Imprensa

CARTA ABERTA AO DONO DO
DIÁRIO DO GRANDE ABC (7)

DANIEL LIMA - 11/08/2023

Procurei encontrar uma metáfora no mundo real para retratar a disfuncionalidade do Diário do Grande ABC. É claro que vou tratar do produto de papel e também do produto digital.  Essa disfuncionalidade, que também chamaria de simetria travessa (ou assimetria convexa) é um dos fatores que ajudam a explicar a situação em que se encontra o periódico, espécie de Rede Globo do passado e hoje envolto num emaranhado de opções midiáticas regionais, além de, como todos os jornais de papel, submergir dolorosamente à força das redes sociais.  

Vamos então à metáfora? Faz muitos anos, e botem anos nisso, num jogo do Santo André no Estádio Bruno Daniel, o público caiu na gargalhada coletiva quando um jogador contundido exigia atendimento dos maqueiros. Todo mundo sabe o que é maqueiro. É geralmente um homem forte que faz da maca ferramenta de trabalho. 

Eram tempos em que os maqueiros recolhiam o corpo plantado no gramado, conduzindo-o à beira de campo, para os primeiros socorros. Não havia como nestes dias a motorização de atendimento. Era no muque mesmo. 

MUITA TRAPALHADA  

Pois o que fez a torcida cair na farra é que os dois maqueiros se mostraram atrapalhados demais. Eram Recrutas Zero, por assim dizer.  

Ao invés de o da frente dar as costas ao de trás, empunhando cada um a parte que lhes competiam das extremidades do equipamento, eles se deram as costas mutuamente e se lançaram à empreitada de engatar uma primeira. E engataram, em direções opostas.   

O primeiro tropeçou ante o impulso reverso do segundo. O segundo caiu ante o impulso reverso do primeiro. Ambos desabaram.  O jogador contundido não escapou da tragédia delirante e, claro, também sofreu as consequências da barbeiragem, lançado que foi ao gramado. 

No caso do Diário do Grande ABC e especificamente na cronologia de aplicação do que seria o reforço do digital diante da lenta e inexorável queda da versão de papel, por razões diversas e mais fortemente por conta da tecnologia em forma de Internet, o que tivemos foram duas alternativas complementares da fragilização permanente.  

No caso, o jogador contundido é a sociedade que se viu privada de uma publicação de conteúdo mais apropriado à gravidade econômica e social que, neste século, mais que nas duas décadas do anterior, se comprovou crudelíssima.  

SETOR COMPLEXO  

Acho que a imagem que desfilei para tentar simplificar o esquartejamento do Diário do Grande ABC como jornal de papel e a frustração do Diário do Grande ABC como jornal digital não é despropositada.  

Alguns poderão até sugerir que se trata de exagero. Bobagem. É uma realidade que outros, menos condescendentes, ou mais exigentes,  dizem inclusive tratar-se de algo mais desalentador. 

A falta de sincronismo produtivo entre o inexorável esvaziamento do produto de papel (uma realidade em todo o mundo) e a sedimentação do produto digital (também uma realidade internacional) agiu como bombas de efeito prolongado na estrutura do Diário do Grande ABC.  

Muitas outras publicações mundo afora, de caráter igualmente regional, passaram por semelhantes consequências. No caso do Diário do Grande ABC os danos foram maiores porque o esvaziamento econômico da região acelerou os passos em direção à catástrofe. 

Pode parecer, mas está longe disso avaliar como contradição que, mesmo diante de situação específica tão pronunciadamente hostil em relação a outros jornais regionais mundo afora, o Diário do Grande ABC teria muito mais possibilidade de resistir à dupla hecatombe, a tecnológica e a econômica.   

COMPRA DE AÇÕES  

Quer saber? Ora, uma publicação com as características do Diário do Grande ABC não poderia jamais traçar um destino tão abruptamente debilitado. Afinal, o Diário do Grande ABC está numa região de três milhões de habitantes QUE,  mesmo com tudo o que sofreu em forma de perdas econômicas que aniquilaram a mobilidade social, teria plenas condições de oferecer determinado grau de respaldo para que a publicação fizesse acoplagem mais segura, perdendo naturalmente parte do que fora construído, mas não perdendo tanto do que fora construído.  

Parece pouco admissível que uma especificidade da história do Diário do Grande ABC,  quando interpenetrada no duplo confronto que o levou uma quase nocaute,  não tenha peso superlativo. Trata-se da troca de ações. Saíram nos anos 1990 e começo dos anos 2000 os criadores da publicação, em fins dos anos 1950, e entrou o empresário de transporte Ronan Maria Pinto. 

A compra das ações se deu entre outros motivos porque os fundadores do Diário do Grande ABC já não se entendiam e também porque as dívidas acumuladas ao longo dos anos sufocavam a capacidade de reação exatamente na década dos anos 1990 que coincidia com sinais já inquietantes da queda do PIB da região. O Diário do Grande ABC vivia uma crise complicada tanto dentro de campo, dos acionistas, quando fora, do ecossistema econômico e social.  

CONTEÚDO, CONTEÚDO 

Ronan Maria Pinto assumiu o Diário do Grande ABC em 2004 e nessas duas décadas especializou-se em acelerar o rebaixamento de conteúdo da versão de papel e praticamente esquecer o mundo tecnológico de bolso.  

Acordou agora, com a contratação de um profissional da área. Não se sabe se o especialista tem visão apenas tecnicista ou também envereda pelo mundo editorial propriamente dito. E isso é elementar à compreensão mesmo que especulativa do que vem no futuro próximo. O Diário do Grande ABC conhecido de todos não é uma empresa de tecnologia, mas de comunicação. 

É tão escandalosamente evidente o que se espera do Diário do Grande ABC que o enunciado parecerá provocação ou redundância. O jornal de papel será cada vez menos importante e relevante como fonte de recursos financeiros. A versão digital de um jornal de papel robusto em informação é a chama que faria o Diário do Grande ABC recuperar sobretudo os leitores mais qualificados intelectualmente.   

TRANSPOSIÇÃO DECISIVA  

O grande desafio do jornal é buscar a adaptação dos dois modelos cada vez mais siameses do ponto de vista editorial e mercadológico, tornando-os retroalimentadores com ganhos sistêmicos.  

Dar amparo a essa pretensão é complicado porque o jornal de papel precisa e deve ser a fonte de inspiração e de materialização do produto digital.  

Um jornal de papel sem desdobramento para alcançar e multiplicar as páginas na versão digital não encontrará combustão necessária para dar o pontapé inicial a uma combinação restauradora.  

Do ponto de vista de produtividade que esse projeto exigiria como fonte de crescimento, não resta dúvida que o momento é crítico. Essa tarefa deveria ter sido iniciada há pelo menos 15 anos, quando o custo operacional da Redação, com muito mais profissionais, seria diluído gradativamente com iniciativas digitais em vários espectros.  

Ou seja: a transposição da perda do papel para o digital como produto a ser consumido representa uma catástrofe em termos práticos. O buraco que se vê hoje é muito profundo entre as duas versões e da pior forma possível, porque a primeira, matriz da segunda, é uma calamidade. Preencher esse espaço tão vazio quanto deficitário exigirá muitos mais recursos financeiros. 

MAIS QUE TECNOLOGIA  

Tornar o Diário do Grande ABC atual mais efetivo (mas nem por isso eficiente)  nas mídias digitais, ocupando muito mais espaços do que se observa, é aparentemente algo simples. Basta ir a campo e explorar todas as vertentes disponíveis. Qualquer publicação de papel e também digital só precisa de um especialista para tanto. 

Mas isso é muito pouco. Que adianta levar às mais diferentes plataformas digitais um Diário do Grande ABC de papel que, com perdão do trocadilho, não cumpre seu papel?  

E o Diário do Grande ABC não cumpre seu papel de publicação com compromisso reformista entre outras razões porque apura cada vez mais o foco como mero propagador de idiossincrasias políticas. Se não houver planejamento editorial que estabeleça novas diretrizes conceituais, tudo será desperdiçado. Estará jogando dinheiro pelas janelas envidraçadas.  

Não vou entrar em detalhes sobre eventuais sugestões que poderia expor no sentido de colaborar com a publicação. Durante minha passagem como Diretor de Redação, entre 2004 e 2005, deixei um Plano Estratégico Editorial detalhadíssimo sobre a fórmula ideal para, dadas as circunstâncias e contextos da região, adotarem-se medidas reparadoras do passivo de qualidade do produto já preocupante.  

PRODUTOS DIFERENTES  

É verdade que naqueles 11 meses à frente da Redação do Diário do Grande ABC não fiz nenhuma abordagem sobre os efeitos da Internet na mídia de papel. Ainda não havia no horizonte nada que indicasse a metamorfose no mundo das comunicações.  

Mas como o projeto contava com um marco temporal de cinco anos, não haveria dúvida de que contemplaria medidas que se adaptariam ao novo mundo. Ou seja: a percepção de que haveria um momento para agir em busca de travessia produtiva entre o papel e o digital afloraria. Algo que o Diário do Grande ABC só se deu conta agora sem, entretanto, destilar elementos que possam ser mensurados de imediato.  

Talvez a maior dificuldade do empresário Ronan Maria Pinto entender do que se trata o produto chamado Diário do Grande ABC seja o que chamaria de Síndrome do Transporte. O que isso significa? Que por ser empreender de transporte coletivo, um mundo completamente diferente do jornalismo, Ronan Maria Pinto não tenha a compreensão exata, ou mesmo razoavelmente suscetível, de que que produzir informação é outra espécie de empreendedorismo, sobre o qual a cobrança é infinitamente maior e muito mais transparente, quando não resplandecente. Um mundo sobrerrodas não é o mesmo mundo sobre-cabeças.   

O Diário do Grande ABC órfão no papel e órfão no digital não é um modelo aleatório no mundo jornalístico. É um padrão de conduta de empresários que atuam no setor sem o devido conhecimento e que por não terem o devido conhecimento acabam por simplificar a tarefa de conquistar a confiança e a credibilidade dos leitores.  

QUESTÃO ELEMENTAR  

Por mais que exista uma maioria de leitores que não enxergam obviedades ardilosas que o jornalismo de papel e o jornalismo digital perpetram diariamente, há camadas sobrepostas de gente que não se deixa levar no bico Gente que, agora no mundo digital, massifica desconfianças, desacertos, manobras e tudo o mais que colocam o tal jornalismo profissional no banco dos réus do ceticismo, quando não no xilindró do desinteresse por conta de abusos. Jornalismo profissional que busca o anteparo da santidade soa arrogante demais. Até porque, e há múltiplos casos no mundo inteiro a delatar as inconformidades voluntárias e programadas.  

Considerando-se, por fim, que o Diário do Grande ABC destes tempos tem uma carga pouco expressiva de materialidade em papel, seria otimismo demais, quando não estultice, acreditar que logo ali na esquina da esperança consiga compartilhar a carga de responsabilidade social com o abastecimento da versão digital.  

Nesse ponto, também recorro ao passado para tentar esquadrinhar a realidade que nos assusta a todos. O ministro do Planejamento do Regime Militar, Hélio Beltrão,  ganhou notoriedade e manchetes dos jornais de papel à época (a mídia digital não frequentava o sonho de ninguém) quando, disposto a desburocratizar a máquina pública com o uso da informatização, não vendeu ilusões. Tanto que ao responder enfaticamente aos jornalistas sobre uma imediata organização da Previdência Social, respondeu com clareza: como poderia informatizar a bagunça? 

O Diário do Grande ABC não pode imaginar e muito menos crer , que bastaria a contratação sempre bem-vinda de um profissional do riscado tecnológico para resolver um emaranhado de equívocos, desafios e obstáculos simplesmente com a engenharia disponível nas plataformas digitais. A Inteligência Digital mesmo sob o comando da Inteligência Humana ainda não faz milagres.  



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