Se a Justiça agir com lisura — e acredito piamente nessa premissa — os responsáveis pelo Residencial Ventura, conjunto de 320 apartamentos instalados no coração do Bairro Jardim, em Santo André, deverão ser responsabilizados por algo que, invadindo a linguagem futebolística, chamaria de drible da vaca nos adquirentes. Vou explicar o que vem a ser essa metáfora que retrata um fato insofismável que consta do inquérito civil instaurado no Ministério Público de Santo André. As irregularidades do Residencial Ventura, verão os leitores que eventualmente não conheçam este jornalista, não são uma brincadeirazinha para atrair audiência. Se optasse por esse caminho, saberia muito bem o que fazer, acreditem.
Volto ao assunto porque estava em dívida com os leitores. Há mais de um mês prometi revelar um ponto nevrálgico na denúncia que enviei ao Ministério Público. Além disso, a Cyrela, construtora e incorporadora do consórcio de empresas que lançaram a obra — juntamente com a família De Nadai, ex-proprietária do terreno ocupado durante 70 anos por uma indústria altamente poluidora — resolveu partir para o ataque me inquirindo na Justiça. É uma ótima oportunidade para que se reforce, também no âmbito criminal, o que tenho enfatizado na esfera cível.
Os responsáveis pelo lançamento do Residencial Ventura não agiram com a correção esperada, desejada e indispensável nestes tempos em que tanto se fala em responsabilidade social. Bastaria o histórico de ocupação daquele terreno pela Atlântis, durante sete décadas, para que empreendedores de fato preocupados com o bem-estar da sociedade fossem os primeiros a tornar transparente o processo do negócio que resultou em quatro torres de apartamentos. Agiram exatamente na contramão.
O vício de origem que torna o empreendimento imobiliário um risco ao qual jamais este jornalista se submeteria — ou seja, tornar-se um dos moradores do local — está caracterizado no Inquérito Civil do Ministério Público. À folha 75 o geólogo Ângelo José Consoni, responsável técnico da TCRE Engenharia, atendendo à solicitação da Mac Cyrela Itália Empreendimentos Imobiliários, registra exatamente o seguinte:
4. A análise do Relatório Complementar de Investigação Ambiental Confirmatória apresentada pelo Empreendedor (em 18/05/2007) e efetuada pelo Semasa (06/07/2007), não possibilitou posicionamento conclusivo quanto à inexistência de contaminação no lote, sendo solicitada a coleta e análise do solo e da água subterrânea em pontos de amostragem adicionais, a serem definidos de modo à melhor representar as potenciais fontes de contaminação da antiga planta industrial existente no lote (tanques de solventes e de combustível), bem como o sentido do fluxo hidrogeológico do local. Tais condicionantes foram expressas na Notificação ELA/Geplan/DGA 926/07, de 27/07/2007.
5. Solicitação de Licença Ambiental de Instalação em 04/07/07.
6. Emissão da LAI (Licença Ambiental de Instalação) em 28/09/2007, contendo trinta e uma exigências técnicas a serem cumpridas pelo empreendedor, com destaque para a apresentação de Parecer da Cetesb, conclusivo e favorável à implantação do Empreendimento.
O item 6 é de importância vital para definir o delito dos empreendedores.
Em 20 de maio do ano passado, na segunda parte da série de matérias sobre o empreendimento (”Eu não tenho coragem de morar no Residencial Ventura”), resgatei encontro na sala da presidência do Semasa (Serviço Municipal de Saneamento Ambiental de Santo André) em dezembro de 2006, quando o então presidente Sebastião Ney Vaz, técnico especializado em meio ambiente, alertou Sérgio De Nadai, comandante do Grupo De Nadai, e Ubirajara Freitas, diretor comercial da Cyrela.
Sebastião Ney Vaz chamou a atenção dos dois interlocutores sobre o parecer técnico do Semasa que mal saíra do forno sob a denominação de Licença Ambiental Preliminar 186/2006, a exigir dos empreendedores nova investigação do passivo ambiental da área.
O documento ressaltava as complicações latentes. A conclusão apresentada por uma empresa privada contratada pelos empreendedores divergia da análise do Semasa, tendo em vista indícios de contaminação por produtos químicos voláteis encontrados em inspeção realizada no local um mês antes daquele encontro.
Resumo da história: Sérgio De Nadai e Ubirajara de Freitas fizeram ouvidos de mercadores e na semana seguinte o empreendimento era lançado comercialmente com pompa e circunstância. Os apartamentos foram colocados à venda sob ampla campanha publicitária.
Agora, finalmente, vamos revelar o núcleo da irregularidade-mãe que coloca sob suspeição o empreendimento: no laudo de Licença Ambiental Prévia l86/2006 do Semasa, assinado por Sebastião Vaz, entre as exigências aos empreendedores, consta:
30. As vendas só poderão ser iniciadas após a emissão da Licença de Instalação.
Repetimos: o lançamento comercial do Residencial Ventura, então sob forte suspeita de contaminação ambiental, só poderia ser realizado após o atendimento de imensa lista de obrigações, culminando, então, com a expedição da Licença Ambiental de Instalação.
Fosse o Residencial Ventura um novo remédio, só poderia ser comercializado após passar pelo crivo da instância pública responsável, no caso a Anvisa. Os empreendedores do Residencial Ventura passaram por cima da legislação. Somente nove meses depois, Deus sabe como, apresentaram a documentação indispensável, embora suspeitíssima, porque entregou-se a uma empresa privada, muito próxima dos negócios da Cyrela, a palavra final à liberação do terreno para obras. A Cetesb terceiriza a empresas privadas a tarefa de vasculhar áreas contaminadas. Quem as contrata são os próprios empreendedores. Qualquer semelhança com raposa e galinheiro não seria mera coincidência.
Os leitores não são bobos nem nada para acreditarem sinceramente que os procedimentos que se deram na sequência do lançamento comercial em confronto com a legislação ambiental asseguram que o Residencial Ventura é o local mais tranquilo do mundo para se viver. Não há sensacionalismo algum quando se afirma que o Ventura estaria muito mais próximo do Barão de Mauá de tristes memórias e até agora, passados 10 anos, nenhuma punição efetiva.
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