Imprensa

Bolsonaro de “meu chapa” e
Lula agora de “chapa branca”

DANIEL LIMA - 15/06/2023

Faço uma mistureba dos diabos, mas os leitores vão entender. Trata-se do seguinte: entre o cercadinho do então presidente Jair Bolsonaro, e de lives às quintas-feiras, e agora o lançamento da estratégia petista de entrevista do presidente Lula da Silva nas redes, não descarto nenhuma das duas.  

Estou sendo condescendente. Há 20 anos apresentei uma sugestão às autoridades públicas, privadas e sociais da região visando tornar mais próxima a relação com a sociedade em geral. Passaram-se, portanto, 20 anos. E a prova do crime está logo abaixo.  

A comunicação social, principalmente de autoridades públicas no Brasil, anda a passos de tartaruga. Está melhor que há 20 anos, exatamente 20 anos, repito, quando escrevi a respeito do distanciamento social de tomadores de decisões na região e no País como um todo. 

Sugiro aos leitores que acompanhem logo abaixo a análise que produzi em março de 2003. Faço ali uma radiografia do que chamei de “democracia de araque”.  

QUE DEMOCRACIA?  

Aliás, democracia no Brasil, nas mais diferentes esferas e instâncias, é hipocrisia destilada no sentido de incentivar o entorpecimento humanístico nestes tempos tenebrosos, ou mesmo por safadeza. Quem enxerga o Brasil democrático é ruim da cabeça de vento ou doente do pé bichado.  

Não preciso repetir o que está naquela abordagem de 20 anos passados para trazer a estes dias um assunto que ganhou manchetes agora, quando o presidente Lula da Silva decidiu levar sua voz às redes sociais em entrevistas encomendadas. Entrevistas chapa-branca, como defini na manchetíssima aí em cima. 

Da mesma forma, nos tempos de Jair Bolsonaro, tínhamos entrevistas em redes sociais típicas de “meu chapa”, antecedidas durante a semana por encontros no chamado cercadinho do Palácio do Planalto. 

Tanto no caso de Bolsonaro quanto de Lula as declarações não têm compromisso com os rigores do contraditório. Distante disso. 

Mas não é por conta disso que os dois modelos são inservíveis. É melhor tê-los do que não os ter. 

TEMPOS LIMITADOS  

Mas é muito pouco e deveriam ser cuidadosamente observadas como base da plataforma de embarque na democracia comunicacional de autoridades públicas ou não.  

É disso que tratei há 20 anos, quando as redes sociais não existiam, a Internet era capenga e os aplicativos nem constavam das fantasias dos cientistas digitais.   

Insisto em me lembrar que não devo avançar o sinal de uma ejaculação editorial precoce, porque o que segue logo abaixo não pode ser canibalizado pelo que está aqui em cima. Mas, por mais desvios que faço acabo sendo desafiado a dar novas movimentações de direção porque parece incontornável queimar o filme.  

Vou tentar buscar uma variante para chegar aonde preciso. Houvesse o que desfilei de argumentação há 20 anos (não se apresse em ler o que está aí embaixo), algumas perguntas não fariam parte de minha expectativa em ser atendido. As perguntas não existiriam porque já teriam sido respondidas.  

ALGUMAS QUESTÕES  

Quer ver como é melhor ter o meu-chapa de Bolsonaro e o chapa-branca de Lula da Silva quando no ABC Paulista o que temos é apenas e somente um modelo de entrevistas individuais oficiais que viram notas igualmente oficiais transformadas portanto em jornalismo oficial enquanto a sociedade torce e reza por esclarecimentos que contenham um mínimo de independência? 

Então vejam algumas das questões que gostaria de ver respondidas e não o são porque os pretensos entrevistados não falariam sobre o que pretendo entre outras razões por conta do conservadorismo nas relações com a sociedade. Vamos lá: 

1. Para o reitor da UFABC, Universidade Federal do ABC:  

Quantos são e onde estão estabelecidos, com as respectivas funções, alunos que desenvolvem em empresas privadas da região aprendizado ou aperfeiçoamento profissional compatível com o currículo escolar? 

2. Para o prefeito Orlando Morando, de São Bernardo:  

Quais as obras públicas de infraestrutura que sua Administração desenvolveu desde seu primeiro mandato e o que representaram em termos de negócios por se desbravarem um dos maiores nós da região, no campo da logística? 

3. Para o prefeito Paulinho Serra:  

Qual é o Valor Adicionado das fábricas sediadas em Santo André ao longo do entorno da Avenida dos Estados levando-se em conta as transformações ocupacionais dos últimos 10 anos? 

4. Para o prefeito José de Filippi Júnior:  

Como se explica que Diadema, dotada supostamente da melhor logística regional, tendo a Anchieta, a Imigrantes e o Rodoanel na cara do gol de investimentos e produção, tenha caído verticalmente na geração de riqueza nas duas últimas décadas? 

5. Para o prefeito de Mauá, Marcelo de Oliveira:  

Como aceitar que a cidade que tem o Polo Petroquímico de Capuava, fonte geradora de riqueza fiscal e potencialmente de emprego formal abundante, não consegue concretizar um projeto sequer para agregar mais valor às receitas públicas e ao Desenvolvimento Econômico? 

6. Para os presidentes das associações comerciais e industriais das sete cidades:  

Como vocês podem falar em algo como regionalidade, como qualquer coisa relativa às sete cidades, se não existe um plano sequer, um projeto sequer, que procure decifrar o setor de serviços e de comércio de maneira a acabar com a bagunça de guerra fiscal interna? 

7. Para os dirigentes dos  Ciesps (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo. 

Quando os senhores vão lutar pela regionalização e unicidade das representações de suas entidades no ABC Paulista, desgarrando-se em parte do comando da Capital? 

8. Para os sindicalistas da região: 

O que os senhores estão preparando para um confronto inadiável que vem em forma de futuro tenebroso com a massificação gradual de carros movidos a energia elétrica ou mesmo híbridos, com o uso de etanol, tendo-se em vista a previsão de que a tecnologia vai ser arrasadora às fábricas que dependem de combustíveis fósseis? 

9. Para o presidente do Clube dos Prefeitos: 

 “Quando o senhor vai tomar a iniciativa de reunir todos os titulares dos paços municipais e apresentar um planejamento estratégico regional que tenha como pontos centrais o setor industrial e o fortalecimento da livre-iniciativa? 

10. Para o prefeito de São Caetano, José Auricchio Júnior:  

Até quando São Caetano vai desprezar a sorte grande de resolver parte de seus problemas com a construção de um modelo econômico fortemente centrado na indústria da saúde, driblando a escassez de espaço físico e utilizando a fartura de população idosa, abundantemente em crescimento no País?  

Isto posto, e sem me embrenhar por caminhos mais detalhados sobre como se daria a operação de exposição democrática de lideranças da região para que a sociedade consumidora de informações tenha mais acesso aos fatos, reproduzo o texto de março de 2003.   

 

Democracia de araque,

eis o que a região pratica  

  DANIEL LIMA - 24/03/2003 

 

Estamos tão distantes da democracia da informação quanto os Estados Unidos e o Iraque da sensatez nesse confronto bélico no Oriente Médio.  

A comparação não é simples recurso metafórico. Retiro da guerra no Iraque a inspiração para reiterar o quanto o capital social está fragilizado no Grande ABC. Na manhã de sábado assisti pela GloboNews, diretamente de Doha, no Catar, a entrevista coletiva do general Tommy Franks, comandante das forças dos Estados Unidos, sabatinado por exército de jornalistas do mundo inteiro.  

Tommy Franks respondeu a todas as perguntas -- muitas das quais extremamente incômodas -- sem jamais perder a serenidade e, mais que isso, sem abusar da inteligência dos entrevistadores nas questões mais candentes, como táticas de guerra. Optou sempre o comandante pela franqueza da necessidade de não revelar detalhes que pudessem comprometer o planejamento, em vez de verbalizar evasivas desrespeitosas.  

REUNIÕES FECHADAS  

Enquanto em pleno teatro de operações de uma guerra estúpida o comandante da nação mais poderosa do mundo expunha-se em rede mundial de televisão a uma diversidade de profissionais de comunicação, no Grande ABC as reuniões do Consórcio de Prefeitos e da Agência de Desenvolvimento Econômico, só para exemplificar, excluem qualquer participação da mídia. Questionar os resultados, então nem pensar.  

Qualquer observação que se faça sobre determinadas atuações de agentes políticos, empresariais, sindicais e sociais, por mais ponderada que seja, é encarada como afronta. A unilateralidade é a marca registrada.  

Durante a trajetória do Fórum da Cidadania, este jornalista comeu o pão que o diabo amassou a partir do momento em que, com base em fatos, passou a alertar sobre os riscos que a entidade corria. O consenso do Fórum incluía o engajamento compulsório da mídia.  

DEMOCRACIA MALVADA  

O pensamento único aplicado durante regime ditatorial é menos nocivo porque tem o carimbo da desconfiança. Num regime supostamente democrático, ganha a etiquetagem de verdade. 

Vá lá que há questões que, como nos quartéis-generais, precisam ser mantidas em segredo. Tudo bem. Mas e a prestação de contas à comunidade? Quando nossas autoridades se dispuseram, em conjunto, a submeter-se à interlocução com jornalistas? Na Câmara Regional, então, nem se fale. Os encontros sempre se pautaram como algo parecido a um piquenique de engravatados onde sobram promessas e escasseiam realizações.  

Coletivas de imprensa para tratar de questões relevantes da região são miragens. Jamais se realizam. Quando, por exemplo, os sete prefeitos que comandam o Consórcio Intermunicipal vão marcar com antecedência um encontro com a mídia para relatar o desempenho da entidade e estarão preparados para indicações? E os dirigentes da Agência de Desenvolvimento Econômico? E os sete presidentes das associações comerciais? Os quatro dos Ciesps? E tantos outros? Quando, quando, quando? Ou se acham, todos eles, absolutamente intocáveis?  

UM IMPERADOR  

Ainda outro dia este jornalista, a editora-chefe Malu Marcoccia e a repórter-editora Vera Guazzelli, de LivreMercado, tiveram ao vivo e em cores a prova do quanto nossos dirigentes políticos estão despreparados para interlocução qualificada. A entrevista que fizemos com o prefeito Luiz Tortorello, para produzir a Reportagem de Capa de março de LM, teve momentos de tensão. 

Sobremodo no primeiro dos três módulos, em que o encontro versou sobre a decadência econômica do Município, o prefeito Tortorello comportou-se em vários momentos como quem estivesse diante de abelhudos contumazes. Onde já se viu -- deve ter-se indagado o prefeito, do alto de sua autoridade -- esse cara vir até mim e contrapor aos meus dados econômicos vazios informações fundamentadas? Só isso justificaria a indelicadeza e a agressividade do dirigente público.  

Gravações do encontro provam um destempero que não é exclusividade de Luiz Tortorello. Na verdade, a reação é generalizada entre quem se coloca no pedestal da glória efêmera do poder. E vale também para dirigentes empresariais e sindicais que, contaminados pelo mesmo vírus, adotam como regra não o confronto qualificado de informações, mas a via única de declarações geralmente enviesadas pelo corporativismo e interesses eleitorais.  

IPTU ESCONDIDO  

Recentemente, a Prefeitura de Santo André perdeu oportunidade de reunir a imprensa para esmiuçar a questão do IPTU tão controvertido e tão mal-entendido. Custaria chamar a mídia? Custaria reunir o secretário de Finanças, o prefeito e outros secretários eventualmente importantes na consolidação de informações sobre a Administração? Teria melhor maneira de acabar com os excessos que cercaram o movimento? É claro que não.  

Não foi por meio de uma entrevista coletiva que o prefeito Maurício Soares decidiu renunciar ao cargo? Talvez tenha faltado mais profundidade ao encontro, com a decisão sendo acompanhada por espécie de prestação de contas com direito a questionamentos, mas o básico foi feito.  

Por que o prefeito Luiz Tortorello não reúne seu staff econômico e chama a mídia para oferecer contraposições que visem, como pretendemos, a levar conhecimento aos interessados? Sim, porque até agora São Caetano não consegue responder à grande interrogação: qual vai ser o seu futuro econômico diante da decadência comprovada de indicadores produtivos?  

O comandante das forças norte-americanas no Iraque poderia ser requisitado, assim que a estupidez dessa guerra terminar, para dar um curso intensivo de relações com a mídia. A missão será menos desgastante para ele. E provavelmente estressante aos supostamente democratas regionais avessos a contraditórios. 



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