Imprensa

Quando um sinalizador obscurece
a inteligência de colunista da Veja

DANIEL LIMA - 04/03/2013

Num texto de estupidez semelhante ao disparo do sinalizador que fez do jovem boliviano Kevin Espada vítima fatal, o veterano e respeitado jornalista J.R. Guzzo, colunista da revista Veja, destilou todo o ódio recôndito ao Corinthians, à página 114 da edição que está nas bancas. Palavra de quem leu, releu e selecionou o máximo de artigos sobre aquele incidente.


 


Do antropólogo Roberto DaMatta ao marquetólogo travestido de animador de programa esportivo, Milton Neves, passando por Juca Kfouri e ingressando em outros autores com posicionamentos contrastantes ou não, mas respeitosos à instituição, o pêndulo da racionalidade paralisou naqueles parágrafos de Guzzo.


 


Já a partir do título do artigo (“Bem feito”), até o último parágrafo (“Só machucando os clubes com penas pesadas seus diretores talvez comecem a se afastar da bandidagem”), o jornalista da Veja desfila um fel amargo de subconsciente provavelmente incomodado com o fato de o Alvinegro vir dos títulos de campeão da disciplina e da técnica na Taça Libertadores da América do ano passado e, mais ainda, do título mundial de clubes, no Japão. Que ousadia do time da plebe, como assim se referem os anticorintianos, alcançar o topo do mundo?, ignorando que o Corinthians é dono da maior torcida entre a classe média-alta e média-média do País.


 


Impressiona a volúpia com que os bem articulados anticorintianos se movimentam para agirem oportunisticamente, com vieses das arquibancadas de torcidas organizadas que tanto demonizam, quando, fossem mais inteligentes e supostamente imparciais, teriam se dedicado ao final do Mundial de Clubes no Japão a descrever, mesmo que por conveniência, o exemplo de civilidade que mais de 30 mil fiéis ofertaram ao mundo naquela decisão com o Chelsea. Foi um espetáculo magnânimo no Estádio de Tóquio a ponto de a presidência da FIFA enaltecer o clube em editorial da página da instituição na Internet.


 


Organização é tudo


 


E sabem por que tamanha distinção entre a Fiel numerosíssima do Japão e a Fiel de pouco mais de 200 fanáticos em Oruro, na Bolívia, quando a paz foi roubada naquele arremesso ao que tudo indica involuntário de um jovem menor de idade? Organização, organização e organização. Entre o Japão e a Bolívia há uma distância que vai além, como se sabe, do mapa-múndi. Vai uma diferença de civilização que se repassa aos visitantes.


 


A Taça Libertadores da execrável Conmebol (engraçado como os cronistas pararam de lembrar o quanto a cúpula do futebol sul-americano é corrupta) é um convite à indisciplina, à guerra de torcidas, a agressões extracampo e, também e inegavelmente, a atos de violência dentro de campo sob olhares submissos de árbitros pusilânimes. Comparem os jogos da Libertadores com os da Liga dos Campeões. Aqui vicejam artimanhas delinquenciais. Lá se multiplicam respeito à técnica e a disciplina. Lá não falta um xerifão do esporte a reagir a eventuais deslizes. Aqui, os bandidos tomaram conta.


 


É claro que nada disso interessou ao exorcismo clubístico do colunista da Veja. Craque no uso de palavras, J.R. Guzzo sabe exatamente o que quis dizer em cada frase, dai aqueles momentos de perna de pau não serem involuntários. Leiam essa frase: “O clube, através de sua torcida de delinquentes, pode agora associar-se a um segundo crime – o de obstrução da Justiça”. Tamanha generalização só pode partir d mente perturbada pelo fanatismo esportivo ou quem sabe por recalque igualmente esportivo. Possivelmente as dores do despeito das más notícias vividas no ano passado ainda não foram metabolizadas. O futuro talvez seja ainda mais desconfortável. 


 


Pura bobagem o destilar dessa rivalidade em formato de moralidade esportiva, porque a grandeza do Corinthians é semelhante à importância de seus principais rivais, sem os quais nada no futebol brasileiro seria interessante. “A vergonha que carimba o clube, perante o futebol mundial, como cúmplice ativo de criminosos” é mais que uma frase de efeito pirotécnico do colunista da Veja ao especificar o generalizado.


 


Já imaginaram se os analistas do Vaticano utilizassem o mesmo peso e a mesma medida para espalhar descredenciamento à Igreja Católica por conta dos casos de pedofilia envolvendo clérigos e seus rebanhos, que, todos sabem, são mais comuns que mortes no futebol? Já imaginaram o caos no sistema viário se os faróis fossem abolidos, se as regras fossem dinamitadas? Pois o futebol sul-americano sempre viveu desse tipo de balbúrdia.


 


Luminosidade e trevas


 


O engraçado nos desdobramentos do caso Kevin Espada é que aonde se procurou luminosidade intelectual, como no caso de J.R. Guzzo, se encontraram as trevas do radicalismo clubístico disfarçado de responsabilidade social. E aonde se buscou alguma frase que amenizasse de forma sarcástica e mesmo debochada o estado da alma de todos nós, tocados por aqueles acontecimentos, vislumbrou-se claridade -- caso de Milton Neves.


 


Sob o título “Corinthians, a Geni da Bola?”, esse autodeclarado santista que tem por exercício básico mexer com os corintianos para assegurar o Ibope que move o faturamento de seu programa televisivo, escreveu no blog do UOL verdades inconvenientes às demais torcidas que, como a corintiana mais engajada, está sempre à espreita para retaliações.


 


Em suma, Milton Neves reiterou o que o bom senso exige de quem tem um mínimo de intimidade com o futebol: a) O Corinthians não matou Kevin Espada; b) Os 12 torcedores não doces da Gaviões da Fiel que estão sendo bodes expiatórios na Bolívia, não lançaram qualquer artefato contra a torcida de Oruro; c) O visitante Corinthians não era o responsável pela fiscalização e policiamento do Estádio do San José; d) O autor já foi sim identificado, confessou e ele não é laranja; e) a mãe dele, sempre a árvore de qualquer família, confirma a culpa do filho; e) Punido e obrigado a jogar sem torcida, o clube perdeu uma grana preta e obedeceu pacificamente a Conmebol; f) O Corinthians não acionou a Justiça para que torcedores entrassem no Pacaembu na marra, na última quarta-feira; g) Quatro corintianos não bem corintianos pegaram o ingresso em liminar concedida e lotaram o estádio naquele Corinthians 2 x 0 Millonários.


 


Eleger o Corinthians bola da vez faz parte do jogo de intrigas entre torcidas, mas a responsabilidade de quem se comunica com os leitores é um marco que não admite transgressões e especificidades seletivas. Atire a primeira pedra – ou lance o primeiro sinalizador – quem não tem culpa no cartório de violências nos estádios?


 


O alvo principal de uma cruzada pró-pacificação dos espetáculos são as autoridades esportivas de cúpula associadas ao Estado, que tem por obrigação constitucional zelar pela segurança dos cidadãos. Os torcedores que entraram com sinalizadores na Bolívia o fizeram por conta da negligência das autoridades de segurança pública locais, agora dedicadíssimas a encenar eficiência ao transformarem 12 prisioneiros inocentes em bodes expiatórios de um vexame internacional que não é o primeiro nem será o último.


 


Explicações de DaMatta


 


Alguém precisaria transmitir ao colunista da Veja um dos fragmentos da entrevista do antropólogo Roberto DaMatta ao Caderno Aliás, do Estadão de ontem: “Qual é o limite do torcedor? É evidente que isso é a expressão e o sintoma de algo que acontece mais amplamente na sociedade brasileira. Nós estamos carentes de discussão de limite. Algo que já aparecia, por exemplo, no primeiro governo Lula, quando um grupo de manifestantes entrou no Senado Federal e arrebentou tudo. Há um sentimento perigoso no ar, que é o seguinte: agora que nós temos liberdade, vivemos numa democracia, eu posso fazer tudo o que quero”.


 


Se aquelas frases não forem suficientes para o colunista da Veja dar-se conta de que direcionou equivocamente a bazuca da generalização ao conjunto da torcida do Corinthians, num claro destempero clubístico, seguem mais alguns parágrafos daquele antropólogo: “O agenciamento psicológico, emocional e social que o futebol proporciona é muito forte. Sobretudo, dentro de certas camadas sociais que têm reclamações, frustrações, que vivem o drama da desigualdade – e ao mesmo tempo da igualdade, que o futebol proporciona a eles. É algo que identifico muito claramente nos trabalhos que fiz sobre o futebol: ele proporciona essa experiência de justiça, de igualdade e de revanche. E também, como fica bem claro nesse episódio, uma experiência de agressividade que não passa por agressividade. Feita sob o manto do coletivo”.


 


A diferença entre a estupidez do artigo do colunista da Veja e do ato do jovem que matou Kevin Espada de forma mais que provavelmente acidental é que, além da idade e da experiência de vida em flagrante contraste, provavelmente o jornalista não estará preparado à reciclagem entre outras razões porque não faltarão bestas esportivas a embalar as bobagens que alinhavou, enquanto o agressor sofrerá na carne as consequências daquela barbeiragem.


 


O sinalizador do menor de idade iluminou tragicamente o caminho para encaixar o futebol sul-americano nos trilhos da responsabilidade esportiva que os europeus já alcançaram, depois de duras batalhas. O erro do colunista de Veja é acreditar ou tentar fazer-se acreditar que aquele rastro em direção a Kevin Espada é monopólio malévolo de violência em preto e branco, apenas.


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