Quem são mesmo os benemerentes no Grande ABC? Quem de fato, pessoas físicas, pessoas jurídicas, se preocupa e, principalmente, se envolve com excluídos sociais? Como medir o grau de compaixão, de desprendimento, de amor ao próximo? Descobrimos e laureamos no Prêmio Desempenho, ao longo de uma década, mais de uma centena de Madres Terezas e Freis Galvão, gente humilde que atua principalmente na periferia da região. E os estrelados e estreladas, gente que faz e acontece nas colunas sociais? Seriam mesmo exemplares vivos de cristandade?
Como não cometer injustiça ao desconfiar de uns e incensar outros? Pensando nisso, resolvi especular com espécie de Ranking de Benemerência. É apenas uma brincadeirinha, que, empiricamente, poderia ser adotada como critério de avaliação informal, como metodologia de desconfiômetro ou de reconhecimento.
Alguns pontos intrínsecos do Ranking de Benemerência:
Qual de fato é o volume de recursos investidos em favor de pobres e esquecidos em relação ao patrimônio pessoal do ofertante? Seriam migalhas distribuídas como elemento de marketing?
Quanto vale o tempo despendido por alguém que abandona afazeres para se dedicar aos mais necessitados? Seria esse valor intangível ou, confrontado com desencaixes de quem prefere apenas contribuição monetária, teria qualificação muito maior? Vale mais quem põe a mão na massa ou quem põe a mão no bolso? E quem põe a mão na massa e a mão no bolso, vale o dobro?
Até que ponto é importante para a causa dos desvalidos os doadores propagarem encaminhamentos? Deveriam os doadores ficar no anonimato constrangido ou compulsório de quem não quer lidar com publicidade por razões variadas ou contribuiriam ainda mais para as causas sociais se dessem sim a cara e os projetos para divulgação, incentivando a adesão de novos colaboradores?
Que tipo de vínculo existiria entre recursos monetários doados e receitas de empreendimentos privados? Explico melhor: qual seria a incidência de dinheiro canalizado para os pobres em forma de solidariedade e a fonte de faturamento? Dinheiros públicos, amealhados sob as luzes da legitimidade ou sob o porão de malandragens, poderiam ser considerados combustível de compaixão? Seria justo colocar todos no mesmo saco, desclassificando-os preventivamente?
Quais são as vantagens que os doadores diretos e indiretos de recursos financeiros e materiais aos excluídos sociais? Estariam eles atuando de forma essencialmente humanizadora ou teriam construído marketing de relacionamento que fortalece a abertura de portas para empreitadas negociais?
Qual é a correlação de valores monetários entre um evento para arrecadar fundos aos pobres e os custos efetivos desse empreendimento? Traduzindo: quanto se gasta para uma determinada ação benemérita e quanto se arrecada de fato? Quando se realiza evento com essa característica, o mínimo que se pode esperar é uma prestação pública de contas, porque, embora o acontecimento seja voluntário, a divulgação o torna propriedade coletiva. Contas bem feitas, resultados alcançados, nada mais interessante para incentivar novos projetos. Nada contra uma festa beneficente da calcinha cor-de-rosa, desde que o dinheiro arrecadado garanta despesas aos necessitados.
O filósofo Peter Singer acaba de lançar um novo livro, que trata exatamente de solidariedade. Em “A Vida Que Você Pode Salvar”, Singer afirma que os indivíduos deveriam fazer mais doações para tirar o mundo da pobreza. Um texto publicado no The New York Times e reproduzido na Folha de S. Paulo analisa a obra sem deixar escapar cutucões nos falsos filantropos. Entre os vilões estão os bilionários do software Paul Allen e Larry Ellison. Nem o fato de Ellison ter doado US$ 39 milhões em 2007 o retira da alça de mira do filósofo: “Ainda que Ellison não lucre mais um centavo, poderia doar US$ 39 milhões ao ano pelos próximos 600 anos e ainda reter US$ 1 bilhão para cuidar de sua velhice” — disse o filósofo.
Professor de bioética na Universidade Princeton, Peter Singer faz da carreira atos de causar desconforto nos outros. Em seu livro, elogia muita gente que doa até 50% de sua renda anual, afirma a reportagem. E não foge de polêmicas. Como a de que “filantropia para as artes e atividades culturais, em um mundo como este, é moralmente dúbio”. Os defensores da Lei Rouanet certamente não suportariam a propagação dessa tese. E exemplifica, para tripudiar: o Metropolitan Museum of Art, em Nova York, adquiriu um quadro de Duccio (di Buoninsegna) por US$ 45 milhões em 2004, quantia que diz Singer, pagaria por operações de catarata de 900 mil pessoas cegas ou quase cegas nos países em desenvolvimento. E, cortante, completa: “Se o museu estiver em chamas, alguém consideraria mais certo salvar o quadro de incêndio do que uma criança?”.
Nesse mundo em que as pessoas medem as palavras e os gestos e se recusam a instaurar o bom senso sufocado preventivamente pela conveniência, Peter Singer é um conforto. Sociedade de convergência forçada é sociedade de degringolada compulsória.
Quem tem coragem de desmascarar os falsos filantropos do Grande ABC? Ou, pelo menos, de não voltar a apresentá-los como filantropos? Já seria um grande avanço social e ético. Tão importante quando descobrir nos guetos sociais aqueles seres humanos que de fato praticam legados cristãos.