Economia

Milton Bigucci confessa: quer a
farra do boi no mercado imobiliário

DANIEL LIMA - 04/07/2011

Um artigo do empresário Milton Bigucci publicado no final de semana no jornal impresso ABCD Maior confirma o tamanho da insensibilidade e do despreparo do eterno dirigente da Acigabc (Associação dos Construtores, Imobiliárias e Administradoras do Grande ABC). Mostra também que o diretor-presidente da MBigucci, uma das maiores empresas da região e por isso mesmo alimentadora de contas publicitárias que calam boa parte da Imprensa, comete verdadeiro haraquiri toda vez que adota o marketing de valorização da marca pessoal sugerido por assessores.


Não é fácil traduzir o texto assinado por Milton Bigucci. Falta-lhe como pretenso articulista o que parece lhe sobrar como homem de negócios: capacidade de convencimento. No mundo do dinheiro a lábia funciona muito mais que a inteligência e o preparo intelectual. Nada contra, pelo contrário, porque saber ganhar dinheiro é uma arte. O problema é quando mercadores sobrepõem prepotência ao individualismo.


Milton Bigucci não escreveu nada sobre o escândalo do Condomínio Barão de Mauá, que atira milhares de famílias à própria sorte.


Tampouco sobre o Residencial Ventura, que a Cyrela e os De Nadai impuseram goela abaixo da legalidade no Bairro Jardim, em Santo André.


Nem pesar que tenha escrito sobre a emaranhadíssima Cidade Pirelli.


Esqueçam que se tenha pronunciado para valer sobre adolescentes que viraram placas de publicidade de empreendimentos imobiliários.


Ou que preparou manifesto de alerta à sociedade quanto aos infindáveis terrenos contaminados, de plantas industriais desativadas, novos e futuros endereços de prédios de apartamentos.


Milton Bigucci, como se sabe, não se entrega a essas veleidades sociais.


Milton Bigucci discorreu sobre o que lhe interessa, apenas sobre o que lhe interessa. E o lhe interessa é o mercado imobiliário no sentido mais estrito da expressão. No sentido de dinheiro, muito dinheiro.


Para facilitar o entendimento e quem sabe provocar a ira de leitores mais atentos, vou reproduzir escalonadamente todos os trechos do artigo que ele assina no ABCD Maior, introduzindo respectivos comentários.



  •  Ouço muita gente reclamar que o trânsito está caótico por causa dos novos prédios construídos. É importante entrarmos na questão com mais razão e profundidade, e menos emoção. Nas maiores cidades do mundo o coeficiente de utilização dos terrenos é bem diferente dos números brasileiros. Coeficiente de utilização é o número de metros quadrados que se pode construir vezes o número de metros quadrados do terreno. Exemplo: em um terreno de mil metros quadrados pode-se construir quatro vezes a área, ou seja, quatro mil metros quadrados, equivalente a “x” apartamentos. Enquanto no Brasil o coeficiente chega a quatro vezes, em algumas cidades do mundo os multiplicadores são bem maiores. Em Xangai, são 17 vezes a área do terreno; em Pequim, de 15 a 20 vezes e no Japão, 25 vezes.

Traduzindo o que escreveu Milton Bigucci: os limites aplicados pelas administrações públicas são um atentado à liberdade de empreender no setor imobiliário; portanto, uma agressão que precisa ser reparada.


O incrível é que Milton Bigucci simplesmente omite todas as diferenças, que não são poucas, que separam a estrutura viária e de transportes públicos dos principais centros urbanos do Brasil, e dos locais apontados no texto. Na interpretação superficial de Milton Bigucci, o que temos em São Paulo e nos municípios do Grande ABC, por exemplo, não é nada em termos de caos viário, porque, seguindo a lógica de quem só pensa em dindin, poderíamos tranquilamente contar com pelo menos quatro vezes mais potencial de construção.


No caso do endereço que ocupo, em vez de 20 pavimentos com pouco mais de 300 salas comerciais, teríamos cerca de 80 andares e cerca de 1,2 mil salas. Milton Bigucci é mesmo um gênio da racionalidade financeira. E um estúpido da funcionalidade social.


Milton Bigucci desconsidera não só as peculiaridades dos mercados imobiliários apontados no texto, mas também, ou principalmente, descontextualiza a infra-estrutura urbana. Continuando com o artigo de Milton Bigucci:



  •  Em São Paulo ou no ABCD, as pessoas moram normalmente na periferia e trabalham no Centro ou nos bairros. O deslocamento diário, além do estresse, causa um ônus maior. A verticalização das regiões centrais é fundamental para permitir que mais pessoas morem onde haja infraestrutura. Em São Bernardo há um excelente exemplo. A Prefeitura está executando um rebaixamento com uma passagem de nível entre o corredor ABD e a Avenida Senador Vergueiro para permitir que mais pessoas morem onde haja infraestrutura. Medidas como permeabilização do solo, uso de águas pluviais, sustentabilidade, rodízios, são necessárias para enfrentar o adensamento que tem de ser visto não como mal, mas como solução. Se restringirmos as habitações, mais caras elas ficarão e quem pagará a conta será principalmente a classe média. Temos de planejar cidades para o presente e o futuro, não com soluções temporárias ou provisórias. A construção civil dá emprego para milhares de pessoas, sem considerar os produtores de móveis, eletrodomésticos, material de cama e mesa etc.

Perceberam os leitores que não se deve subestimar o grau de oportunismo corporativo de Milton Bigucci? Apenas esse trecho que acabamos de reproduzir do artigo assinado por ele seria suficiente para que urbanistas e ambientalistas providenciassem alguma medida mais drástica, caso, é claro, vivêssemos não em um País com algum grau de democracia, mas numa ditadura típica da entidade que o dirigente preside há duas décadas.


Defender a verticalização como solução urbana, utilizando-se como exemplos tanto a insustentável Capital como as áreas mais centrais do Grande ABC, todas devidamente especuladas por uma combinação de agentes públicos desalmados e mercadores imobiliários replicantes de Milton Bigucci, seria um atestado de insanidade social.


O que se constata entre os especialistas em qualidade de vida e que provavelmente não interessa às ambições de Milton Bigucci e de empresários assemelhados é que as áreas centrais da Capital e também dos municípios mais populosos das regiões metropolitanas devem ser ocupadas por moradores de periferias mais diantes ou mesmo de bairros mais próximos. Que tipo de ocupação? De milhares de moradias, principalmente apartamentos, fechados à espera de inquilinos e de compradores. Não se trata, portanto, de construir amalucadamente novas torres residenciais. Só na cidade de São Paulo, são 400 mil imóveis desocupados, a maioria dos quais no Centro Expandido. Proporcionalmente, a situação no Grande ABC é a mesma. A ociosidade ocupacional em áreas bem dotadas de infraestrutura material é um temário que mercadores como Milton Bigucci jamais colocarão na pauta de soluções para o déficit de moradias no País. Desafio-o a apresentar um artigo sequer, unzinho, que me desminta.


Continuemos com Milton Bigucci:



  •  Atualmente em algumas cidades estão sendo criadas a figura da outorga onerosa (sic). O que é? A Prefeitura retira o direito de construir quatro vezes a área do terreno, por exemplo, e na mesma lei dá o direito, desde que o comprador pague uma boa verba para um fundo, destinado a construir moradias populares ou infraestrutura. Parece piada, mas é assim que funciona. É assim em São Paulo, onde podia se construir até quatro vezes a área do terreno, agora sem outorga pode-se construir duas vezes, e em algumas zonas até três vezes com o pagamento da outorga. Em Santo André, o índice básico é 2,5.

Milton Bigucci erra quando afirma que “atualmente em algumas…”. Outorga onerosa é modalidade aplicada em áreas metropolitanas há pelo menos uma década e meia. O prefeito Celso Daniel a introduziu quando do projeto Eixo Tamanduatehy e, em seguida, no projeto Cidade Pirelli. A reurbanização de parte da Avenida Industrial, nas proximidades do Centro, decorreu de contrapartida à construção do agora chamado Grand Plaza Shopping, e também do complexo hoteleiro vizinho.


A crítica a Milton Bigucci não se prende apenas ao desconhecimento e à imprecisão temporal. Ao tratar com sarcasmo a manutenção do índice de construção por conta da outorga onerosa, o dirigente da Acigabc analisa a situação com a simplicidade dos ignorantes e o viés dos manipuladores.


Outorga onerosa corresponde à indução de responsabilidade social à atividade imobiliária que, todos sabem, tem exacerbação capitalista. Canalizar à infraestrutura material ou social valores financeiros correspondentes à flexibilização de uso e ocupação do solo é espécie de princípio de humanização de um setor que não pode ser visto sob olhares românticos. Goste-se ou não, mercado imobiliário, em regra, é uma das atividades mais assanhadas da sociedade capitalista. Um mercado cuja fiscalização, aliás, é negligenciada por instâncias do Estado (União, Estados e municípios), pelo Poder Judiciário e principalmente pela mídia domesticada. Milton Bigucci terá a contrapartida de artigos e posicionamentos em jornais e revistas locais enquanto seguir na relação de anunciantes ativos.


O restante do artigo de Milton Bigucci é pura perda de tempo, porque não tem nexo. Duvidam? Então procurem entender, o que ele pretendeu dizer com os seguintes parágrafos:



  •  Segundo dados do IBGE 2010 e do Denatran, de 2000 a 2010, a Região ganhou 194.413 habitantes a mais, enquanto aumentou 580.112 novos veículos. A população cresceu 8% (foi para 2.549.135) enquanto a frota de autos aumentou 75% (foi para 1.352.721). É um dado preocupante. As prefeituras locais devem cada vez mais investir em mobilidade urbana, remodelação e ampliação de suas vias, sincronização de semáforos, ciclovias, busca do monotrilho, melhoria do transporte coletivo, educação para o trânsito etc. Senhores prefeitos, vamos repensar grande. Não paralisem suas cidades, apenas readequem as leis. O emprego e o desenvolvimento não aceitam desaforo.

Duvido que os leitores tenham compreendido o fecho do texto de Milton Bigucci, pelo menos caso se coloque a sociedade como alvo de preocupações. Analisando com a cabeça endinheirada de Milton Bigucci, é possível concluir que ele deseja das administrações públicas investimentos para valer em infraestrutura física, que coloquem seus cofres a serviço da mobilidade urbana, embora se esqueça (vejam só que esquecimento!) das fontes de financiamento.


Mais ainda: que deixe os mercadores imobiliários colecionarem fortunas sem incomodá-los com freios sociais em forma de outorga onerosa. Em suma: Milton Bigucci quer todas as vantagens de investimentos públicos e nenhuma participação dos beneficiados. O Poder Público deve estar a serviço do mercado imobiliário. Como se já não bastasse o histórico de servilismo, que ajuda a explicar o inferno da qualidade de vida nos grandes centros urbanos. Decididamente, com lideranças como Milton Bigucci — abundante, aliás, no cenário regional e nacional — não se pode esperar muito desse País.


Os representantes do setor imobiliário que não comungam com o ideário de Milton Bigucci (e há dezenas deles em silêncio) bem que poderiam começar a se mexer para democraticamente, pela via eleitoral, retirá-lo da presidência eterna da Acigabc. Entre outras razões porque Milton Bigucci virou o fio como dirigente empresarial. O artigo que assinou no ABCD Maior é prova viva disso, como se não bastassem tantas outras ações e omissões.


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