextual, histórica e de outros quesitos do que lemos. É claro que há copidesques preguiçosos que não levam praticamente nada em consideração. Eles refletem a própria forma de viver.


Passei anos debruçado em todos os textos publicados na revista LivreMercado, dando-lhes aval necessário e padronização indispensável.


Foram noites e dias, dias e noites, principalmente em meu escritório domiciliar. Os finais de semana eram em largo espaço ocupados por revisões e também na produção de matérias. Vivi tanto LivreMercado que esqueci de conviver mais e melhor com os meus filhos, mais velhos e mais novos.


Outro dia, já sem LivreMercado, meu filho me levou ao cinema, numa sessão das 22h no Cinemark do Extra, em São Bernardo. Me emocionei com “O curioso caso de Benjamin Button”. Tudo foi perfeito, do estacionamento à compra do ingresso, do horário rigidamente cumprido da sessão de cinema ao comportamento do público, majoritariamente de jovens estudantes. O filme confirmou minha expectativa, alimentada pela leitura da crítica especializada.


Acho que o mundo poderia ser melhor se todos compreendessem o significado de relacionamentos mais respeitosos, entendendo-se como respeitosos não necessariamente a forma de se expressar — que muitas vezes esconde na covardia da diplomacia mentirosa e escamoteadora de malandragens — mas, sobretudo, a responsabilidade de atender bem a nossos interlocutores.


Neste mundo globalizado e parametrizado por resultados na velocidade da Internet, o relacionamento interpessoal excede-se nas imprecisões e no chamado retrabalho. Minha preocupação é que essa deformação cultural penetre de tal maneira na sociedade a ponto de tornar os cultores da correção arrematados intransigentes.


Costumo dizer que as grandes besteiras começam com pequenas besteiras. Um exemplo: vejam a trajetória de pequenas falhas e negligências que determinaram o acidente do Legacy que provocou 154 mortes em setembro de 2006. O transponder desligado foi a etapa final de uma crônica de irresponsabilidades.


Quando, após determinada edição do Diário do Grande ABC, em 2004, aonde comandava a Redação, escrevi na newsletter interna que se fosse um avião, provocaríamos desastres frequentes, houve quem torceu o nariz. Quantas e quantas vítimas de informações equivocadas os jornais diários brasileiros provocam a cada edição? O pouco caso com a precisão informativa é um dos motivos.


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