Uma única vez em mais de 40 anos de jornalismo acredito ter infringido a ética: gravei uma entrevista sem o conhecimento do entrevistado. Estava em jogo o desvendar de um dos maiores assaltos econômicos do Brasil — o escândalo do Proálcool — e não havia saída senão ouvir sorrateiramente aquele modesto despachante de São Caetano, metido na enrascada de notas fiscais superfaturadas. Era janeiro de 1986. Trabalhava para o Estadão e o Jornal da Tarde, na sucursal do Grande ABC. Acabara de deixar o Diário do Grande ABC.
Até hoje, confesso, não consigo conviver em paz com aquela malandragem, por mais que a causa fosse justa, embora — e isso não é novidade do Brasil varonil — não tivesse dado em nada. Depois de publicada com certo comedimento pelo Estadão, pelo Jornal da Tarde e por uma infinidade de veículos da Agência Estado, a reportagem caiu no esquecimento.
A morte do despachante pouco tempo depois, sem qualquer ligação com a matéria, provavelmente explique o constrangimento que me persegue, embora não devesse me perseguir. Pelo menos assim entendia esse pobre jornalista que já viu tanta coisa e acumula tanta descrença a ponto de, hoje, não sustentar dose semelhante de embriaguez profissional.
Um dia conto essa história todinha, como também contarei que, jovem necessitado de dinheiro, ganhei seguidamente três concursos de locutor nos programas do Bolinha, do Silvio Santos e do Chacrinha, em 1968.
Mas o que quero escrever mesmo é sobre o delito de gravações espúrias. Não, não estou me referindo a uma das modalidades em forma de escutas telefônicas não autorizadas ou autorizadas que nos colhem a todos, desde que, por alguma razão, os caminhos e as linhas que cruzamos sejam os caminhos e as linhas de investigados por supostos crimes. Da rede de desconfiança dos agentes de segurança, ninguém escapa.
Não existe gravação mais covarde e delinquencialmente ética do que a preparada para desestabilizar, irritar, confrontar, desestruturar. Ou mesmo a que submete vítimas1 a armadilhas de conversas informais que de informais não têm nada, mas sim a preparação de terreno para chantagens, amedrontamentos, essas coisas. É impossível passar o tempo todo sob rigoroso controle verbal. Frases aparentemente sem valor algum podem ser editadas e transformadas em escorregões inconsertáveis.
Quem não deixa escapar aqui ou acolá uma confidência? São essas confidências, quando manifestadas principalmente sob efeitos etílicos ou sob a estrita confiança no interlocutor que podem botar tudo a perder. Ou a ganhar para os chantagistas.
E é isso que me consola quando procuro minimizar aquela gravação que minhas fontes de então garantiam tratar-se de um dos pontos de quadrilhas organizadas que surrupiaram dos cofres públicos mais de US$ 3 bilhões em uma década de incentivos fiscais ao Proálcool. Não há erro de digitação: foram US$ 3 bilhões de gatunagem consumada há 23 anos.
A matéria em questão foi publicada às vésperas do anúncio do Plano Cruzado, com José Sarney na presidência e um punhado de fanfarrões proclamando que finalmente a inflação estaria debelada. Tudo não passou de vigarice eleitoral. O PMDB ganhou as eleições estaduais, num arrastão de votos impulsionado pelo ufanismo verde-amarelo do Plano Cruzado. Não demorou para derreter o congelamento de preços sob a lógica de que é impossível revogar a lei da oferta e da procura e, também, porque o governo esqueceu de fazer sua parte, de corte de gastos. Muito pelo contrário.
A contextualização é importante porque a obrigatoriedade de publicar uma matéria explosiva produzida por um jornalista que não atuava na sede do conglomerado Estadão, na Capital, tornou-se incômoda. A denúncia feria suscetibilidades, diríamos assim. Protelou-se o quanto pode, até que surgiu a oportunidade. A matéria foi editada no tempo e no espaço mais adequados, submetida à inferioridade do impacto provocado com o lançamento do Plano Cruzado.
Insisto no inconformismo conceitual de que gravar sob condições pré-estabelecidas para transformar o conteúdo em peça acusatória ou em ponta-de-lança de chantagem é um dos delitos que deveriam ser punidos com rigor.
E como tem gente inescrupulosa que, com as facilidades que a tecnologia incentiva, enfia bolsa adentro, decote adentro, genitália adentro, objetos aparentemente insuspeitos que capturam som com a nitidez de estúdios de gravação.
Sei de muitos casos de banditismo tecnológico. Há endereços insuspeitos nos quais visitantes se ferram para sempre. Todos os passos, vozes e confidenciais são rigorosamente objetos de áudio e, vejam só, também de vídeo. O terrorismo bisbilhoteiro é completo, a partir do elevador.
Pobres daqueles que caem na arapuca, infelizes daqueles que, ludibriados pelas gentilezas dos anfitriões, pelos salamaleques de lindas atendentes, pelo sorriso fácil de quem lhes estendem a mão, abrem-se como paraquedas. Estão lascados pelo resto da vida — pelo menos pelo resto da vida política, principalmente.
Há gente aprisionada no Grande ABC por gravadores e também por câmeras. Não falta quem vá muito além dos limites da transgressão já insuportável. Eles atacam também nas alcovas, principalmente nos relacionamentos extraconjugais.
Há uma rede de intrigas e de desmoralização, de boataria sórdida, quando não de difamação, com o suporte de gravadores de áudio e imagem. Depois que inventaram uma tal caneta de flagrantes insondáveis a lentes mais robustas e sensíveis do passado, massificou-se o delito.
Estamos chegando a um ponto em que somente é possível contar minúcias de determinado assunto a quem é extremamente confiável e mesmo assim tomando-se todos os cuidados para abafar eventuais gravações.
Uma das saídas é marcar encontros em locais barulhentos ou suficientemente captadores de ruídos que sufoquem a curiosidade tecnológica de terceiros. Estamos vivendo numa sociedade bigbrotheana cujos desfechos vão muito além da ficção orwelliana.
Há também exceção à regra. Nem toda gravação é espúria e desonesta. Há gravações involuntárias, reveladoras, esclarecedoras e desafiadoras.
Um exemplo: guardo com extremo cuidado aquelas frases ameaçadoras à minha integridade física, proferidas por alguém que, do outro lado da linha e diante do sinal de ocupado de meu celular, deixou uma esbaforida mensagem na caixa postal que explica tantas coisas que fiz em seguida porque, embora razoavelmente corajoso, decididamente pronto para qualquer embate profissional, sei exatamente quando os limites individuais
se evaporam frente à imperiosidade da proteção familiar.
Não sou candidato a herói num País de tantos covardes, mas também não sou o otário que alguns imaginam que seja por conta daqueles papéis.
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29/11/2024 TRÊS MULHERES CONTRA PAULINHO