Estou me divertindo um bocado, mas um bocado mesmo com muito do que li sobre o incidente ou acidente em Oruro, que fez vítima fatal o jovem boliviano Kevin Espada, atingido por um sinalizador atirado por um torcedor corintiano. Com toda a ressalva de dor que aquela tragédia merece e que deve servir de ponto de inflexão à tomada de posições verdadeiramente sérias, fico imaginando a cara e o prestígio de jornalistas e especialistas que se puseram a duvidar da veracidade das informações de que se tratara de um menor de idade o autor do arremesso daquele bólido brilhante.
Como escrevi neste espaço sobre o destempero do jornalista J.R. Guzzo, numa página inteira da revista Veja, volto obrigatoriamente a ele. Primeiro, descubro que se trata de um corintiano. Juro que imaginei que fosse anticorintiano. Os termos do texto que mancha a instituição, como se fosse a primeira a ensanguentar os campos esportivos, são próprios do anticorintianismo ou de qualquer outro anticlubismo que envolve qualquer outra agremiação. Ou seja, uma besteira sem tamanho.
Como Guzzo é corintiano, o problema se agrava porque das duas uma: ele tem alguma birra com a direção do clube ou eventualmente com algum aspecto político (todo mundo sabe que Guzzo é um antipetista de carteirinha, e que Lula é corintiano) ou simplesmente queria ser mais realista que o rei, ou seja, demonstrar que é imparcial mesmo que para isso sacrificasse e jogasse no lixo o bom senso e o respeito. Não faltam profissionais de imprensa escravos do equilíbrio forçado ou do politicamente correto. Sei o quanto sofri com o caso Celso Daniel.
Como estará Guzzo nestas alturas do campeonato, depois de escrever o que escreveu, por exemplo, sobre o autor do crime? Reproduzo os parágrafos que ele fez imprimir em Veja:
O clube, através de sua torcida de delinquentes, pode agora associar-se a um segundo crime – o de obstrução da Justiça. Um advogado da Gaviões fez, de repente, a descoberta milagrosa de um culpado dos sonhos: com o aval prático da Rede Globo, apresentou um garoto de São Paulo como sendo o autor do crime. Por uma dessas coincidências extraordinárias da vida, o rapaz é menor de idade – e portanto está livre, pela lei brasileira, de receber qualquer tipo de punição. Foi uma coisa estranhíssima: o advogado, em vez de defender seu ciente, fez tudo para provar que ele era o culpado. A ideia, nessa estratégia genial, era obter a soltura imediata dos 12 corintianos presos na noite do crime, entre os quais um dos principais chefes da Gaviões. Aconteceu, obviamente, a única coisa que poderia ter acontecido: as autoridades bolivianas não tomaram o menor conhecimento da história, pois está na cara que não podem soltar todo mundo só porque apareceu no Brasil, ou na Cochinchina, uma confissão que “muda tudo”.
Consolo na TV
Sem meias palavras, o que pergunto é o seguinte: aonde o jornalista J.R. Guzzo, de Veja, profissional experiente e competente, vai se enfiar depois de uma tremenda mancada ditada pela pressa, pela verborragia, pela necessidade de remar sempre a favor da corrente? E aqueles que enviaram àquela revista comentários elogiosos ao articulista, considerando-o gênio da arquitetura filosofal de um crime mais que certeiro de gente grande?
Bem que Guzzo poderia buscar consolo no desembargador Siro Darlan, que foi juiz da Vara de Menores do Rio de Janeiro, ouvido na semana seguinte ao caso pelo programa de TV do Observatório da Imprensa. O que disse o desembargador sobre o que se considerou, então, uma tentativa de transferir a culpa a um menor de idade? Leiam:
Uma farsa que agride a inteligência mediana de qualquer pessoa. Utilizar-se desse jovem como protagonista de um ato tão grave, para aparentemente safar os verdadeiros responsáveis por esse ato criminoso, é irresponsabilidade. E, além disso, causa uma repercussão na opinião pública muito negativa sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. As pessoas ficam pensando que pelo fato de ser um adolescente nada acontecerá quando, na verdade, se esse fato tivesse ocorrido no Brasil, e se esse jovem fosse o responsável, ele seria preso, processado pelo Ministério Público e poderia pegar uma medida de privação de liberdade de até três anos”.
Até o decano do jornalismo brasileiro, Alberto Dines, o maior profissional em atuação no País, caiu na armadilha da morte do jovem boliviano. Radicalizou o discurso durante o programa de TV do Observatório da Imprensa:
Torcidas organizadas são tropas de choque, não usam armas mas são militarizadas. As torcidas organizadas precisam ser dissolvidas e abolidas. Os clubes são responsáveis por estas gangues uniformizadas, mas a mídia não tem coragem de exigir drásticas punições porque não quer perder leitores, telespectadores, ouvintes. E enquanto o futebol não for enquadrado pelo Estado e os cartolas processados criminalmente, as tragédias continuarão ocorrendo. Somos condescendentes com tudo que envolve o futebol – aceitamos a sua corrupção, somos complacentes como a sua violência, insensíveis à incúria e à irresponsabilidade dos dirigentes esportivos porque o Estado brasileiro permite a imunidade do Estado futebolístico, um Estado dentro de um Estado regido por outras leis e outra moral. Apenas o hino é igual! A farsa de apresentar um menor de idade como responsável pela morte do jovem Kevin, e assim livrá-lo de punições adequadas e severas, não depõe apenas contra a torcida Gaviões da Fiel, depõe contra a hipocrisia de nosso modelo de sociedade e escancara uma violência que já não é mais possível esconder.
Sociedade, eis a resposta
Talvez a melhor resposta à inflexibilidade punitiva de Alberto Dines tenha sido exposta durante o programa pelo jornalista Xico Sá:
Eu acho que o futebol é apenas um parte da sociedade brasileira, com o espetáculo dentro da sociedade. Agora vivemos no Estado de São Paulo um estado de guerra, de mortes diárias, assassinatos. Você não vai quer que isso reflita no ânimo da população nos estádios? As coisas estão muito ligadas. Não dá para ver o futebol apenas como espetáculo de 11 homens contra 11 homens, uma bola no meio e a torcida. Não, isso é o espetáculo da sociedade brasileira.
Como se observa, é vasto o campo de manobras para análises, reflexões, sentenças e também escorregões envolvendo esse outro lado do futebol.
Como jamais escondi o time pelo qual torço e também não sonego informação sobre os times pelos quais não torço (o São Bernardo politizado pelo PT não tem a minha torcida, sem que isso reduza um milímetro minha capacidade de analisar seus jogos; e o Santo André dos tempos de Saged, de Ronan Maria Pinto, conseguiu que torcesse contra, sem, entretanto, deixar de apontar a equipe finalista do Paulista de 2010 como uma das melhores de sua história) fico muito à vontade para mexer com essa espécie de vespeiro que atrai gente muitas vezes despreparada para um debate sensato.
Sei separar tão bem as coisas, paixão de um lado, jornalismo de outro, que o leitor mais ativo pode procurar o mecanismo de busca e digitar o nome do goleiro titular do São Paulo há quase duas décadas. Sugeri que Rogério Ceni recebesse uma homenagem do Corinthians quando da marcação do 100º gol em sua carreira, justamente contra o maior rival, em jogo disputado em Barueri. Esse tipo de grandeza ainda não desembarcou nos campos de futebol. E esperar que civilidade nas arquibancadas não esteja acompanhada de organização rígida e segurança exemplar, é acreditar em Papai Noel.
Voltando ao Observatório de Imprensa, algo na mesma linha de avaliação do jornalista Xico Sá foi apresentado pelo sociólogo Mauricio Murad:
A violência do público ou de parte deste público tem que ser entendida dentro da violência que a precede, que é a violência pública, a violência histórica, cultura, política. E, infelizmente, nós temos um país com um lastro de violência muito intenso”.
Fechem tudo!
Ainda sobre a intervenção de Alberto Dines e sua pregação de dissolvição das torcidas organizadas, apoiaria integralmente a sugestão, desde que também as assembleias legislativas, as câmaras municipais, o senado e outras instâncias de poder fossem igualmente fechadas para balanço. É claro que Dines se excedeu e que estou me excedendo em forma de sarcasmo, porque a raiz de tantas barbaridades no campo esportivo e também em tantos outros campos mais nobres para o conjunto da sociedade é a impunidade, a malandragem, o jeitinho tipicamente brasileiro de fingir que está tomando providências, porque, no fundo, todo mundo ou quase todo mundo quer é mesmo se locupletar.
A jornalista Silvia Chiabai saiu nas páginas do Observatório da Imprensa para cutucar cronistas esportivos que não conseguem esconder parcialismos mais que manjados. Atacou diretamente dois flamenguistas, Renato Maurício Prado e Mauro Cesar Pereira, os quais vejo permanentemente na TV e os considero extremamente sequestradores da verdade. Alguns parágrafos do texto de Silva Chiabai sob o título “Corinthians paga por praga”:
A morte do garoto (...) desencadeou uma histeria (euforia?) anticorintiana. Como objetividade nessa área é difícil de encontrar (Cláudio Carsughi, do UOL, e Paulo Júlio Clement, da Fox, são dois raros exemplos de imparcialidade), a alegria era tanta pelo Corinthians (quase sempre identificado como o time do ex-presidente Lula) estar se dando mal após um ano gerando boas notícias que até um “bem feito” na revista Veja se pôde colher num episódio tão triste quanto este (...). Mas os mais excitados, em termos de revanchismo clubístico (com pitadas de politico) foram os comentaristas flamenguistas (os rubro-negros parecem ter sido os mais golpeados pela conquista do Mundial de Clubes pelo Timão no ano passado – porque o Flamengo foi ultrapassado em números de títulos e porque não perdoaram a pesquisa que deu como empatada a sua torcida com a corintiana). (...) A tese da violência, aventada por muitos, só se justifica para os que consideram o crime não como fruto de irresponsabilidade, culposo, mas doloso, intencional. Esta foi a certeza do perito criminal Renato Maurício Prado, que em seu blog no Globo argumentou com supostas imagens de que o culpado mirou com a mão firme na torcida adversária. Suplantou a polícia e a justiça, nosso anticorintiano de carteirinha (...) Outro ardoroso anticorintiano, o rubro-negro Mauro César Pereira, fez vários posts no site da ESPN sobre seu coração dilacerado, sempre direcionando para sua interpretação (que mostra onde lhe doem os calos) de que se o Corinthians quer ser o das “invasões do Maracanã e do Japão (note-se que o referido comentarista já duvidou das “invasões” em diversas ocasiões), deve ser também o da torcida que vitimou o menino. Não se viu tal comoção do jornalista com o vascaíno morto a pauladas por torcedores do Flamengo.
O caso Kevin Espada se desdobra em vários aspectos, um dos quais não pode passar em branco, daí este texto: há sempre de plantão um bando de oportunistas prontíssimos para meter a colher apressadamente, mesmo não contando com apetrechamento de informações básicas. Às vezes dá certo, tumultua-se a realidade dos fatos e até se desloca para o campo político um incidente meramente criminal, como foi o caso Celso Daniel. O que se vê em seguida é o silêncio dos pecadores. Como o do popstar Eduardo Suplicy, figura queridíssima da mídia porque é sempre uma atração à parte, mas que participou de forma patética na apuração do assassinato do prefeito de Santo André. Mas isso é outra história. No caso de Kevin Espada, os falsificadores de fatos caíram do cavalo.
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