Sociedade

Matadores de Santo André roubam
a cena durante a Copa do Mundo

DANIEL LIMA - 12/07/2010

Há vários pontos a unir o repórter-comediante Danilo Gentili, o ex-policial Marcos dos Santos e o centroavante Cacau: eles nasceram em Santo André, terra de Celso Daniel, gestor público que, pelas circunstâncias da morte, mais que o próprio legado administrativo e intelectual, deixou sentimento de viuvez na cidade, quando não na região. O berço geográfico de Danilo, Marcos e Cacau não teria nada extraordinário, não fossem outras coincidências.


Marcos, Danilo e Cacau ocuparam sobrepostamente a mídia em vários momentos durante a Copa do Mundo. Viraram celebridades. Tiveram conhecidos, cada um a seu modo, a alma de matadores e o berço de procedência.


Danilo Gentili é um Matador de Reputação, tipologia anárquica, circunstancial, movida pelo deboche criativo do programa CQC. Apanhou de guardas municipais em São Bernardo e, em seguida, foi ameaçado por petistas que acompanhavam Dilma Roussef em Santo André. Os casos repercutiram intensamente. O CQC chegou a superar 10 pontos de audiência. Muito acima da média histórica de um programa que disputa as sobra da Globo.


Cacau, descoberto em pleno jogo da Alemanha, reserva que virou titular da equipe que chegou em terceiro lugar, é um Matador dos Gramados, como todo centroavante de verdade. Fez um gol na África do Sul. Não se entende como chegou anônimo à Copa. Algo impensável num mundo dominado pela tecnologia da informação. Onde estava o jornalismo verde-amarelo?


Marcos dos Santos é o Matador de Aluguel que executou a namorada do goleiro Bruno com requintes de crueldade, atirando pedaços do corpo da ex-modelo a cães famintos.


O impacto provocado por essas três celebridades não se joga no lixo quando se depara com conservadores do Grande ABC com vocação incontida ao xenofobismo municipalista. Xenofobismo municipalista é essa coisa burra de hostilizar quem não é nascido numa das sete cidades. Para eles, fazem parte da cultura tanto a internalização compulsória de valores e dissabores de gente da terra como o desdém aos intrusos.


No caso especifico de Santo André a situação é muito mais delicada. O vazio causado com a morte de Celso Daniel continua intocável, longe de cicatrização. Até porque não apareceu ninguém com aquele tamanho todo de competência e compromisso regional para suavizar o sofrimento que a saudade demora a apagar. A morte brutal canonizou o então prefeito acima de preferências partidárias. Entretanto, fossem Santo André e o Grande ABC menos medíocres, a memória de Celso Daniel saltaria das páginas policiais e viraria símbolo vivo de desafios à regionalidade.


Outro ponto que eleva a decibéis ensurdecedores a sensibilidade de Santo André (e do Grande ABC como um todo) em busca de compensações é o que batizei de Complexo de Gata Borralheira.


Sofremos com os apertos desse nó górdio sociológico de suburbanidade em relação à poderosa Capital. Somos reféns de armadilhas que nós mesmos construímos. Estamos sujeitíssimos a comprar gato de malfeitores por lebre de salvadores da pátria. E também cometemos o desatino inverso, de tratar lebre de gente séria por gato de oportunistas. Desconfiamos de quem poderia acrescentar elementos de civilidade, cidadania e comprometimento social. Endeusamos contraventores sociais.


Os matadores Danilo Gentili, Marcos dos Santos e Cacau nasceram na periferia de Santo André. Têm em comum mudança a outras paragens. Danilo e Cacau foram impulsionados pela força do talento a praças mais promissoras. Marcos dos Santos deixou Santo André em circunstâncias ainda não apuradas. Não é difícil deduzir as razões, a julgar pelo que andou fazendo nos últimos anos, culminando com a execução de Eliza Samudio.


Cacau, matador dos gramados, foi para a Europa, apareceu de repente na televisão festejado como brasileiro de Santo André. A família reside em Mogi das Cruzes. Não há quem more em Santo André que não se sentiu nas alturas vendo aquele negro com a camisa da então uma das favoritas ao titulo mundial. “Cacau, brasileiro nascido em Santo André, no ABC Paulista”, exaltaram surpresos e patrióticos os narradores na televisão. Os xenofobistas municipais entraram em transe.


Danilo Gentili, o matador de reputações, é talentoso na arte de zombar com sarcasmo, na frieza da dissimulação de quem assimila pressões sem se alterar e na doce vingança de quem sofreu na pele o peso da exclusão social, mudou-se para a Capital. Ontem mesmo o Estadão reservou uma página inteira para contar sua saga pessoal. Uma matéria bem feita, madura, que evitou a pieguice e, mais que isso, deixou impresso um perfil dualístico, de herói e vilão, de inteligência e de irreverência.


Marcos dos Santos, matador de aluguel, embrenhou-se na periferia da Grande Belo Horizonte. Pelas circunstâncias da morte da ex-namorada do goleiro Bruno, do Flamengo, não encontrou qualquer problema de adaptação. A periferia da Grande São Paulo tem muito em comum com a periferia da capital mineira. As periferias metropolitanas brasileiras têm a mesma tomografia social. A vida de matador de aluguel é semelhante em qualquer desses buracos quentes. Matéria-prima não falta. Tanto na demanda de vítimas quanto na oferta de mão-de-obra qualificada.


Matadores de aluguel estão bem mais disponíveis no mercado do que centroavantes bons de bola e repórteres atrevidos. Matadores de aluguel trabalham com tabela de preço a tiracolo. Outro dia mesmo, em plena rua do Clube Atlético Aramaçan, em Santo André, executaram um policial. Foi apenas mais um da quadrilha organizada, formada por ex-policiais.


Preferiria que Santo André ou qualquer outro Município do Grande ABC virasse manchete nacional apenas em situações favoráveis. Que fosse um mundo apenas de Cacau ou de Danilo Gentili. Agora, quando se tem um Marcos dos Santos na parada, rivalizando-se na mídia com Cacau e Danilo, não há quem não sinta uma dor no coração municipalista ou regionalista.


É por situações como essas que temo os xenofobistas municipais. Eles, por terem nascido em Santo André, São Caetano, São Bernardo, Mauá, Diadema, Ribeirão Pires ou Rio Grande da Serra, sentem-se maiores e melhores que os forasteiros que aqui aportaram e aprenderam a amar o Grande ABC como um todo, não fracionado como os xenofobistas municipais. Isso mesmo: eles são tão preconceituosos que discriminam inclusive quem nasceu no Grande ABC. É preciso que sejam mesmo filhos da terra. São mais empedernidos ainda quando seus ancestrais também carregam o DNA da localidade de origem. Quanto mais quatrocentões, mais xenofobias manifestam.


Uma das raízes mais escandalosamente frondosas do fracasso da regionalidade do Grande ABC está na estupidez do xenofobismo que demarca a conceituação de quem declara seu suposto território invadido por estranhos ao ninho.


A leitura sociológica de que as virtudes de competência, bom-caratismo, sociabilidade, responsabilidade social e tantos atributos de uma sociedade madura estão na consagração do berço municipalista é tão equivocada quanto o contrário, ou seja, que egressos de outros endereços supostamente mais lustrosos são detentores de todos os atestados reservados pelos xenofobistas. É o Complexo de Gata Borralheira no estágio mais alienante que, paradoxalmente, é incentivado pelos tradicionalistas. Eles preferem os invasores sem qualquer identificação com os municípios vizinhos, por melhores que sejam os predicados dos representantes locais. No fundo, no fundo, temem que os invasores locais os desmascarem.


Privilégios a profissionais com atuação na Capital cinderelesca são tão comuns em corporações do Grande ABC e também no ambiente público quanto o protecionismo aos filhos da terra. Uma conjunção espúria, contraditória e geralmente desastrosa, porque deslumbrantemente acrítica.


Danilo Gentili, Cacau e Marcos dos Santos retratam mais que o berço geográfico coincidentemente andreense. Eles são uma porção vivíssima do comportamento humano que neurocientistas tentam explicar e fundamentalistas religiosos entregam a Deus. Tê-los num mesmo período nos televisores e manchetes de jornais impressos e virtuais foi mesmo apenas sortilégio. São matadores que não moram nem atuam no Grande ABC. Cumprem rigorosamente o destino divino, genético, ou genético-ambiental que lhes foi reservado.


Nossos problemas são os matadores espalhados por instituições econômicas, sociais, políticas e acadêmicas, cujo poder de influência e transformação é olimpicamente omitido. Isso mesmo, temos exércitos de outro tipo de matadores. São matadores da cidadania permanentemente distanciados dos preceitos de capital social. Os xenofobistas estão entre eles.


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