Imprensa

CARTA ABERTA AO DONO DO
DIÁRIO DO GRANDE ABC (4)

DANIEL LIMA - 18/07/2023

Um dos trágicos equívocos editoriais do Diário do Grande ABC sob o controle do empresário Ronan Maria Pinto, menos pronunciado no período anterior comandado pelos fundadores da publicação, é se considerar extensão do pensamento médio da sociedade regional. E supostamente atuar como se contasse com carta-branca de representatividade.  

Talvez só se justifique tamanha pretensão o lado negativo ignorado no enunciado: os sete municípios são tão desprovidos de enquadramento identitário de regionalidade sonhada que o rótulo de porta-voz retrate a própria publicação.  

Ao se atribuir a condição de “porta-voz da região”, o jornal, inadvertidamente, assume o ônus de passivo editorial que, por sua vez, é passivo social.  

Afinal, e insisto, a região não tem identidade, sufocada em meio a uma metrópole apressada e desumana. A região é um saco de gatos sociológico, por assim dizer.  

AVERSÃO CRIATIVA  

O erro de adotar uma postura editorial com base em falsas premissas é tão grave que sempre me inspirou aversão criativa. Já disse muitas vezes e sempre repetirei que só existe uma forma de a região contar com um jornalismo encorpado, lúcido, prospectivo e reformista.  

Qual? Simplesmente não se deixar levar pelo piloto-automático de terceiros que a bajulam,  mas fogem de suas fronteiras. 

Quem pretensamente entende que reproduz uma região com a incorporação de linha editorial está contratando um desastre em forma de vazio comunicacional.   

Afinal, qual é a cara do ABC Paulista? Para terceiros, que não vivem aqui e quando aportam aqui fazem salamaleques descomprometidos, seremos sempre um tesouro de mobilização social.  

Não somos nada disso. Somos um navio Costa Concórdia, que, sob o comando desastrado de Francesco Schettino,  em janeiro de 2012, chocou com um aglomerado de rochas e naufragou, causando a morte de 32 pessoas.  

A diferença é que temos muitos Schettinos na região. E quase três milhões de vítimas de retóricas insustentáveis. Afundamos vagarosa e insistentemente há quatro décadas.  

LINHAS IMAGINÁRIAS 

Duas máximas que o Diário do Grande ABC adotou dos anos 1990 para cá provam imprecisão em captar o ambiente regional, tornando-o aliado da linha editorial.  

O jornal não se dá conta do fato que se deu e ainda se dá:  está preso a uma linha imaginária de representatividade de um todo ou da maioria de um todo que de todo não tem nada.  

Somos a expressão da vacuidade social na estrutura de poderes seletivos instalados e explorados.  

Em suma, o que quero dizer e vou dizer na sequência de forma mais didática e enfática, é que o Diário do Grande ABC vive de sobreposição conflitiva e, mais que isso, exploratória de um fundo de poço editorial que só poderia mesmo dar no que deu, ou seja, numa distorção completa da operacionalidade da mídia como instrumento de transformações. Não há vida no jornalismo se o jornalismo não se propuser a ser reformista.  

VOZES INAUDÍVEIS  

O Diário do Grande ABC não é porta-voz da região no sentido de ser pelo simples fato de que a região não tem unicidade, convergência ou mesmo divergências de vozes produtivas. As vozes da região são prevalecentemente vozes fragmentadas, quase inaudíveis.  

Os que supostamente falam pela região são em larga escala abutres, impostores, espertalhões. Poucos têm alma e coração com compromissos que elevariam a capacidade de reorganização de uma base social dilacerada.  

O mais recente slogan adotado pelo Diário do Grande ABC, embora não de forma oficial, com direito a vinhetas e campanhas publicitárias, mas esparsamente no noticiário, coloca a publicação como “porta-voz do Grande ABC”.  

Foi graças a esse deslize monumental que, no mesmo dia, na mesma hora, inspirado pela bobagem, adotei como subtítulo-síntese de CapitalSocial a porção “Ombudsman do Grande ABC, e, mais recentemente, “Ombudsman do ABC Paulista”.  

CONTRAPONTO CRÍTICO  

Devo, portanto, ao Diário do Grande ABC, “porta-voz do Grande ABC”, o “Ombudsman do ABC Paulista”. Antes, CapitalSocial expunha sob a logomarca a frase-síntese “regionalismo sem partidarismo”. 

Ao longo dos anos, quer como LivreMercado, quer como CapitalSocial, sempre acrescentei à personalidade jurídico-editorial algo que traduzisse o espírito que conduzia as publicações sem olhar para o nada do outro lado da fita institucional de uma sociedade esparsa.  

Se não estiver enganado, ao lançar LivreMercado em março de 1990, a peça de conversão do que significava a publicação versava sobre “Leitura o mês inteiro”. 

Ora, por que adotei a frase que remetia ao tempo? Porque o tempo de 30 dias era o tempo que separava uma edição da outra. E o que isso tinha a ver com o cheiro da brilhantina? É que os primeiros anos da revista LivreMercado foram marcados por uma publicação de tamanho tabloide, impressa em papel especial, não papel-jornal.  

DESCARTA CULTURAL  

Sabia que se adotasse como impressão de cada edição o papel-jornal, de cultura descartável no dia seguinte, todo o precioso editorial da publicação, produzido para resistir à cultura do descarte, seria jogado no lixo.  

Ao longo dos anos substitui o mote de LivreMercado e de CapitalSocial, mas sem que as mexidas se descolassem dos princípios de longevidade do produto editorial. O produto editorial era pensado como atemporal.  

Tanto é verdade que o acervo que consta deste site é uma preciosidade para quem quer entender a realidade regional ao longo de décadas.  

Não preciso repetir que o verbete desindustrialização e assemelhados tiveram o pontapé inicial na revista LivreMercado. E isso nos custou muitos cruzados no queixo de triunfalistas que somente muitos anos depois começaram a admitir a realidade. Aliás, o próprio Diário do Grande ABC está nessa lista.  

TRÊS MOTES  

Salvo engano -- e acho que não estou enganado -- o Diário do Grande ABC adotou ao longo de 65 anos de história apenas três motes publicitários que remetiam ao estofo da publicação. O primeiro “Jornal da Família” ou algo assim, durou uma eternidade. Era mesmo o resumo do jornal que saiu da coragem de quatro desbravadores. 

Nos anos 1990 o Diário adotou novo slogan. Participei como ouvinte da apresentação do trabalho dirigido por uma consultoria publicitária da Capital. O Diário do Grande ABC sempre gostou de gente de fora. Complexo de Gata Borralheira sempre alimentou reverências incautas.  

O mote daquela campanha foi um tiro no pé e mais do que nunca contraditório em relação ao histórico do jornal. “Diário do Grande ABC, o braço direito da região”, foi de lascar. Um jornal de direita nas peças publicitárias, mas que, na prática editorial, do noticiário em si, flertava o tempo todo em defesa do sindicalismo. “Braço forte do Grande ABC” teria sido mais apropriado.  

VAZIO TEMÁTICO  

Os donos de jornais nem sempre entendem de jornais. Eles acham que o restrito espaço dedicado ao Editorial (que exprime os valores da publicação) valem mais que todas as páginas de cada edição, sempre abarrotadas de vieses e contradições.   

A propósito, também me inspirei no Diário do Grande ABC ao lançar a revista LivreMercado, dedicada dominantemente à Economia, mas não só à Economia. Havia na redação do Diário do Grande ABC azedume geral quando se tratava de escrever matérias sobre empresas.  

Eram as estigmatizadas “matérias 500”. Um jornal que crescera sob o signo da livre-iniciativa era estranhamente adepto de uma cultura repulsiva ao capital. Quando assumi a direção operacional da Redação do Diário do Grande ABC, em 1983, havia apenas um jornalista na Editoria de Economia. Quando saí, três anos depois, eram seis.  

EMBOCADURA FILOSÓFICA  

Agora o que temos informalmente, mas de forma insistente pululando nas páginas do Diário do Grande ABC,  é o tal de “porta-voz do Grande ABC”. O que pergunto é como o jornal pode ser porta-voz de uma sociedade desorganizada e servil? Ou, repito, será exatamente por isso?  

No fundo, o jornal pode ter mesmo razão. Uma sociedade servil e desorganizada talvez seja o melhor e mais conveniente retrato da linha editorial do Diário do Grande ABC desde muito tempo.  

O jornal perdeu a embocadura filosófica dos tempos de recuperação imposta por Alexandre Polesi e restaurada parcialmente durante 11 meses pela equipe de profissionais que comandei entre 2004 e 2005.  

De lá para cá degringolou de vez. O Diário do Grande ABC é uma biruta editorial de aeroporto. O aliado editorial de hoje pode ser o inimigo de amanhã.  

O predomínio do noticiário político varejista é indisfarçável. Adota-se conteúdo típico de cristaleira. Os bem-aventurados não podem sofrer qualquer tipo de crítica.  

CICLONE METROPOLITANO  

Quando adota  “porta-voz do Grande ABC”, o Diário do Grande ABC simplesmente abdica publicamente da própria identidade editorial. Melhor dizendo: da perspectiva de adotar uma identidade editorial.  

Nenhuma publicação com as características do Diário do Grande ABC – ou seja, diária e de papel – pode se submeter ao pensamento médio da sociedade quando se sabe, em primeiro lugar, que o conceito de porta-voz na região é difuso por natureza.  

Não temos identidades municipais sólidas e transformadoras, quanto mais identidade regional. E cada vez temos menos perspectivas de tê-las.  

A sociedade consumista de informações,  em volume e em ocupação econômica numa região metropolitana como a que vivemos, é cada vez mais volátil em apetrechos culturais.  

GATABORRALHEIRISMO  

A ausência de uma identidade bem definida e bem calibrada na região constrói um alçapão a todos que por ventura ou desventura resolverem tentar abocanhar uma suposta correlação de princípios e valores.  

Pior ainda: porta-voz pressupõe que o Diário do Grande ABC é exatamente o que a sociedade da região registra de inventário cultural -- e sabemos todos que não somos um exemplo a ser glorificado.   

Ao se autoproclamar “porta-voz do Grande ABC” o Diário do Grande ABC, inadvertidamente, assume que não conta com uma linha editorial capaz de se fazer entender, porque a sociedade regional difusa e gataborralheiresca não sabe o que fazer desde muito tempo.  

Desde sempre porque se deixou levar, entre outras bobagens, de que seria politicamente avançada com a eclosão do movimento sindical. Uma tremenda asneira. Confundiram sindicalismo corporativista como higidez social.  

RESISTENTES MUDOS  

Estamos num estágio tão avassalador de pindaíba sociológica, por assim dizer, que, por exemplo, autoridades públicas podem fazer o que bem entenderem, podem plantar bananeira em cima de túmulos, podem sair pelados nas praças, que nada mudará a rotina de indiferença da população agora entretida com as redes sociais de temáticas nacionais.  

Um ou outro que certamente será chamado de maluco esperneará, fará barulho, mas ninguém vai lhe dar bola. Essa é a sociedade servil e anestésica que temos. 

A direção do Diário do Grande ABC precisa providenciar a cassação do mote “porta-voz do Grande ABC” e jamais escrever, como se dá de vez em quando em editoriais, que somos uma sociedade civil organizada. Isso é balela. Somos sim uma sociedade servil desorganizada.  

Aqui se pode fazer tudo se você faz parte da turma do andaime, por exemplo. Quem é a turma do andaime? Os magnatas do mercado imobiliário, claro! Mas há outras turmas da mesma tipologia nociva. Enquanto isso, os resistentes vivem isolados ou em minigrupos. Aquietarem-se socialmente é o melhor remédio contra dores de cabeça.



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