Houvesse uma Lei de Responsabilidade Informativa nos moldes da Lei de Responsabilidade Fiscal, mercadores imobiliários seriam candidatíssimos a processos civis e a punições exemplares. Chega a ser acintosa a reportagem publicada na edição de ontem do Diário do Grande ABC sob o título “Lançamento corporativo cresce 43,8”. Trata-se de uma meia verdade que acoberta bobagens inimagináveis para quem não suporta mais a possibilidade de consumir informações fraudulentas. Vende a matéria um setor imobiliário voltado ao setor corporativo que não existe na Província do Grande ABC.
Estamos vivendo uma crise de excesso de oferta e escassez de demanda de salas corporativas em vários pontos da região. Os preços desabam, faltam inquilinos, desesperam-se os investidores, roem as unhas as construtoras e as incorporadoras e o que o Diário do Grande ABC publica é exatamente o contrário. Estamos no céu, segundo o jornal que não se dá à obrigação de questionar para valer as informações, entre outros motivos porque não lhe interessa.
Aliás, não é de hoje e não se pode responsabilizar seletivamente a direção atual da publicação pela industrialização de mentiras impressas. Quem conhece um pouco da história da economia regional sabe o quanto confrontamos aquela publicação, principalmente nos anos 1990, quando cansamos de publicar e de provar que a região vivia processo inquietante de rebaixamento econômico (todos os dados estatísticos de então e os que vieram em seguida nos deram razão, entre outros motivos porque ainda temos o juízo no lugar), enquanto o Diário do Grande ABC, pressionado por anunciantes e principalmente por conta própria, ou seja, por conta de vender ilusões, cansou de negar com manchetes triunfalistas. Pena que nas páginas policiais, principalmente, o empobrecimento fez e continua fazendo estragos mais que conhecidos, porque a qualidade de vida foi para o beleleu.
Agora, ou já há muito tempo, se repete a operação jornalística tendo como centro difusor de enrolação o mercado imobiliário que vive uma crise latente na região, tanto por conta do excesso de lançamentos de salas comerciais, ou salas corporativas, como também de apartamentos acima de 100 metros quadrados e dotados de parafernálias de lazer e entretenimento.
O Domo, incrustado numa região nobre de São Bernardo, nas proximidades do Paço Municipal, com quase mil unidades comerciais e centenas de apartamentos, é o símbolo do desconhecimento dos empreendedores da Capital que aqui aportaram desavisadamente, imaginando que encontrariam o Eldorado. O Domo é um mico e tanto, como todos sabem e o Diário do Grande ABC faz de conta que não sabe.
Só para especular
Mas, afinal, o que há de errado na reportagem do Diário do Grande ABC de ontem? Quase tudo, quase tudo. A manchete e a linha auxiliar (“Em 2012, foram anunciadas as construções de 2.221 unidades empresariais no Grande ABC”) não são explicitamente tendenciosas na propagação de fantasias, mas o texto é de uma indiferença completa à racionalidade crítica, à abordagem desconfiada, à sentinela de responsabilidade social que deve inquietar a todo jornalista. Compreende-se que a autora da matéria foi induzida por razões comerciais a ceder àquela loucura de parágrafos liberados para promover uma onda de especulação no mercado imobiliário.
Querem um exemplo violentamente claro do desbunde geral daquela reportagem? Então leiam os parágrafos seguintes:
O diretor regional do Sinduscon-SP (Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo), Sérgio Santos, afirma que a tendência é que continue havendo lançamentos corporativos por conta da mudança do perfil da região. “O Grande ABC está se tornando prestador de serviços e, com isso, há maior demanda por espaços assim”. Santos destaca também o custo como diferencial: enquanto o metro quadrado aqui varia de R$ 5 mil a R$ 8 mil, na Capital, segundo ele, não se acha por menos de R$ 10 mil e pode chegar a R$ 15 mil. “A região tem facilidade de locomoção e localização privilegiada, além de bons bairros. Em 20 minutos se chega a São Paulo e estamos próximos ao Rodoanel e às principais rodovias” – escreveu o jornal.
Acredite quem quiser: o dirigente da entidade que supostamente administra institucionalmente o mercado imobiliário do Estado de São Paulo afirmou com todas as letras que apenas 20 minutos nos separam da Capital. Provavelmente ele se referia a translado de helicóptero, porque a dureza do sistema viário é outra. Insuportavelmente outra. Já quanto ao preço do metro quadrado na região, os números estão próximos da realidade e a defasagem em relação à Capital comprova o quanto perdemos competitividade econômica. Não se pode revogar a lei da oferta e da procura, como se sabe. E tem mais: a Província do Grande ABC prestadora de serviços à qual ele se refere não conta com atividades do setor que agreguem valor. Somos apenas uma pálida sombra da vizinha Capital. Quanto ao Rodoanel, então, é uma falácia a retórica de vantagem comparativa: contamos com apenas três e longínquos acessos completamente fora da zona de efervescência econômica.
É claro que entre os entrevistados pelo Diário do Grande ABC não poderia faltar o personagem de sempre do mercado imobiliário regional, o eterno presidente da Associação dos Construtores, um empresário que conhece bem o terreno em que pisa inclusive os terrenos materialmente menos ocupados por operários do setor. Eis os trechos das declarações de Milton Bigucci:
“Empresas e profissionais liberais querem se alocar em espaços localizados em regiões centrais, próximas de tudo, com grande infraestrutura e segurança”, analisa Milton Bigucci, presidente da Acigabc (Associação dos Construtores, Imobiliárias e Administradoras do Grande ABC). “E quando você lança e vende tudo, é sinal de que há muitos interessados, e que o mercado está aquecido”.
Questão de contexto
No contexto da matéria do Diário do Grande ABC, o contexto do ufanismo desbragado, do levantar de bola a qualquer custo, Milton Bigucci está certíssimo em mais uma vez participar das festividades de embromação jornalística. Agora, quando se trata de realidade dos fatos, comete mais uma vez um deslize imperdoável para quem lida com uma atividade de interesse social e econômico. Quando diz que quando se lança e vende tudo é sinal de que há interessados, ele sugere que essa seja a regra geral, o que não resiste aos fatos. Basta ver o caso do Domo, pegado ao Paço Municipal de São Bernardo. Desafio Milton Bigucci a provar o contrário, ou seja, que o Domo não seja um grande mico, entre outros construídos na região. Os empreendimentos de Milton Bigucci não costumam fracassar entre outros motivos porque ele sabe o tamanho de cada passo que pode dar, conhece muito bem os paços municipais e principalmente tem uma metodologia infalível para garantir custos baixos dos terrenos pelos quais se apaixona.
Embora haja diferenças entre os cromossomos da crise norte-americana e europeia a bordo dos excessos estimulados por mercados imobiliários artificialmente valorizados, mais e mais especialistas brasileiros furam o cerco protecionista da mídia em geral e do apetite pantagruélico dos grandes players nacionais e regionais. O boom imobiliário nos mais diferentes cantos do País já dá lugar a bolhas localizadas. Na Província do Grande ABC há profusão de torres corporativas e residenciais que fazem água.
A sugestão aos leitores é que, quando abrirem os jornais e verificarem o tom de torcida organizada de matérias que têm parentesco muito próximo com informativo publicitário, desconfiem. Não foi à toa, aliás, que, mais uma vez no final de semana, os dois principais jornais paulistas, Folha de S. Paulo e Estadão, desfilaram novas páginas inteiras de anúncios de queima de estoques de apartamento.
Também não custa nada tomar cuidado especial na interpretação de notícias: lançamento imobiliário não quer dizer, necessariamente, comercialização imobiliária. Fosse diferente, os estoques micados não seriam tão volumosos.
A verdade no Valor
Na mesma data em que o Diário do Grande ABC se travestiu, mais uma vez, de agente imobiliário, o jornal Valor Econômico, publicação que tem se apresentado com mais liberdade no tratamento do setor, abriu uma manchete de página interna (“Incorporadoras têm de digerir estoques”) emblemática sobre o momento da atividade. Não custa nada reproduzir alguns dos parágrafos do trabalho de uma jornalista não condicionada a dourar a pílula:
As incorporadoras de capital aberto ainda terão de digerir, em 2013, as consequências do ritmo desenfreado de lançamentos de imóveis nos próximos anos após a onda de abertura de capital das empresas do setor. O cenário é de estoques elevados decorrentes das unidades não comercializadas ou que voltaram para a carteira das incorporadoras em função do elevado número de distratos. Em 2013, o foco das atenções das incorporadoras estará nos estoques, segundo o analista de construção civil do Bradesco Corretora, Luiz Maurício Garcia. (...) O empenho para reduzir estoques se reverteu em campanhas de descontos e facilidades de pagamento. Incorporadoras optaram por reduzir um pouco a margem, em troca de evitar novos custos e de tentar acelerar a tão buscada geração operacional de caixa. Em função das altas expressivas de preços nos últimos anos, a venda de imóveis com abatimentos não se mostrou um mau negócio para as empresas, mesmo com os custos resultantes da ruptura de contratos. Mas nem esse fator de estímulo foi suficiente para impedir que o ritmo de comercialização caísse. É que o marketing de um lançamento faz com que o ritmo de venda de imóveis novos seja muito superior ao dos estoques. Num ano em que quase todas as incorporadoras de capital aberto lançaram menos, as vendas também foram reduzidas, assim como o indicador de VSO (Venda Sobre Oferta). O volume de estoques elevados e as campanhas de descontos contribuíram para que potenciais compradores de imóveis assumissem postura mais cautelosa na tomada de decisões.
Considerando-se que, mesmo retratando a realidade, o Valor Econômico dá ao mercado imobiliário um tratamento de quem carrega ovos frescos, e que a substituição de “estoque” por “encalhe” não seria nada ofensiva, o quadro que se pinta é bem diferente do que tenta fazer crer o Diário do Grande ABC e os lobistas do setor.
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