Quando um instituto de pesquisa, qualquer instituto de pesquisa, vai a campo com o espírito jornalístico, contaminado pelo espirito jornalístico, o resultado é um destrate.
O Instituto Datafolha, do Grupo Folha, da Folha de S. Paulo, é a prova viva desse haraquiri de comunicação social.
Na semana que passou, nas edições de quinta-feira e sexta-feira, a Folha editou os resultados da mais recente pesquisa do Datafolha, agora sobre as ocorrências de violência em Brasília, em oito de janeiro.
Mostramos nessa análise os equívocos cometidos pela Folha/ Datafolha, que dividimos nos seguintes pontos:
DIRECIONAMENTO ENVIESADO.
CONDENAÇÃO EXAGERADA.
JULGAMENTO SUMÁRIO.
FUGINDO DO EXCESSO.
CULPABILIDADE COMPULSÓRIA.
PARTIDARIZAÇÃO INADEQUADA.
CRIMINALIZAÇÃO EXPLÍCITA.
MAIS DEMOCRACIA.
Uma leitura atenta e desapaixonada é recomendável, embora em circunstâncias normais de tempo de democracia de verdade e temperatura de bom senso indiscutível nem seria necessário sugerir cuidados especiais.
O que temos em seguida é a mais pura e confusa mistura de jornalismo de opinião e pesquisa de opinião.
O que separa um conceito do outro é a natureza do primeiro e a esperteza do segundo.
A natureza do primeiro, de jornalismo de opinião, de posicionamento, de doutrina, é da Folha de S. Paulo.
Goste-se ou não, é o que temos para o café da manhã de todos os dias. Sou assinante e devorador da Folha.
A esperteza, para não dizer safadeza, envolve o Datafolha. O instituto, dominado pela Folha de S. Paulo, confunde alhos de opinião pública com bugalhos de opinião jornalística.
O Datafolha não age como instituição liberta de vieses da dominadora Folha de S. Paulo. Vai a campo não necessariamente para ouvir a opinião dos entrevistados. Vai a campo para incrementar intervenções descabidas na opinião dos entrevistados.
Veja as razões que me levaram mais uma vez a atribuir à dupla Folha-Datafolha definições pouco elogiosas. Um direito sagrado de quem é assinante da Folha e consumidor pantagruélico de pesquisas.
DIRECIONAMENTO ENVIESADO
A estrutura supostamente cientifica do questionário aplicado pelo Datafolha cai em descrédito porque se fundamentou numa farsa. Ao caracterizar os acontecimentos em Brasília como vandalismo, o Datafolha assumiu a porção de jornalismo que não lhe compete.
Vou explicar: a Imprensa, Velha Imprensa ou não, pode rotular os acontecimentos de oito de janeiro em Brasília como vandalismo, atos terroristas e o que mais desejar para impactar a opinião pública e retratar a realidade dos fatos sob a ótica da linha editorial adotada.
Entretanto, um instituto de pesquisa não pode incorporar a mesma dosagem de tratamento. As respostas que pretende obter seriam como foram respostas condicionadas e turbinadas por um determinado pressuposto jornalístico.
Embora a Folha de S. Paulo não reproduza integralmente o enunciado de cada pergunta, em todas as situações oferecidas aos entrevistados o resumo da ópera se refere “aos atos de vandalismo, de invasão e de destruição aos prédios públicos do STF, Congresso e Palácio do Planalto”. Isso é jornalismo, apenas jornalismo. E não compete ir aos entrevistados em forma de pesquisa.
Portanto, a formulação das questões pelo Datafolha deveria ser neutra. Caberia a cada entrevistado emitir juízo de valor de acordo com o conhecimento do caso.
Dessa forma, ao invés de “vandalismo” e similares, o enunciado deveria remeter “às ocorrências de violência de domingo em Brasília” ou a algo semelhante que não arbitrasse juízo de valor algum. O ideal mesmo seria apenas “ocorrências de domingo em Brasília”.
Não custa observar essa ponderação por um ângulo completamente diferente, mas que retrataria também o conceito de neutralidade.
Quais seriam os resultados que sairiam das planilhas dos entrevistadores do Datafolha se ao invés de “atos de “vandalismo” e “vândalos”, como se referiu no enunciado, utilizassem “ocorrência de violência”?
E não se pode dizer que “ocorrências” deixaria de ser adequado. Afinal, não tomaria parte opinativa e indutiva junto ao entrevistado.
A contraface mais radical de “vândalos” do formulário do Datafolha seria algo como “indignados eleitores”, num evidente favorecimento a respostas que aliviariam a barra dos participantes e as avaliações do caso, agora em sentido oposto.
Ou seja: indignados eleitores e vândalos seriam a expressão de pontos de vista antagônicos sobre as ocorrências, dependendo do enunciado escolhido. Por isso que simplesmente “ocorrências” ganha neutralidade garantidora da opinião dos entrevistados.
Entretanto, quem acredita que a formulação alternativa, de “indignados eleitores” está equivocada ou incentivaria suposto atenuante ou justificativa aos atos violentos, não perde por esperar no conjunto desta análise.
Portanto, a pesquisa Datafolha sobre os registros de violência em Brasília é um foco comprometedor de metástase generalizada. Uma avaliação central que se espalha pelo tecido de sustentação das demais respostas.
CONDENAÇÃO EXAGERADA
A manchete de página da Folha de S. Paulo de quinta-feira (“93% condenam ataques golpistas, e maioria defende prisões, afirma Datafolha”) é uma das faixas de insolvência de credibilidade da publicação.
Primeiro porque a manchete e seus resultados estão anexados ao equívoco já mencionado, ou seja, de o Datafolha tratar a pesquisa com enunciados da Velha Imprensa, opinativa e agressiva, não como exposição isenta de juízo de valor do que se apresenta como fonte de perscrutação.
Segundo porque mesmo com todo esse vício técnico-metodológico, a garantia de robustez da opinião dos entrevistados, que seria de 93% de condenação “aos atos de vandalismo aos prédios do Congresso, STF e Palácio do Planalto”, está longe de enquadramento publicado.
Tanto é verdade que apenas “43% afirmam que tomaram conhecimento dos atos de vandalismo e que estão bem informados”. Ainda segundo o Datafolha, 41% dos entrevistados “tomaram conhecimento e está mais ou menos informado”, outros 12% “tomaram conhecimento e está mal informado” e 4% “não tomaram conhecimento”.
Traduzindo: dos 93% que “condenaram ataques golpistas”, menos da metade (43%) de fato disseram ter conhecimento pleno dos incidentes. Outro bloco robusto, de 41%, não poderia ser colocado no mesmo patamar de avaliação, porque se disseram “mais ou menos informados”. Quem geralmente diz que está “mais ou menos” informado sobre qualquer coisa é alguém que geralmente está mal-informado. E quem está mal-informado não pode ter equivalência de peso de quem se diz bem informado.
JULGAMENTO SUMÁRIO
Também sempre sob o guarda-chuva de impropriedades dos questionários, o Datafolha adotou postura de justiçamento social ao perguntar aos entrevistados se “todas as pessoas que participaram dos atos de vandalismo deveriam ser presas”.
Para começar, o enunciado é duplamente viciado, porque além “dos atos de vandalismo”, tem-se a imposição subliminar de que “todas as pessoas que participaram deveriam ser presas”.
Imagine-se a pressão psicológica do entrevistado diante desse questionamento. Há praticamente uma convocação à condenação peremptória dos envolvidos. E mesmo assim, apenas 46% responderam que “todas deveriam ser presos”, enquanto 26% optaram por “apenas algumas deveriam ser presas”, 15% “a maioria deveria ser presa” e 9% “ninguém deveria ser preso”.
As respostas pré-estabelecidas deixam pouca margem de manobra a quem eventualmente desconsiderasse punição. Toma-se uma escala de gravidade punitiva como princípio de escolha. Um artifício que introduz o vírus ao favorecimento punitivo.
FUGINDO DO EXCESSO
Embora o Datafolha tenha insistido em chamar todos os manifestantes de vândalos, uma pergunta específica sobre o assunto não obteve o resultado maciço esperado. “Como classificaria o grupo de pessoas que praticou vandalismo em Brasília?”.
Sim, foi exatamente esse o enunciado proposto mais uma vez numa linha de questionamento supressivo à escolha independente de artifícios adredemente aplicados.
Entre as respostas espontâneas, apenas 18% concordaram com o enunciado que remete a vandalismo. Ou seja: mesmo com todo o aparato condenatório do questionário como um todo, menos de um quinto dos entrevistadores seguiu a pregação do Datafolha.
Por outro lado, 30% das respostas não foram detalhados pela Folha e as demais escolhas, a critério de cada entrevistado, pontuaram marginalmente. Exceto a “terroristas” com 15%.
Quando se considera que o encaixe de “vandalismo” contaminou integralmente o questionário levado aos entrevistados, embora não obtivesse respaldo da maioria, não são nada surpreendentes as demais definições apontadas pelos entrevistados. A baixa aprovação de “vandalismo” seria a pá de cal da pesquisa, não fossem outras aberrações.
CULPABILIDADE COMPULSÓRIA
A indagação que se segue, de formulação condenatória, é um acinte quando se pretende tomar o pulso da opinião pública sobre os acontecimentos em Brasília.
Mas o Datafolha, que segue à risca preceitos totalitários do jornalismo da Velha Imprensa, sob o manto do Consórcio de imprensa, não perderia a oportunidade de atacar o ex-presidente da República.
Essa conclusão não tem viés opinativo, como tantas outras constatações. Não está em debate se Jair Bolsonaro teve influência ou não nos acontecimentos em Brasília. O que se expôs, mais uma vez, é o sagrado direito de opinar sem o sobrepeso de sutis ou escancaradas definições do Datafolha.
Para o caso do enunciado “o ex-presidente Jair Bolsonaro teve responsabilidade pelos atos de vandalismo em Brasília?”, os entrevistados optaram por 38% de “muita responsabilidade, 39% de “nenhuma responsabilidade” e 27% de “um pouco de responsabilidade”.
Agora vem o pior: a manchete da Folha de S. Paulo, edição de sexta-feira, dá a esses resultados o seguinte enunciado: “55% apontam responsabilidade de Bolsonaro em vandalismo”.
Trata-se, claro, de erro monumental, mas proposital quando se considera a linha editorial da Velha Imprensa.
É inadequado sob qualquer ponto de vista que aos 38% que optaram por “muita responsabilidade de Jair Bolsonaro” (menos portanto que os eleitores que não votaram pela sua reeleição em outubro) se somem 17% que atribuíram ao ex-presidente “um pouco de responsabilidade”. Quem diz “um pouco” está mais próximo da negação do que da confirmação de qualquer coisa que lhe interessa como juízo de valor.
PARTIDARIZAÇÃO INADEQUADA
Ao perguntar aos entrevistados (“o presidente Lula afirmou que o ex-presidente Jair Bolsonaro estimulou esses atos violentos”), o Datafolha partidariza o questionário, como se não bastasse o estupro ético e técnico ao impor ingredientes próprios de jornalismo numa atividade de consulta social.
Mesmo com mais esse tropeço técnico, e sempre com a conotação de induzir posição condenatória dos entrevistados, não mais que 34% respondeu “concorda totalmente”, enquanto 31% “discorda totalmente”. Outros entrevistados (14%) responderam “discorda parcialmente e 11% “concorda parcialmente”. É uma confusão dos diabos que não leva a lugar algum. Exceto, claro, à barafunda do Datafolha e da Folha.
CRIMINALIZAÇÃO EXPLÍCITA
Outro questionamento do Datafolha, revelado pela Folha na edição de sexta-feira é a expressão sem pudores de condenação ao ex-presidente da República. Veja o enunciado: “Após os atos de vandalismo em Brasília, sua opinião sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro mudou ou continua a mesma?”.
Não é preciso ter mais que dois neurônios para entender a mensagem subliminar. Dentro de um pacote de questionamentos, cuja ordem aplicada tem potencial de deslocar a outros destinos as respostas dos entrevistados, está na cara que se busca criminalizar o ex-presidente.
Mesmo assim, a resposta é elucidativa como fonte a considerações que não cabem agora. Nada menos que 80% disseram que “não mudou” de opinião. Para 11% a mudança foi para pior e para 5% a mudança foi para melhor. Quando se aplica a margem de erro de três pontos percentuais, praticamente nada teria se alterado.
MAIS DEMOCRACIA
Finalmente, e deixei para o fim o que pareceria a muitos o melhor e mais intrigante ingrediente do festival de contradições e manipulações da Folha do Datafolha, e do Datafolha da Folha, o enunciado que toma o pulso dos entrevistados sobre o sentimento nacional é extraordinariamente instigante.
Veja o que o Datafolha perguntou, com viés impregnado pelo conjunto das questões anteriores:
“Você diria que tem mais orgulho do que vergonha ou mais vergonha do que orgulho de ser brasileiro?”.
As respostas? 70% dizem ter “mais orgulho do que vergonha” e 27% “mais vergonha do que orgulho”.
Nesse caso, cabe uma indagação pertinente: a maioria avassaladora tem mais orgulho porque o Brasil está em plena democracia ou a maioria avassaladora tem mais orgulho porque a democracia foi salva de atos terroristas, de vândalos, como não cansa de afirmar a Velha Imprensa?
Cada um que faça a escolha que mais lhe interessa. Convém lembrar, entretanto, a título de colaboração e de orquestração de entendimento, que menos da metade dos entrevistados têm pleno conhecimento dos acontecimentos em Brasília, que a correlação de forças entre direita e esquerda não sofreu abalos de desequilíbrios e que o prestígio de Jair Bolsonaro, o sujeito mais que implícito à condenação do Datafolha e do Folha, não sofreu arranhões.
Talvez um detalhe da resposta publicada pela Folha de S. Paulo contribua (e muito) para um olhar mais positivo e possivelmente muito menos deslustrativo dos acontecimentos populares inaugurados por Jair Bolsonaro há quatro anos.
Trata-se do seguinte: em 2000, portanto durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, quando a democracia brasileira era dividida entre tucanos e petistas, sempre muito próximos, embora parecessem beligerantes, apenas 12% dos brasileiros tinham mais vergonha do que orgulho, ante 87% que tinham mais orgulho do que vergonha de ser brasileiro. Eram tempos, também, sem redes sociais.
Em 2017, depois do Mensalão, do Petrolão e do impeachment de Dilma Rousseff, eram 47% que diziam ter “mais vergonha” que orgulho de ser brasileiros, ante 50% que tinham mais orgulho do que vergonha.
Agora, mesmo com as ocorrências de violência em Brasília (ou seria por conta disso, perguntarão alguns mais ousados?) apenas 27% disseram ter mais vergonha do que orgulho de ser brasileiros. Ou seja: quase a metade dos brasileiros de 2017. Enquanto isso, 70% afirmaram que têm mais orgulho do que vergonha do País.
Esse percentual de satisfação de ter mais orgulho de ser brasileiro remete, por fim, à possibilidade de a franqueza e a sinceridade dos entrevistados do Datafolha não terem percorrido trajetória de segurança individual.
Os entrevistados em algum grau relevante poderiam ter adotado respostas mais compatíveis com o enquadramento incisivo do Datafolha.
Ou seja: teria se montado um castelo de areia de respostas politicamente corretas ante o desmesurado desequilíbrio do escrutínio repleto de conceitos jornalísticos, mas impróprios à pesquisa.
Houvesse sido durante quatro anos o que a Velha Imprensa sempre destilou, abarrotando Jair Bolsonaro de iniquidades, transformando-o em genocida, corrupto e antidemocrático, como explicar (e não custa repetir os dados) que “tem mais orgulho que vergonha de ser brasileiro” em junho de 2017 não passava de 50% ante 47% de quem dizia “ter mais vergonha do que orgulho”. Agora, em pleno 2023, nada menos que 70% dos brasileiros “têm mais orgulho” ante 27% dos que “têm mais vergonha”?
Não venham me dizer que é por causa de Lula da Silva. Isso não cola. Primeiro porque oficialmente o jogo eleitoral terminou praticamente empatado em outubro e nada indica reviravolta em qualquer um dos lados, como a própria pesquisa do Datafolha confirma.
Há uma clareza solar em tudo isso: o Datafolha e a Folha fazem trambicagens que não se sustentam. São tão autodenunciáveis quanto condenáveis.
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20/09/2024 O QUE VAI SER DE SANTO ANDRÉ?