O jornal Estadão publicou há um mês uma matéria conceitualmente impressa 13 anos antes na LivreMercado, aquela que foi durante quase duas décadas a melhor revista regional do País. Não só a melhor revista regional do País, mas a melhor publicação regional do País. Em todos os sentidos. “Perfil de metalúrgico fica mais sofisticado” foi o título da matéria do Estadão assinada pela experiente jornalista Cleide Silva, especializada no setor automotivo. “Peão, uma ova!” foi o título de capa de LivreMercado de maio de 2000, assinada pelo jornalista Rafael Guelta, um dos maiores talentos que passaram pela equipe que comandei.
A revista LivreMercado, que virou “Deus me Livre” nas mãos inábeis de um recuperador de impostos e que morreu de vez sob o comando de outro empresário pouco versado no assunto, antecipava-se ao futuro. Sem nenhum temor de ser chamado de cabotino, a LivreMercado exorcizou do jornalismo rastaquera destas terras o Complexo de Gata Borralheira que impregna a sociedade em todas as instâncias.
Alguns idiotas maltrapilhos em intelectualidade e esbanjadores de ignorância certamente vão dizer que estou a cultivar o passado porque estou saudoso dos tempos que passou. Erram redondamente por múltiplas razões. Embora LivreMercado seja uma sucessão editorial de fantásticos resultados, com lembranças que jamais se afastarão de minhas memórias, não vivo do passado. Pelo menos até que o passado, de repente, se coloque à frente dos fatos e das repercussões do presente – como é o caso da matéria do Estadão.
Um novo metalúrgico
Quando li aquela reportagem do Estadão tomei uma providência que sempre tomo quando determinado assunto entra na tela de meu radar de metabolização informativa. Pensei imediatamente naquele texto extraordinário de Rafael Guelta. Podem os leitores não acreditar, mas tenho todas as reportagens de capas de LivreMercado em minha cabeça. Contribui imensamente com todas, direta ou indiretamente. Escrevendo-as ou participando da elaboração conceitual, sempre tendo, durante muitos anos, o suporte de uma profissional que está muito, mas muito acima da média do que há de melhor no jornalismo brasileiro, Malu Marcoccia.
Aquele metalúrgico pintado pelo Estadão como um novo profissional a lidar com tecnologia, a preparar-se em cursos especializados, a frequentar faculdades técnicas, aquele metalúrgico descoberto pelo jornal paulistano na edição de 30 de março de 2013 foi levado com mais riqueza de detalhes, com mais engenho descritivo, com mais sensibilidade humana, por nosso Rafael Guelta.
Não estou bem lembrado nem posso garantir com certeza, mas o achado do título de capa – “Peão, uma ova!”, num tom provocativo, quando não redentor, certamente impositivo de novos tempos, foi formulado por Malu Marcoccia. Um tiro na mosca, se querem saber. Nada exprimia de forma tão concreta, sintética, analítica, retumbante, o que cada parágrafo de Rafael Guelta explicitava com força descritiva forjada nas durezas de um dia a dia de tempos em que escrever não era um ato burocrático executado por um especialista em tecnologia da informação, como a maioria dos profissionais de jornalismo de hoje. Eram tempos de jornalistas de carne e osso que não terceirizavam às ferramentas de busca o que se passava para valer nos mais diferentes ambientes. Como o chão de fábrica daqueles dias de início de um novo século numa Província do Grande ABC estuprada pela globalização e pela guerra fiscal, entre outros impactos que nos sugaram um terço de produção de riqueza em apenas oito anos.
Relações comprometidas
Como o texto está no acervo de CapitalSocial (como tantos outros do arquivo digitado de LivreMercado) não tenho por que pinçar mesmo que alguns parágrafos para interagir mais fortemente com os leitores. Haverá no final deste texto um link a permitir essa descoberta ou redescoberta do melhor jornalismo que a Província do Grande ABC já produziu. Não só o melhor jornalismo, a bem da verdade, mas, dis-pa-ra-da-men-te o melhor jornalismo.
Foram tantos os embates que vivenciamos no comando da redação de LivreMercado – assim como o fazemos nesta revista digital – que as relações diplomáticas, gerenciais, administrativas, publicitárias e o escambau com o Diário do Grande ABC deterioraram-se ao longo dos anos, antes mesmo da chegada de Ronan Maria Pinto como acionista principal daquela publicação.
Afinal, perguntaria o leitor, o que tinha a ver LivreMercado e Diário do Grande ABC? Nada, exceto uma recomposição acionária incentivada principalmente por mim para que aquela empresa se associasse àquele grupo de malucos que resolveram produzir uma revista que tivesse a Economia regional como foco principal. Foi em abril de 1997, sete anos após este jornalista criar LivreMercado, inclusive lhe dando o nome de batismo à reboque da queda do muro de Berlim, que o Diário do Grande ABC virou acionista majoritário da publicação.
Foi uma associação de péssimos resultados. O Diário do Grande ABC já vivia crise acionária que redundou no afastamento da família Polesi, responsável pela área editorial. Foram anos tensos sobretudo porque jamais nos condicionamos a replicar a linha editorial do Diário do Grande ABC, uma mistureba de omissão às desventuras econômicas que atingiam a região, ufanismo em torno de um regionalismo que não passava de enganação e, sobretudo após a saída dos Polesis, uma vocação incontrolável a perfilar ou opor-se a administrações municipais locais de acordo com as relações, diríamos, institucionais entre o departamento comercial e os gabinetes dos prefeitos.
Em resumo, o Diário do Grande ABC jamais deixou de ser um péssimo parceiro entre outros motivos porque em nenhum período durante 11 anos de associação atuou para cumprir os pressupostos do arranjo acionário de ganhos sistêmicos das duas publicações. Nenhum anúncio sequer foi direcionado à carteira da revista pelo sócio majoritário. O agravamento da crise de relacionamento ganhou um período de armistício com a chegada de Ronan Maria Pinto, mas não demorou para aflorarem novos fluxos tóxicos. Havia incompatibilidade editorial entre os dois produtos mesmo com os Polesis no comando da redação do Diário do Grande ABC. Com a chegada de Ronan Maria Pinto e os Dottos que sobraram da sociedade fundadora daquela publicação o caldo entornou de vez, depois de um começo que parecia ganhar forma de lua de mel quando, inclusive, acumulei o comando das duas redações, do jornal e da revista.
Desafio de aperfeiçoar
A reportagem do Estadão quando colocada frente a frente com a reportagem de LivreMercado, sobretudo pela defasagem de 13 anos, é um dos exemplos que simbolizam a grandeza da equipe redacional que comandei durante duas décadas. Um time vencedor com poucas substituições a partir da maturação da linha editorial a qual, a bem da verdade e dos fatos, foi um processo em permanente aperfeiçoamento.
Pena que LivreMercado não tivesse no conjunto interdepartamental de uma empresa pequena mas vibrante uma sincronia fina e de responsabilidade que ultrapassasse as fronteiras do imediatismo de individualidades que jamais conseguiram entender a importância social da publicação, optando pelos aspectos financeiros.
“Peão, uma ova!” foi apenas uma das muitas obras-primas que saltaram da imaginação de uma pauta a construir e que, no mês seguinte, ganhava a concretude da realidade impressa e geralmente provocativa de reportagens de capas que encaminhavam os leitores às páginas internas sem que corressem o menor risco de comprarem gato por lebre. Hoje, como se sabe, o que encontramos na praça, com todo o respeito que me merecem aqueles que tanto se esforçam, não é algo que seja possível vender gato por lebre. Tudo não passa de um saco de gatos de superficialidades e irrelevâncias.
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06/11/2024 Maioria silenciosa sufoca agressão de porcos sociais