Economia

Bigucci e Moura, irmãos siameses
de institucionalidade em frangalhos

DANIEL LIMA - 19/05/2011

O Muro de Berlim seguia intocável como símbolo de um socialismo que já ruía silenciosamente sob a desconfiança do mundo socialdemocrata. Fernando Collor de Mello era candidato inexpressivo a uma improvável Presidência da República que acabou por arrebatar no final daquele ano numa disputa agressiva em segundo turno com o então debutante Lula da Silva. O São Paulo nem imaginava conquistar o primeiro título mundial de clubes e o Corinthians ainda não comemorara o primeiro título de campeão brasileiro. Faz tempo, faz tempo tudo isso. Nada melhor que uma clarificada noção do passado para dimensionar o tamanho do disparate que Valter Moura e Milton Bigucci protagonizam no Grande ABC.


Eles são comandantes de entidades empresariais desde antes do começo dos anos 1990, quando José Sarney era presidente do País. Valter Moura e Milton Bigucci estão à frente das duas instituições até hoje. Soberanos, intocáveis, articuladores contra todos aqueles que ousam contestá-los. É assim, com uma deficiência crônica de direção empresarial, que tem em Valter Moura e Milton Bigucci símbolos mais proeminentes, que o Grande ABC segue à deriva em institucionalidade.


O preço da perpetuidade diretiva é alto para quem acreditou um dia que o Fórum da Cidadania, criado para confluir interesses da comunidade em torno do desempenho do Poder Público, alcançaria algum resultado para valer. Não à toa o Fórum da Cidadania sumiu do organograma de mobilização do Grande ABC sem praticamente deixar traumas entre os mais graduados na hierarquia de representação empresarial. Nem todos enxergaram o Fórum da Cidadania como inspiração e aliado, mas como controvertido concorrente na disputa por holofotes.


Afinal, o que se passa na Acisbec (Associação Comercial e Industrial de São Bernardo) e na Acigabc (Associação dos Construtores, Imobiliárias e Administradoras do Grande ABC) a ponto de tanto Valter Moura quanto Milton Bigucci tornarem-se soberanos?


Eles são irmãos siameses de um sistema de representação de baixa representatividade. Supostas lideranças que não economizam discursos propagadores de democracia, de contestação à ideia de um novo mandato presidencial na República Federativa do Brasil, por exemplo, mas que não abrem mão das prerrogativas de se reelegerem quantas vezes entenderem. Reeleições que nem de longe resvalam em critérios democráticos. A burocracia interna das entidades anestesia qualquer sentido de construtividade além dos próprios muros corporativos, de interesses restritos e localizados, contraditoriamente sufocados porque a mesma burocracia é imobilizadora.


O que Valter Moura e Milton Bigucci sintetizam é muito mais que o sentimento de posse das entidades. Os dois dirigentes são a face mais escancarada de um modelo de centralismo comum na maioria das entidades empresariais do Grande ABC. Sem pressões de associados, sem a menor restrição da maioria das mídias, bajulados nos escaninhos do Poder Público por onde trafegam e se fazem acreditar representativos de classe, Valter Moura e Milton Bigucci ajudam a enterrar os sonhos de desenvolvimento da sociedade do Grande ABC em direção a propostas de compromisso social.


Instados pelo site CapitalSocial em setembro do ano passado, Valter Moura e Milton Bigucci preferiram fugir às questões formuladas. Comunicados mais tarde sobre a importância de se posicionarem, mantiveram-se omissos. Não existe surpresa no comportamento da dupla de dirigentes que frequenta há duas décadas os endereços mais badalados do noticiário econômico da região. Eles sabem que não há respostas a questões que fujam das sessões lambe-lambes do jornalismo de resultados.


Dirigentes de duas das supostamente mais importantes instituições privadas do Grande ABC, eles são especialistas em malabarismos. Passam administradores públicos, entram administradores públicos, seguem confortavelmente como aliados de primeira hora. A especialidade de manter os pés em canoas diferentes não é para amadores. Movem-se ardilosamente entre as mais diferentes cores partidárias. Têm discursos de bastidores apropriados para situações diversas. Publicamente, procuram dar vez à moderação, ao ecumenismo ideológico, partidário e econômico. São especialistas em cenarizações. Invariavelmente desfraldam números e conceitos que induzem ao sucesso do Grande ABC. Mas, confrontando a realidade, as principais temáticas econômicas de São Bernardo são olimpicamente esquecidas.


Um exemplo lapidar do grau de equidistância dos dois dirigentes é o trecho sul do Rodoanel, inaugurado em abril do ano passado pelo então governador José Serra e que passa por quatro dos municípios da região — São Bernardo, Diadema, Santo André e Mauá. Por mais que possa causar incredulidade, nem a Associação Comercial e Industrial nem a associação do mercado imobiliário moveram um dedinho sequer de mobilização para colaborar com estudos igualmente inexistentes no âmbito regional a fim de que a obra não se tornasse apenas legado prevalecentemente de mobilidade veicular à economia do Grande ABC — com as restrições logísticas da tangencialidade somada à barafunda interna de uma região sem planejamento para enfrentar os desafios de um mundo sobrerrodas.


O centralismo decisório das duas entidades é a síntese da dispersão da classe de empreendedores. Não existe, segundo antigos associados que pretenderam aproximar-se da entidade, nenhum objetivo de renovação. Os cargos são distribuídos de acordo com a proximidade e os compromissos empresariais complementares dos dois presidentes. Nada que ofereça risco de areia na engrenagem é sequer cogitado. Quantidade de associados é um estorvo, porque poderia gerar complicações futuras. Teme-se claramente que apareça alguém sem mesuras diplomáticas e afronte o conservadorismo letárgico.


Nem se pense, portanto, que tanto Valter Moura quanto Milton Bigucci tenham sentimento de regionalidade no bom sentido do termo, no sentido contemporâneo de, do alto de cidadelas corporativas, propagarem propostas e cobranças de novos tempos.


Muito pelo contrário: quanto menos a roda de mudanças girar, melhor para seus intentos. A Associação Comercial e Industrial de São Bernardo é um latifúndio no qual Valter Moura cavalga com pose de capataz. A Associação dos Construtores, Imobiliárias e Administradoras do Grande ABC é um navio que tem à frente do timão um Milton Bigucci que só enxerga os amigos mais próximos e, principalmente, os interesses da MBigucci, a empresa que fundou e comanda com sucesso. O horizonte é problema dos outros.


Esperar críticas públicas a Valter Moura e Milton Bigucci é supor que a sociedade regional perdeu o medo de expor-se. Há insatisfação latente entre associados e não-associados das duas entidades, mas nada é liberado do off, da informação de bastidores. Temem-se retaliações.


Os questionamentos endereçados por CapitalSocial aos dois dirigentes romperam com o lugar-comum de tratamentos jornalísticos análogos. Eles foram de fato sabatinados sob o conceito de comprometimento com a sociedade regional, além das relações com o quadro associativo das respectivas entidades.


Seria mesmo demais sugerir que deixassem pedestais em que se instalaram para caminhar pelo terreno dos mortais. Valter Moura e Milton Bigucci fazem das respectivas entidades espécies de quintais de atividades empresariais privadas. Não há espaço a contraditórios produtivos, à oxigenação do ambiente empresarial.


É verdade que Valter Moura e Milton Bigucci personalizam um mal endêmico da estrutura institucional de entidades empresariais do País. Eles têm a quem replicar. Há muitos outros exemplos semelhantes. Mas eles se excedem até nisso, porque praticamente se perpetuaram no comando das organizações.


A gestão asfixiante de um mesmo grupo de empreendedores em outras instituições pelo menos busca fórmulas menos ostensivas de descaramento, revezando-se na presidência enquanto mantém intocáveis os arranjos institucionais sempre flácidos quando confrontados com a imperiosidade de avanços nas relações com as mais diferentes organizações sociais, econômicas e públicas.


Quem acreditar que o futuro do Grande ABC, muito mais que do Brasil como um todo, não tem qualquer relação com o perfil produtivo das entidades empresariais, assim como dos demais espectros, ignora a importância da chamada Terceira Via, forjada pela habilidade intelectual do guru de Tony Blair, ex-primeiro-ministro da Inglaterra.


Mesmo quem não tenha lido as obras de Anthony Giddens conta com as facilidades da Internet para avaliar a importância desse sociólogo na condução de debates a harmonizar as relações econômicas e sociais. A participação de entidades empresariais num contexto de renovação de costumes que atingem diretamente a sociedade é um dos pilares do chamado capital social. Valter Moura e Milton Bigucci não parecem preocupados com isso.


Se os sites das duas entidades servirem de análise à reação dos dirigentes ao questionamento de CapitalSocial, o comportamento de Valter Moura e Milton Bigucci ganhou caminhos semelhantes. O site da Associação Comercial continua o mesmo, de pobreza informativa regional franciscana, embora tenha sido incrementado com noticiário típico de endereços eletrônicos mantidos por empresas de comunicação. Já a Acigabc de Milton Bigucci passou por burilagem total. Contratou-se empresa especializada e dourou-se a pílula. Até a parca relação de associados ganhou espaço digital. Diferentemente da Acisbec, cujo acesso às empresas que seriam filiadas é vedado a terceiros.


Valter Moura deixou de responder a nada menos que 21 perguntas. Uma montanha de problemas. A primeira discorreu sobre a omissão do presidente da Acisbec na ocupação geográfica de São Bernardo por grandes empreendimentos da área comercial. Valter Moura também preferiu o silêncio sobre o paralelismo entre a longevidade diretiva e o regime militar no Brasil, coincidentemente em 21 anos.


Nada disse o dirigente quanto ao perfil da Acisbec, especializada em eventos temáticos mas escassa em colocar a mão na massa de mobilização da classe. Também foi solicitada resposta à falta de transparência da entidade, sugerindo-lhe o modelo adotado pela UFABC nestes termos: por que não relacionar todas as empresas associadas e seus respectivos sites ou e-mail do principal dirigente, como faz a UFABC em relação ao quadro de professores que consta do endereço eletrônico da instituição? O quadro de associados da Acisbec é segredo de Estado.


Também foram questionados os motivos de não disponibilizar no site dados relativos às atividades e situação econômica e financeira da Acisbec. O questionário abordou ainda o fato de que só recentemente Valter Moura conseguiu entregar aos associados o que chamou de Casa do Empresário, prometida para os três anos seguintes numa entrevista em 1998. A sede da Acisbec demorou 10 anos para ganhar formas concretas. Numa cultura patrimonialista, a obra é espécie de cala-boca aos frágeis opositores.


Qual a posição da Acisbec quanto ao amontoamento populacional na periferia de São Bernardo nas duas últimas décadas, quando o Bairro Montanhão, de 150 mil habitantes, tornou-se símbolo de despreparo gerencial do uso e ocupação do solo? Valter Moura não respondeu e também fez pouco-caso a uma promessa não cumprida: garantiu que descentralizaria as bases da entidade aos bairros.


A integração das associações comerciais e industriais do Grande ABC, falácia vendida desde que Valter Moura iniciou a jornada de décadas na Acisbec, também incomodou o dirigente. A possibilidade de anunciar publicamente que abriria mão da presidência e que promoveria completa renovação na Acisbec possivelmente foi encarada como insulto.


Nada também disse Valter Moura às frequentes aparições em colunas sociais, em contraponto à escassez em páginas econômicas com intervenções que reproduzam o quadro municipal e regional. Por fim, Valter Moura calou-se também sobre o fracasso da mobilização que prometera ao prefeito Luiz Marinho, logo no início do mandato do petista em 2009, quando o Executivo encontrava dificuldades para sensibilizar um Legislativo de oposição majoritária e rebelde. Valter Moura declarou que levaria comerciantes às sessões do Legislativo para pressionar os vereadores. Tudo não passou de bravata. Luiz Marinho só resolveu o impasse com estratégia do próprio Paço Municipal.


Embora tenha recebido em caixa postal quatro perguntas a menos que Valter Moura, Milton Bigucci empatou o jogo da obscuridade com igual desistência de praticar democracia de informação. Quem imaginou que saberia o que dizer quando se correlacionou longevidade de mandato na Associação dos Construtores e atuação dos militares entre 1964 e 1985 no País provavelmente acredita em duendes.


Milton Bigucci calou-se também diante da constatação de que a entidade que preside anuncia dados falhos, imprecisos, inconsistentes, entre outros motivos porque não reúne gama razoavelmente respeitável de dados. As acusações de ex-integrantes da entidade de que não atua democraticamente, explicação para a esqualidez do quadro associativo, também não mereceu contraponto.


Nem pensar postura diferente às queixas de empreendedores de pequeno e médio porte que colocam de forma crítica a atuação de Milton Bigucci nos escaninhos públicos, sempre atuando em favor da empresa familiar que dirige, a MBigucci.


Provavelmente Milton Bigucci abominou abordagens ambientais. A Acigabc jamais manifestou-se criticamente sobre irregularidades apontadas no Residencial Barão de Mauá e, igualmente, jamais fez qualquer movimento à apuração das denúncias de anormalidades no lançamento, venda e ocupação do Residencial Ventura, no Bairro Jardim, em Santo André.


Embora a Acigabc tenha reformulado o site logo após questionamentos de CapitalSocial, a proposta contida numa das perguntas segue ignorada: por que não coloca no endereço eletrônico da entidade todos os endereços de terrenos contaminados que constam do banco de dados da Cetesb? Mais: por que a entidade não dá o devido destaque a cuidados que os interessados em adquirir imóveis deveriam ter para não serem novas vítimas de empreendedores inescrupulosos?


Também foi perguntado a Milton Bigucci se a Acigabc já convidou algum representante da Cetesb para proferir palestra sobre questões ambientais. Milton Bigucci se omitiu ainda quanto às relações com o empresário Sérgio de Nadai, um dos responsáveis pelas irregularidades do Residencial Ventura.


Outro ponto jogado a escanteio por Milton Bigucci vincula-se à possibilidade de discorrer a estudantes sobre ética no mercado imobiliário do Grande ABC, ou se limitaria a falar de sua empresa que, conforme anúncios publicitários, se preocuparia com o meio ambiente. Questionou-se também se a Acigabc teria dados do estoque de terra para ocupação industrial no Grande ABC.


Por fim, perguntou-se a Milton Bigucci se ele não estaria prestando desserviço ao Grande ABC quando, em entrevistas, presta informações incorretas. Como no caso em que anunciou que o PIB (Produto Interno Bruto) do Grande ABC cresceu 40% em três anos, induzindo interessados em comprar e investir em imóveis a graves erros de avaliação.


Milton Bigucci e Valter Moura não estão por acaso há duas décadas no comando de entidades sem peso efetivo no Grande ABC, embora potencialmente contem com massa crítica para importantes ações corporativas, sociais e econômicas.


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