O Estadão rompeu o cerco protecionista que os mercadores imobiliários ergueram na Província do Grande ABC, sempre tendo Milton Bigucci a chefiar a orquestração, e publicou no Caderno de Imóveis de domingo que há micos espalhados por aqui. É claro que o jornalão paulistano não usou a expressão popular que já transpus para estas páginas digitais.
Mico imobiliário é algo que choca, embora deva ser utilizado sim porque o que temos nas praças da região é uma porção de empreendimentos de incorporadoras que aqui aportaram sem conhecimento algum. E sob a proteção da mídia. A contrapartida de anúncios publicitários é o silêncio absoluto, entreguista, desumano, quando não irresponsável. Imóvel não é um bem qualquer. É um compromisso financeiro para o resto da vida na maioria dos casos.
Está lá à página 5 do Caderno de Imóveis do Estadão a manchete “Sobram imóveis de 3 dormitórios no ABC”. A notícia retira de vez o véu de obscuridades mantidas pela Associação dos Construtores comandada por Milton Bigucci. O mesmo Bigucci que, vejam só que despudor, acaba de lançar um livro (como se soubesse escrever de verdade, escritor que jamais foi ou será, porque lhe falta talento) que trata de responsabilidade social. Bigucci escrevendo sobre esse temário é algo como Ronan Maria Pinto discorrer sobre Administração Esportiva, Marcos Valério sobre Marketing Político Sem Recursos Públicos, Carlos Zéfiro sobre A Castidade ao Alcance de Todos, José Serra sobre Como Irradiar Simpatia em Disputa Eleitoral, Pilatos sobre Como Decidir Para Valer com Personalidade, Sérgio de Nadai sobre Como Tornar-se Altruísta com Crianças Nas Escolas, entre outras sugestões.
Alguns trechos da matéria publicada pelo Estadão:
Dados do mercado imobiliário do Grande ABC mostram que a concentração de investimentos em empreendimentos com unidades de três dormitórios pode estar causando a saturação desses produtos, principalmente em Santo Bernardo do Campo e em São Caetano do Sul. Nessas duas cidades, foram lançados quase 40 empreendimentos com esse perfil, totalizando uma oferta de mais de 4 mil unidades desse tipo de imóvel, segundo levantamento da Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio (Embraesp). Já um estudo realizado pela Associação dos Construtores, Imobiliárias e Administradoras do Grande ABC (Acigabc) indica que, do total das 2.255 unidades desse tipo disponíveis em todas as cidades do Grande ABC, no primeiro semestre, apenas 33% foram comercializadas. Para a entidade, a situação deve-se à alta oferta desses imóveis.
Reparo necessário
Um reparo se faz necessário à matéria do Estadão: a Embraesp, empresa privada, tem muito mais credibilidade, independência e dados estatísticos confiáveis do que a Associação dos Construtores dirigida por Milton Bigucci. Para que os leitores não comprem gato de invencionices por lebre de cientificidade, os dados da Associação dos Construtores são frágeis, não correspondem à realidade do mercado e estão longe de merecer qualquer sinônimo que remeta a “estudos”, como escreveu a reportagem do Estadão.
Milton Bigucci faz daquela suposta entidade não mais que referencial de interesses corporativos e pessoais. Quem acreditar que a Associação dos Construtores pode ser levada a sério merece o título de Ingênuo do Ano. Tanto que há muito desafiamos Milton Bigucci a um debate público, em local que escolher, para apresentar os dados estatísticos daquela associação. É lógico que ele foge e fugirá sempre, porque não pretende ser pego em flagrante delito informativo, como se já não o tivesse sido.
Também se equivoca a matéria do Estadão quando restringe o mico imobiliário a São Bernardo e a São Caetano. A hecatombe é generalizada entre outros motivos mais sustentáveis porque a maioria dos incorporadores que aportou na região não conhece patavina da realidade local e imaginou que aqui é o Eldorado da classe média. Pura bobagem.
Nossa riqueza se esvai numa combinação tétrica, de rebaixamento da produção industrial e permanente penumbra do setor de serviços de valor agregado, concentrado na Capital. Aqui só temos quinquilharias econômicas. Não é por outra razão que grandes levas de profissionais qualificados da região vivem um cotidiano de exasperada mobilidade urbana, deslocando-se em grande parcela à vizinha Capital.
A reportagem do Estadão ouviu alguns representantes do mercado imobiliário da região, inclusive Milton Bigucci. Ninguém teve a cara de pau de negar a overdose de empreendimentos de três dormitórios. Poderiam ter dito mais. Que também as unidades de dois dormitórios encalham se forem razoavelmente sofisticadas. Sem contar que – e esse será assunto para outro texto – o desastre total na área de escritórios comerciais, a contaminar todo o mercado.
Lição ao jornalismo
O mais importante em tudo isso é que fica uma lição ao jornalismo da região, omisso em questões substantivas para a sociedade, como é o caso do mercado imobiliário: a contrapartida do silêncio à lista de presença de investidores publicitários da área de construção civil não é uma goma de mascar milagrosa que se estica ao infinito sem risco de rompimento. Muito pelo contrário: quanto mais se estica, mais se corre o risco de sofrer o incômodo bumerangue de um impacto no rosto, a exigir cuidados no processo de desgrude.
O mercado imobiliário da Província do Grande ABC é uma bomba relógio que já está explodindo em pontos localizados e que tende a provocar mais estragos. Nada diferente, aliás, de outros endereços geográficos bem menos atingidos pelo esvaziamento econômico. O Brasil consumista à base de financiamento perdeu o eixo produtivo. Essa história não costuma terminar bem porque uma hora ou outra aparece sempre mais alguém para botar o dedo na ferida. O Estadão confirmou uma série de matérias desta revista digital. Nenhum mérito para este jornalista. Basta enxergar e ouvir sem subalternidade.
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21/11/2024 QUARTO PIB DA METRÓPOLE?