Caro Ronan Maria Pinto, dono do Diário do Grande ABC desde 2004, quando me chamou para comandar a Redação do jornal, compromisso meritocrático para quem dirigia até então a melhor publicação regional do País, a revista de papel LivreMercado.
O que se segue é um material do qual você deve se lembrar perfeitamente. Tanto você quanto os então demais diretores e acionistas do Diário do Grande ABC. Vocês o aprovaram integralmente. Tanto que assumi o cargo.
O que reproduzo é apenas uma parcela diminuta do conjunto da obra com a qual adentrei a redação do jornal em julho de 2004, três dias depois de ver meu pai sepultado. Ele, meu pai, que completaria 100 anos agora em 23 de outubro, jamais se meteu em minha vida profissional, embora tenha sido decisivo à continuidade de uma jornada.
Ele, naquele domingo em que se foi, um domingo estranhamente sem futebol, me advertiu sobre a missão de assumir a direção do jornal no dia seguinte – no dia em que chorei sua morte e seu sepultamento. Meu velho pai, meu herói, minha inspiração, estava certo. Minha jornada no Diário do Grande ABC, de compromisso mútuo e público de cinco anos para as transformações necessárias, só durou 11 meses.
BREVIDADE GLORIOSA
Não posso lamentar a brevidade, porque a brevidade foi abundante em resultados. Vivi naquele período grandes momentos. O principal foi ter convivido com uma equipe de jornalistas comprometidos com o futuro do jornal, um futuro prometido e interrompido. Tanto que menos de 12 meses depois restaram poucos daquela equipe que encontrei ao assumir e praticamente não acrescentei nenhum reforço.
Um workshop de três horas e meia de duração, realizado dois dias antes de minha demissão, foi gravado em áudio e vídeo e serve de consagração profissional. Todos os editores participaram e se pronunciaram. O compromisso com o produto colocado todo dia na praça foi reafirmado com dignidade e paixão por todos. O que veio depois foi um desastre.
O caro Ronan Maria Pinto não precisa tentar explicar nem tergiversar. O trecho que se segue, retirado do Planejamento Estratégico Editorial que lhe entreguei em mãos, reunia quase 100 mil caracteres e desenhava o Diário do Grande ABC do futuro que jamais chegou. Pior que isso: o Diário do Grande ABC que examinei e explicitei naquele projeto conseguiu a proeza de rebaixar ainda mais a qualificação.
TONALIDADE SOMBRIA
Tudo que consta do que se segue ganhou, duas décadas depois, tonalidade sombria porque parece que o agravamento do quadro ruma ao incontrolável.
Ou seja: o Diário do Grande ABC que assumi em julho de 2004 no que chamaria de bagaço técnico-editorial, afundado numa institucionalidade de baixíssima capilaridade crítica, seguiu um roteiro de queda que parece não ter fim.
A impressão que tenho, que resvala na certeza que ainda vou ter, é que os dirigentes do Diário do Grande ABC tiveram um surto de loucura ao lerem o Planejamento Estratégico Editorial que organizei num fim de semana.
Somente a psiquiatria poderia encaminhar a um diagnóstico que me remetesse à desconsideração da desconfiança -- tudo aquilo que desenhei foi propositadamente invertido ou aprofundado como uma peça de teatro do absurdo. O Diário daquele 2004 que tanto critiquei, inclusive com o assentimento do caro Ronan Maria Pinto, virou algo muito pior.
Talvez a melhor síntese que posso destilar o que pretendia naquela temporada longínqua e no que acompanho hoje como assinante da publicação, à qual observo como ombudsman não autorizado (autorizado fui duas vezes ao longo da história), talvez a melhor síntese, repito, é que o Diário do Grande ABC, que se autointitula porta-voz da região (uma barbaridade de tiro no próprio pé) faz questão absoluta de tornar-se ao mesmo tempo refém e controlador de uma região em derrocadas persistentes.
Essa ambiguidade é catastrófica porque imobiliza a publicação e a remete a uma metáfora popularmente conhecida e que poderia ser compactada numa frase demolidora: o Diário do Grande ABC está imobilizado porque os mandachuvas da região o imobilizam ou os mandachuvas da região estão imobilizados porque o Diário do Grande ABC os imobiliza?
Agora vamos à reprodução fiel do capítulo do Planejamento Estratégico Editorial que deixei de herança (com muitos avanços) em maio de 2005, sob o título de “Relacionamento externo”.
RELACIONAMENTO EXTERNO
O relacionamento com público externo é uma equação que requer desprendimento. Nem sempre é possível detectar, mas geralmente é viável abortar inescapáveis problemas. Basta querer. Trata-se do distanciamento mínimo dos formuladores editoriais e dos responsáveis acionários pelo produto que vai às ruas e as fontes de pressão.
O apadrinhamento de pessoas e entidades é o desvio mais rápido para a acomodação editorial, seguida da desmoralização nem sempre impactante, mas sem dúvida suficientemente danosa.
Premiar agentes improdutivos com mistificações deliberadas ou acríticas destila indignação mesmo que silente no seio da comunidade que conhece mais de perto o oportunismo de atores que se aproximam da mídia apenas para levar vantagem.
RELACIONAMENTO EXTERNO
Quando esses sanguessugas se cristalizam no poder midiático, acabam por definir o padrão ético-editorial da publicação. Se os improdutivos tomam tanto espaço, como será possível aos eventuais produtivos apeá-los do poder sem correrem o risco de antagonizar-se com a mídia?
O Grande ABC vive momento especial demais para permitir a perpetuação dessa tradição arraigada no jornalismo nacional. É preciso dar vez ao reformismo sem, entretanto, cair no viés extremo de fabricar novos agentes.
Os relacionamentos institucionais do Diário do Grande ABC — ou seja, as relações da empresa com o público externo formado por administrações públicas, entidades econômicas, legisladores, lideranças sociais e culturais, gestores e produtores acadêmicos, entre tantos — não podem ser confundidos com a linha editorial.
RELACIONAMENTO EXTERNO
É verdade que uma coisa necessariamente não exclui a outra, mas também é fato que uma coisa pode contaminar a outra e destilar, como dissemos, o conceito de que mais importante do que fazer é fazer de conta que se faz, porque sempre haverá um veículo importante para sacralizar o pecado da omissão dissimulada e do despreparo escamoteado.
O jornal, como produto e como instituição, não pode, portanto, construir relações circunstanciais ou efetivas que afetem os insumos editoriais.
Dar oportunidade a todos para que participem de uma grande virada institucional do Grande ABC é ação prospectiva que tem o condão de zerar os déficits do presente e do passado.
RELACIONAMENTO EXTERNO
A vantagem de incrementar essa nova empreitada é que os erros acumulados deverão servir de lição. Somente um novo enquadramento editorial que dignifique quem tem garrafas para vender permitirá a reconstrução de relacionamentos entre as instituições mais importantes da região, provavelmente com o Diário do Grande ABC como catalisador dessas operações.
Nada, entretanto, que lembre o fracasso do Fórum da Cidadania, deliberadamente uma ação do jornal que, por não ter tido o controle estratégico recomendado, cometeu o desvio múltiplo de baixa representatividade, politiquismo partidário, afrouxamento institucional, entre outros problemas.
Tornar-se o centro nuclear das ações de restauração das forças econômicas e sociais da região não significa afirmar que o Diário do Grande ABC deve paternalizar as entidades.
RELACIONAMENTO EXTERNO
Pelo contrário: nosso regionalismo recomenda que as instituições se sintam livres de amarras que eventualmente as embalem incondicionalmente e as coloquem, portanto, a salvo de restrições e correções de rumo.
Tivesse o Fórum da Cidadania dispensado o hierarquismo do Diário do Grande ABC, cujos vários representantes tutelaram reuniões de forma muitas vezes explícita, outras vezes implícita, provavelmente não se teria desperdiçado o mecanismo até então mais interessante de reação organizada da comunidade.
Mesmo considerando-se que o Fórum da Cidadania se reduziu a apenas um ou dois representantes de cada entidade e que não demorou quase nada para a esfuziante usinagem inicial virar sucata.
RELACIONAMENTO EXTERNO
A osteoporose econômica do Grande ABC, que perdeu 39% do PIB industrial ao longo dos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso, é a prova cabal de como o Diário do Grande ABC fracassou editorialmente no suposto exercício de atuar como guardião da comunidade, como expressa o mote “100% Grande ABC”.
Pior que a perda econômica que só a Editora Livre Mercado detectou e martelou incessantemente é a omissão do jornal em, mesmo com uma afiliada denunciando os descasos econômicos locais, regionais, estadual e federal, manter linha editorial amorfa, defensiva.
RELACIONAMENTO EXTERNO
Ora, isso é a mais irritante prova de que o relacionamento que o Diário do Grande ABC mantinha — e ainda mantém — com a comunidade regional, sobretudo os tomadores de decisão, não valem um tostão furado.
Denunciamos à frente da Editora Livre Mercado, em sucessivas matérias, a letargia dos agentes econômicos, governamentais e sociais. Nada que repercutisse na consciência dos responsáveis editoriais do Diário do Grande ABC. Ou se trata de muita incompetência ou os interrelacionamentos beiraram o estapafúrdio, com o jornal se obrigando a omitir-se em assunto tão escandalosamente candente.
De qualquer forma, a crise econômica é mais localizadamente profunda no Grande ABC do que em qualquer outro território do País.
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Mostramos em análises impressas na revista e também nos três livros que escrevemos nos últimos dois anos as razões dessa diferença.
Fundamentalmente a resposta se prende à nossa matriz automobilística. O terremoto macroeconômico que desabou sobre nossas cabeças nos entregou de bandeja o retrato fiel de nossas instituições, todas forjadas no período de riqueza compulsória.
Não temos capacidade de reação individual ou coordenada porque as entidades políticas, econômicas, culturais e sociais ainda navegam nas águas passadas dos tempos de glória de investimentos em profusão nesta região. Suas estruturas estão corroídas.
Quando muito, essas organizações funcionam como escritórios de prestação de serviços aos associados. Nota zero, entretanto, como organizações preparadas para o jogo da interlocução produtiva com quem decide a sorte de cada um dos 2,4 milhões de habitantes da região.
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Aplaudimos aventureiros locais e visitantes que nos colocam na boca um torrão de ilusão e execramos os poucos que ousam botar a boca no trombone porque estão cansados de esperar por medidas corretivas. Aos primeiros, lantejoulas; aos segundos, tomatadas e batatadas.
É esse Grande ABC traumatizado pelas políticas econômicas que se seguiram à abertura comercial e inerte em suas representações econômicas, políticas, sociais e culturais que olham para o próprio umbigo, que exige uma nova arremetida editorial.
É preciso fazer acordar e vitaminar esse moribundo. E não será com novos lances de compadrios que veremos esse corpo quase inanimado ganhar musculatura de atleta depois de período de tratamento cuidadoso, meticuloso, monitorado pelo bom senso.
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Ou aplicamos uma nova fórmula de entendimento dos papéis que devem cumprir os agentes individuais e coletivos que compõem o tecido regional, ou estaremos adiando a autópsia de que certamente não haveremos de escapar diante do estouro da boiada da globalização.
O jornalismo politicamente correto praticado há tempos pelo Diário do Grande ABC — em larga escala assemelhado a outras publicações diárias — não pode reincidir na queda no buraco negro de confundir alhos de entidades de vigorosa representatividade com bugalhos de entidades representativas no sentido burocrático do termo.
Críticas que se façam a organizações sociais, econômicas e políticas do Grande ABC ainda são confundidas com retaliações pessoais. No nosso caso, até mesmo velhos amigos acabaram se afastando de nosso convívio porque imperou a responsabilidade social inerente do jornalismo.
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É muito mais cômodo o apadrinhamento dos amigos e dos conhecidos, mas essa fórmula se comprovou nefasta para a região. Quem perde tanta riqueza em poucos anos e se mostra incapaz de qualquer reação — pior do que isso, a maioria procurou esconder a realidade em cada esquina de desemprego e em cada fábrica abandonada — há muito já entregou a rapadura do compromisso com a seriedade e a dignidade.
Nossas entidades de classe econômica, política, social e cultural estão vegetando. Mas, com a proteção do jornal, sempre se sentiram, ou pretendiam fazer-se crer, no melhor dos mundos.
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