Sorte que não tenho por costume ler enquanto desço a escada, porque se descesse enquanto lesse, ou se lesse enquanto descesse, teria sofrido um acidente na manhã de hoje. Não acreditei na submanchete de primeira página do Diário do Grande ABC: “Justiça proíbe a MBigucci de cobrar taxas abusivas em contratos imobiliários”.
Havia lido o despacho do juiz na tarde de ontem, no site do Consultor Jurídico, e estava decidido a não escrever sobre o assunto, mas como o Diário do Grande ABC resolveu me surpreender, cá estou eu.
As irregularidades envolvendo a MBigucci, empresa comandada por Milton Bigucci, presidente eterno do Clube dos Construtores e Incorporadores do Grande ABC, não são novidade de esfarelamento ético no mercado imobiliário, o mais protegido e delinquente nas áreas urbanas metropolitanas. Mas são graves exatamente porque envolvem o presidente de uma instituição tão negligenciada pela mídia, filha dileta do Secovi, o Sindicato da Habitação, do qual Milton Bigucci é membro do Conselho Consultivo. O mesmo Secovi que se meteu numa enrascada de financiamento pirata de vereadores na Capital do Estado, denunciado pelo Ministério Público e condenado pela Justiça. Quem é conselheiro consultivo vitalício de uma entidade que patrocina desvios em financiamentos eleitorais não é exatamente o que se poderia chamar de ingênuo.
Juro por todos os juros que fiquei surpreso com o destaque que o Diário do Grande ABC deu à decisão da juíza da 7ª Vara Cível de São Bernardo. A magistrada acolheu pedido do Ministério Público. Diz a matéria que a decisão é contra um grupo de construtoras capitaneadas pela MBigucci Comércio e Empreendimentos Imobiliários. O MP diz que há desequilíbrio na relação contratual, o que tem levado muitos clientes a ingressar com ações judiciais contra a empresa. “O que se tem é um quadro jurídico-contratual desenhado para assegurar, sobretudo, o sucesso da atividade empresarial das rés ainda que em detrimento dos consumidores, geralmente das classes médias e baixa, que investem toda ou grande parte da economia familiar na aquisição de moradia”, declarou a Promotoria de Justiça de São Bernardo, escreveu o Diário do Grande ABC.
Com o pé direito
Embora não precise do endosso do Diário do Grande ABC a nada que exponho nesta revista digital, porque CapitalSocial tem individualidade como veículo de comunicação interligado a uma carreira que já se aproxima de meio século, não sou hipócrita: a notícia do jornal, principalmente com o destaque que foi dado, me faz crer que comecei esta sexta-feira com o pé direito e, dependendo dos desdobramentos nos próximos tempos, posso até começar a acreditar que alguma coisa se alterará no jogo de interesses e conveniências desta Província sempre subordinada a alguns figurões. E Milton Bigucci, presidente da MBigucci, condutor do processo fraudulento que culminou no arremate indecorosamente irregular do terreno em que pretende construir o empreendimento Marco Zero, é um desses figurões.
A denúncia do Ministério Público – cujo ramal não é o mesmo que engavetou o processo do Marco Zero – não é novidade porque ao longo dos últimos meses não foram poucos os adquirentes de imóveis que enviaram lamúrias a este jornalista contra a MBigucci. Creio que deve estar a azucrinar os advogados da empresa uma leva de proprietários de imóveis que teriam sido engabelados por corretores sempre ávidos. Dessa ação específica, já julgada em primeira instância, tinha conhecimento desde o ano passado.
A bem da verdade, o conglomerado MBigucci não está sozinho nesse baile de transgressões. É claro que a responsabilidade que pesa sobre o presidente da companhia é muito maior, porque ele também é dirigente de uma associação de classe que por mais mambembe e chinfrim que seja (o Clube dos Construtores e Incorporadores é quase uma ficção, a ponto de a oposição estar-se organizando para apear Milton Bigucci do cargo) sempre é uma associação de classe e, como a classe é poderosa no conjunto, dita muitas regras antimorais e antiéticas na sociedade.
Ruído na linha
A chamada de primeira página do Diário do Grande ABC desta sexta-feira não foi um descuido editorial, uma decisão que fugiu do controle dos acionistas. Há algum ruído entre o Diário do Grande ABC e Milton Bigucci que determinou a quebra da imunidade do dirigente de classe e do presidente de um conglomerado de empresas.
Tomara que esse ruído seja exatamente aquilo que colocou este jornalista em rota de colisão com Milton Bigucci: a decepção completa com alguém que tem por obrigação, dadas as funções sociais que exerce, colaborar intensamente para ditar o ritmo de mudanças de comportamento empresarial numa região dominada por desvios entre o empresariado da construção civil e administradores públicos.
Mais que o caso julgado pela Vara Cível de São Bernardo, o que mais choca no noticiário sobre o mercado imobiliário na Província do Grande ABC é a complacência com que a mídia trata aquele dirigente classista. Anos após ano, entre outras inconformidades, ele desfila impunemente números fantasiosos sobre o comportamento do setor.
Quem sabe a decisão da Justiça de São Bernardo seja apenas uma preliminar de um jogo que começará para valer nos próximos tempos, sobretudo no setor imobiliário que está muito longe do glamour divulgado por forças de pressão. Há tantos micos espalhados pelo território regional que a decisão de escondê-los de quem consome informações é uma agressão à cidadania.
Total de 1894 matérias | Página 1
21/11/2024 QUARTO PIB DA METRÓPOLE?