Sociedade

Uma região amedrontada ou
há enigma a ser desvendado?

DANIEL LIMA - 11/11/2022

Deu no Diário do Grande ABC (em estado bruto, ou seja, sem agregado de valor, típico de jornalismo fastfoodiano) que os recenseadores do IBGE encontraram na região em relação à média nacional muito mais dificuldades para preencherem cotas de trabalho. O que isso significa, afinal? 

Das cidades da região, segundo o Diário, Santo André apresenta a taxa mais elevada de recusa, com 5,73% do total, o que significam 12.193 moradias. São Bernardo vem a seguir com média de 4,91%, Diadema com 4,42% e Mauá 3,43%. No total em números absolutos, foram 34.647 casos para 878.265 domicílios visitados. O que dá média regional de 3,95%. No Brasil a média detectada pelo IBGE é de 2,33%.  

Afinal de contas, o que se passa especialmente em Santo André e São Bernardo?  

CONVERSA ANIMADA  

Posso responder com a experiência de quem recebeu um agente do IBGE. O sentimento de precaução só foi embora depois de uma conversa bem animada com o profissional. Um portão de ferro nos separava.  

Por mais que o agente do IBGE me parecesse mesmo agente do IBGE, pela indumentária principalmente, mas também porque, de meia idade, não parecia outra coisa, tomei as devidas cautelas.  

Quando a inquietação deu lutar à confiança, até o convidei a tomar um refrigerante. Ele agradeceu e dispensou. Talvez ele temesse a reação de minhas duas cachorras. Bobagem, claro.  

Lolita e Luly são camaradas. Mais a segunda do que a primeira que, na verdade, se entrega apaixonadamente a qualquer aceno. Como uma veio de um shopping e a outra da rua, acho que a carência explica. 

BOBEOU, DANÇOU  

Recentemente passei por experiência que só não se tornou dolorosa a meu bolso porque fui salvo pela mesma pessoa que estava no pet shop naquela tarde fatídica. Uma parceira de trabalho que tem capacidade impressionante de manter o sangue frio e o ceticismo alerta. Desconfia de tudo e de todos.  

Se no pet shop essa parceira de jornada de trabalho não só me socorreu como guardou ponto por ponto na memória todos os lances do assassinato não consumado, destrinchando-os como testemunha vital, desta feita foi ágil o suficiente para impedir a entrega de bandeja de minha conta digital a um impostor, um tal Frei Márcio, réplica cuspida do estereótipo de missionário. 

Tudo se deu quando o falso Frei Márcio apareceu no portão naquela tarde. Esse missionário de meia tigela me levaria no tapa e no bolso não fosse minha parceira de jornadas.  

Ela, a parceira de jornadas, desconfiou e impediu, com dados digitais mutantes, que o missionário Márcio, o falso missionário Marcio, se lambuzasse com minhas economias.  

DESCONFIANÇA JUSTA  

Imagino a cara de palerma quando tentou sacar o dinheiro que estupidamente liberei alguns minutos antes, embevecido como sempre por uma causa humanitária. 

Diante disso e de tantas outras situações em que minha porção pessoal, a de Daniel José de Lima, compromete minha porção profissional, de Daniel Lima sempre atento, fiquei mesmo desconfiado do agente do IBGE.  

O agente do IBGE reclamou educadamente da campainha que não funciona. Decidi desligar o equipamento há muito tempo porque tocava como tamborim em carnaval, tão exposto que fico numa casa assobradada.  

Felizmente tudo correu na imensidão de uma conversa fraternal, esclarecedora sobre quem mora na residência. Até tivemos tempo para conversar sobre a vida.  

MEDO DOBRADO  

Descobri o quanto ele anda por dia e quantas residências visita. E como alguns moradores o recepcionam. O medo faz parte da rotina. Um medo duplo, de entrevistador e de entrevistado.  

Se até mesmo essa pessoa física que se traveste de jornalista como pessoa jurídica deixou a placidez de confiar em todo o mundo, depois de solavancadas da vida, o que dizer então do conjunto da população do Grande ABC. 

O que mais lamento entre muitos lamentos de quem mora há tanto tempo no Grande ABC é a impossibilidade de ter acesso a subjetividades de três milhões de habitantes. De materialidades estatísticas acho que estou cheio.  

MUITAS DÚVIDAS  

Afinal, qual é a cara regional em vários quesitos? Não nos conhecemos mesmo.   

Quantos são os moradores de direita, de esquerda, de centro?  

Quantos acreditam que o Estado Todo Poderoso resolverá nossos problemas?  

Quantos são adeptos para valer da livre-iniciativa?  

Quantos acreditam na seriedade e na ética de determinados setores empresariais, como o da construção civil, por exemplo?  

Quantos, nesse caso específico, já não foram enganados por bandidos imobiliários?  

Temos tantas perguntas a fazer em busca de respostas improváveis que sinto vazio imenso.  

Só consigo entender mesmo os números, as estatísticas, tudo o que busco aqui e ali há décadas, de modo a tentar formar um mosaico de objetividades específicas. 

Especulando aqui e ali, gostaria imensamente de saber quantos por cento da população com título de eleitor estão preocupados para valer com o que se passa no ambiente municipal, em torno da classe política local?  

E quantos só querem saber mesmo é do ambiente político nacional, cada vez mais intolerante e extremista.  

Tenho cá comigo que o medo que tive em atender ao agente do IBGE é a vitrine escancarada de um sentimento regional instaurado no Grande ABC, em contraste com a melhoria acentuada dos indicadores criminais.  

DADOS MELHORAM  

Sim, já mergulhamos no pântano da crueldade em matéria de homicídios dolosos (o item mais importante em qualquer ranking que pretenda medir o tamanho de preocupações de uma sociedade).  

Os anos 1990 foram uma festa para a bandidagem. Acavalaram-se desemprego, desindustrialização e criminalidade impune.  

Chegamos a contar com mais de 1,5 mil homicídio numa mesma temporada. No ano passado não chegamos a 300.   

Estamos, portanto, mais distantes da barbárie contabilizada, mas esse medo (não seria outra coisa) de passar pelo recenseamento para saber o quanto somos e mais algumas respostas, tudo isso é intrigante.  

INSEGURANÇA AMBIENTAL  

O ambiente de insegurança regional, independentemente da melhora na área de criminalidade, está posto e consumado.  

Morremos criminalmente menos que antes, mas morremos de medo também acima do razoável.   

O lamentável nessa história toda é que autoridades constituídas da região e mesmo as chamadas lideranças de classe, de empregadores e de trabalhadores, não vão jamais se preocupar com o que os recenseadores do IBGE estão passando.  

Vamos continuar sem respostas e vamos seguir reagindo individualmente.  

A banalidade do crime menos acentuado que antes, mas internalizado em cada um de nós virou normalidade desprezada.  

TUDO MUITO ESTRANHO  

Uma região como a do Grande ABC sem identidade também no sentido de entender o que se passa em suas entranhas geográficas é uma região fadada ao fracasso continuo e a dar vazão ao gataborralheirismo em relação à cinderelesca capital.  

Não sabemos quem somos e para onde vamos em nenhum sentido da vida pessoal, profissional, comunitária e institucional. Somos um barco sociológico à deriva.  

Só nos deparamos de vez em quando com algo que nos tira dessa profunda sonolência cidadã. 

 Os agentes do IBGE deveriam servir de desafio regional. Deveriam mexer com nosso brio. Deveriam nos cutucar.  

Mas a notícia do Diário, meramente relatorial, sem qualquer abrangência sociológica, mesmo na trilha mais compulsória da criminalidade, não despertou praticamente nenhuma atenção. 

ROTINA CORROSIVA  

Fosse nos tempos em que o Diário do Grande ABC foi comandado na redação por quem tratava a região sem triunfalismo, contando para tanto com uma equipe de profissionais igualmente doutrinados a provocar transformações, a recusa ao atendimento do pessoal do IBGE seria manchetíssima (manchete da manchete da primeira página) porque reuniria muito mais que dados fornecidos pelo governo federal. 

Respondendo às questões postas na manchetíssima de hoje, lá em cima, diria que o Grande ABC está escancaradamente amedrontado numa metrópole ensandecida e, também, é refém de vastíssima e enigmática agenda de compromissos de todos.  

ALGEMAS IMOBILIZADORAS  

Nossa regionalidade é uma farsa que acalentamos num autoengano que em nome de uma grife supostamente brilhante (Grande ABC, Grande ABC) não passa de algemas a limitar movimentos sociais e econômicos.  

Os agentes do IBGE provavelmente estejam recolhendo nas quase um milhão de residências do Grande ABC um retrato muito mais bem-acabado que dados numéricos e informativos que os formulários-padrão demandam e lubrificam macrodados nacionais.  

Eles são agentes temidos e temerosos de um ambiente que se degrada silenciosamente porque no fundo não se restringe a estatísticas criminais explicitas ou implícitas, mas também ao desencanto de uma área econômica na qual a mobilidade social ficou no passado, enquanto a mobilidade urbana virou um inferno.   



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