Imprensa

Quem diria: há 30 anos montamos
uma escolinha de sucesso no Diário

DANIEL LIMA - 16/05/2013

Li outro dia na Folha de S. Paulo que se completaram 25 anos desde que o jornal paulistano introduziu o que chamaria de curso de aperfeiçoamento de jornalistas. Me veio à memória o que organizei bem antes, em 1983, portanto há 30 anos, no Diário do Grande ABC. Ali estava a dividir e a multiplicar o comando operacional da redação com os também jornalistas Ademir Medici e Valdir dos Santos, entronizados que fomos pelo então diretor de Redação Fausto Polesi.


 


Nunca entendi direito as razões que levaram Fausto Polesi a recorrer a mim, ao Ademir e à Valdir (sim, Valdir é mulher) para dirigir o coração e a alma daquela empresa. Enfatizo “coração e alma” porque não faltavam diretores do Diário do Grande ABC que entendiam ser a redação apenas acessório do empreendimento. Aliás, o Diário do Grande ABC, como tantos outros veículos comandados por quem não é do ramo, assim entende o que é Redação.


 


Fausto Polesi sofreu um bocado durante muitos anos como um dos fundadores, acionista e diretor de Redação daquela publicação. O alinhamento entre negócio e informação é doloroso. Menos no passado, de Província do Grande ABC fértil em riqueza, do que hoje, de Província do Grande ABC escassa de talentos de cidadania e fortemente empobrecida socialmente.


 


Montei naquele 1983 uma escolinha de jornalismo na Redação do Diário do Grande ABC porque sentia na pele a escassez de insumos qualificados de produção jornalística. Havia carência de talentos entre outros motivos porque os que surgiam eram catapultados rapidamente às redações dos grandes jornais da Capital.


 


O Diário do Grande ABC se orgulhava do gataborralheirismo de preparar profissionais para a Capital. Quando alguém aparecia numa TV Globo, então, era uma festa. Quem quiser entender o espírito provinciano da região tem de passar pela história do jornal que já foi relativamente muito mais importante do que é hoje, mais que a média das publicações impressas. 


 


Mulheres invasoras


 


Não vou listar os profissionais (ou as profissionais, porque a maioria era formada de mulheres invasoras de redações naquele começo dos anos 1980) que souberam extrair o máximo de aprendizado daquelas aulas. Todos tiveram a experiência prática que as academias insistem em negligenciar. Fosse esse apenas o problema, a situação de baixo nível que se agravou ao longo do tempo seria remediável. Falta cultura geral e cultura específica ao exercício da atividade.


 


Foram dois anos à frente daquele projeto que, à minha saída, no final de 1985, dissolveu-se. Escolinha era a marca informal com que todos se referiam à experiência. Não havia sofisticação denominativa, tampouco plano previamente estruturado. Era jovem, contava com 32 anos de idade, e não dava muita importância ao marketing conceitual de um projeto no papel. Bem diferente de duas décadas depois quando, antes de assumir a direção de Redação do Diário, agora solitariamente, preparei o que chamei de Planejamento Estratégico Editorial, calhamaço de 100 mil caracteres subdividido em vários núcleos temáticos.


 


Os alunos da escolinha mal sabem que quem mais aprendeu com aquelas jornadas foi este jornalista. Mergulhei a fundo naquele trabalho complementar de jornadas diárias de até 18 horas. A escolinha de jornalismo que dirigi integrava cumulativamente o meu dia a dia profissional.


 


Puxando pela memória, lembro da simplicidade metodológica que adotei porque precisava encontrar, urgentemente, talentos que pudessem não só repor as férias de titulares mas também substituir demitidos numa Redação de alta rotatividade. Reunia-me uma vez por semana com os alunos, se assim me permitem chamar aqueles jovens cheios de esperança, e comentava aspectos da carreira naquele jornal. Mais que isso: os encontros me permitiam analisar face a face os textos de cada um deles.


 


Que textos? Os alunos, formandos principalmente da Metodista, recebiam durante o encontro uma pauta para cobertura de evento programado para o final de semana na região. Destacava pelo menos quatro deles para cada cobertura, independente do titular contratado pelo Diário do Grande ABC. Mandava-os ao mesmo evento e delimitava o tamanho da reportagem. Na terça-feira seguinte, reunia-me com todos para analisar os textos. Questões gramaticais eram subestimadas.   A forma gramatical não me interessava prioritariamente, exceto em casos de deslizes homéricos. Valiam muito mais a criatividade, a precisão informativa, a embocadura crítica.


 


Competição interna


 


Há de perguntar o leitor a razão de mandar para um mesmo evento pelo menos quatro aprendizes. Simples, muito simples: ao me debruçar sobre cada texto nos encontros semanais, poderia checar o potencial de cada futuro profissional. Eles competiam com eles mesmos, já que produziam os trabalhos individualmente, cada um em seu respectivo território domiciliar ou profissional. Eram tempos em que Internet era apenas uma experiência das forças armadas norte-americanas.


 


A soma de todos os textos dos repórteres-aprendizes destacados acabava por tornar-se um massa de informações mais confiável como produto, inclusive de mensuração da qualidade do que fora oficialmente produzido e publicado pelo jornal. Nos primeiros tempos sofri um bocado com a flacidez informativa. O martelar de conceitos tendo a atividade prática como elemento explicativo não tardou a dar frutos. Nada resiste ao aprendizado prático sob bases teóricas mensuráveis.


 


No fundo, no fundo, transformei as aulas de jornalismo, se assim me permitem qualificar aqueles encontros, em verdadeiros confrontos. Talvez a explicação seja minha origem profissional. Dei os primeiros passos aos 14 anos numa revista semanal em Araçatuba. Entendo que o aprendizado está intimamente relacionado à competitividade. Precisamos de espelhos, de desafios, de paradigmas. Repassei aos alunos muitos conceitos. Um dos mais sagrados é que não se deve digitar texto algum se a alma não estiver conectada ao trabalho.


Minha chave de ignição de entusiasmo a produzir jornalismo era a leitura de qualquer artigo de veículo de comunicação com o qual me desse bem. À época, minha referência maior era o Jornal da Tarde, que vivia o esplendor e no qual projetava um dia trabalhar. Quando o consegui, já nos anos 1990, me desencantei. Mas aí é outra história.


 


Não diria que sou suspeito para descrever a escolinha de jornalismo que um dia com a cara, a coração e um caminhão de comprometimento profissional resolvi criar no Diário do Grande ABC, mas acho que os alunos, ou mais propriamente as alunas, seriam mais apetrechadas a descrever aqueles tempos, porque provavelmente, por mais que tenha me entregado àquela missão, para todas elas deve ter sido muito mais importante. Foram os primeiros contatos com o mundo real das reportagens.


 


Gramática escravizante


 


Possivelmente o leitor deve estar encafifado sobre a razão de não ter dado jamais importância relevante à gramática nos textos daqueles aspirantes a jornalista. Longe de mim, acreditem, desprezar a forma. Sofro com preciosismos e sei o quanto a língua portuguesa é traiçoeira a nos submeter a alguns vexames. Dar menos ênfase a correções gramaticais naquele processo de aprendizagem tinha o sentido filosófico que defendo até hoje: quando um profissional de comunicação é formatado sob a pressão gramatical em detrimento de vetores que extratificam o conjunto de saberes e potencialidades que detém, estamos utilizando uma armadura que praticamente paralisa seus movimentos cerebrais.


 


Costumo dizer que jornalista que escreve sob o ponto de vista gramatical absolutamente intocável numa primeira investida é jornalista provavelmente sem talento estrutural que o coloque no centro das atenções dos leitores. Escrever certinho na primeira tacada é um mecanismo comportamental excessivamente burocrático, ditado pela provável escravatura de acadêmicos.


 


É por essas e outras que poucos acadêmicos se destacam como exímios formuladores de pensamento no formato jornalístico. Aqueles que se dão bem, como o Prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman, são avidamente consumidos. E não podem deixar de constar de bibliotecas. Tanto que os tenho cuidadosamente instalados em minha residência.


 


Minha salvaguarda para não comprar gato por lebre é, antes de fazer o pedido de compra de uma obra recomendado por especialistas de jornais e revistas, é investigar a vida editorial do autor. Se é colaborador assíduo de publicações jornalísticas de peso, já o contabilizo como ativo intelectual da herança que deixarei aos meus filhos em forma de sugestão de leitura.


 


Passados 30 anos desde que inventei a escolinha no Diário do Grande ABC, e vendo o que vejo de forma impressa nas páginas daquele jornal e de tantos outros, não tenho dúvida de que aquela modelagem, agora sob o rebuscamento de um planejamento detalhado que incluiria o que chamei de produtividade editorial, proporcionaria resultados mais demorados, mas nem por isso dispensáveis.


 


O agravamento da qualidade dos jornais se dá na exata proporção do irreversível e longo processo de fragilização do sistema educacional potencializado pela vulnerabilidade econômico-financeira dos veículos de comunicação nestes tempos de dispersão do conceito de fazer jornalismo, perigosamente e pretensiosamente apropriado pela pirataria pouco apetrechada e lúcida das redes sociais. 


 


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