Sociedade

Temperamento e caráter

DANIEL LIMA - 26/11/2009

Distinguir temperamento de caráter é equação aparentemente simples, mas a maioria cai na besteira de trocar os pés da aparência pelas mãos da consequência. Quantos temperamentos menos convencionais são a exposição sem truques de personalidade sem mistificações que paga o preço da transparência no banco da reputação? Quantos carateres camaleônicos hospedam vírus fatais de conquistador de almas e corações incautos que investe na poupança do politicamente correto?


É muito improvável que no convívio social do trabalho, da escola, do clube, das relações negociais, de qualquer coisa que implique cumprimento de agenda de sociabilidade, o temperamento e o caráter sejam indefinidamente encobertos.


Entretanto, por mais que a formalidade ganhe a força de uma blindagem à essência dos interlocutores, a verdade aparece e por isso mesmo costuma reparar injustiças, confirmar suspeitas, delatar idiossincrasias e toda a rede de atributos e pecadilhos de uma sociedade.


Alguém que se apresenta a terceiros como vítima de um passado sustentadamente infrator, logo mostrará a cara. Não há temperamento que não seja sufocado ou glorificado pelo caráter.


Inquestionavelmente, temperamento mostra logo as cartas, porque o cotidiano dificilmente permite jogo de cena permanente. Em situações que fogem à normalidade testam-se e escancaram-se os nervos. Temperamento é o sol de verão que brilha. Já o caráter é menos suscetível a definições imediatas. É a lua escondida entre nuvens a emitir luzes nem sempre perceptíveis.


O tempo sempre breve que ajuda a desnudar o sentido prático de temperamento é mais duradouro na prospecção de caráter, porque atua diretamente na destruição de arranjos relacionais construídos sobre castelo de areia de maquinações psicológicas.


Temperamento é o veículo em sentido contrário ao qual sempre prestamos muita atenção para não sermos surpreendidos por eventual barbeiragem. Estamos sempre a postos para reagir ao menor sinal de perigo. Um temperamento irritadiço é como um farol vermelho que nos incomoda, porque a expectativa é sempre e sempre de sinal verde de civilidade programada. O temperamento calmo é sempre uma porta aberta a avanços que o temperamento arredio muitas vezes só consegue com talento superior e incontestável.


Caráter é a curva fechada sem sinalização que se apresenta de repente ao motorista que imaginava trafegar por uma estrada sem armadilhas, liberadíssima para alta velocidade. Um descuido numa curva de tangência restrita pode ser fatal.


Quem já não quebrou a cara ao confundir temperamento e caráter? Quantos temperamentos indomáveis ou fora dos padrões de salamaleques que a sociedade impõe até mesmo como código de sobrevivência se revelaram muito mais confiáveis que os detentores de caráter esculpido com maquiavelismo sobre a fortaleza de temperamento plácido?


Temperamento e caráter não são porções excludentes da personalidade. Não existe uma parede genética nem de usos e costumes que divida previamente temperamento e caráter. Um temperamental tanto pode ter bom como mau caráter. Um temperamento mais suave também não está fora da faixa que divide bom e mau caráter.


A dificuldade é detectar o bom e o mau caráter. Leva tempo até que a máscara caia. Pequenas atitudes geralmente o denunciam. O confronto de informações, a observação atenta dos relacionamentos, a segurança de opinião, os laços de lealdade, tudo isso pesa e pesa muito quando se pretende distinguir alhos de bugalhos. Generosidade de tratamento costuma reunir também a contraface de porta de entrada a ciladas de portadores de caráter que o tempo provará desajustado. A porta de saída é o desencanto, quando não a prostração.


A competitividade destes tempos, sobretudo numa região economicamente esfacelada como o Grande ABC, expõe procedimentos pessoais que definem o lado ao qual pertencem os agentes sociais.


Em períodos de dinamismo econômico, como o Grande ABC viveu durante 40 anos, desde a chegada da indústria automobilística, a fartura de oportunidades e a mobilidade social conceberam uma sociedade menos fragmentada.


As últimas duas décadas de esvaziamento econômico dilaceraram os laços de civilidade. Pratica-se despudorado salve-se-quem-puder. O toma-lá-dá-cá consagrado na política, campo aberto à flexibilidade ética, já caiu em desuso por aqui. Prevalece o dá-cá-e-estamos-conversados.


Somente um estudo sociológico poderia aferir com certo grau de precisão até que ponto a sociedade do Grande ABC mergulhou no pântano do individualismo predatório e incontrolável, gerador de anomalias diversas que poderiam ser resumidas numa única palavra — oportunismo.


O futuro só a Deus pertence mesmo, porque vivemos numa comunidade que não enxerga um palmo à frente do nariz de responsabilidade social. As exceções só confirmam a regra.


Vale mais a aparência de suposto bom caratismo de ocasião do que o inconformismo do temperamento menos adocicado à situação.


No vale-tudo econômico e social de sustentação, manutenção ou recuperação de territórios individuais postos em xeque pelo rebaixamento da qualidade de vida no Grande ABC, o aqui e agora ganha muito mais força, embora contrate inevitavelmente o desencanto do amanhã.


E assim retroalimenta-se o processo de raquitinização das relações sociais.


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