Economia

Vamos a FHC com
12 anos de atraso

DANIEL LIMA - 13/04/2002

Se a integração regional fosse minimamente vigorosa, não seriam necessários 12 anos de massacre macroeconômico para que, finalmente, o Grande ABC esboçasse reação cristalizada na audiência com o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, por comitiva formada basicamente pelos sete prefeitos do Consórcio Intermunicipal. Região mais duramente abatida pela abertura econômica mais destrambelhada da história nacional, o Grande ABC foi simplesmente torpedeado ao longo dos anos 90 sem que reações teóricas invadissem o terreno minado mas construtivo da prática. 


 


O anúncio do Consórcio Intermunicipal, agora presidido pelo conservador Luiz Tortorello, prefeito de São Caetano, de que o Grande ABC está agendando encontro em Brasília com o presidente da República é algo semelhante a providenciar alarme para um veículo que há muito foi levado pelos bandidos. É claro que a comparação é exagerada. Até porque, por mais que o Grande ABC literalmente caia nas tabelas de estatísticas e realidades, sempre é tempo de salvar alguma coisa. Mesmo que seja a pecha de omissão.


 


A gravidade do quadro regional, ainda distante de ponto terminal, exigiria muito mais que uma delegação de prefeitos para dialogar com Fernando Henrique Cardoso. Em circunstâncias normais, fora do calendário eleitoral, a mobilização deveria envolver agentes sociais, econômicos, culturais e políticos.


 


Famoso pela ação sindical, o Grande ABC não teve sensibilidade durante 12 anos de quase extermínio de sua principal riqueza -- a indústria automotiva -- para juntar forças, constituir espécie de Movimento dos Sem-Indústria e dos Sem-Emprego, plantar-se à frente do Palácio do Planalto e expressar, com discursos e faixas, descontentamento pelo genocídio empresarial a que foi submetido. Governos encastelados e cercados de alquimistas só costumam acordar para a realidade quando ouvem a voz rouca das ruas.


 


Coordenação difícil


 


É evidente que seria demais esperar essa reação coordenada e pacífica, embora vigorosa e desafiadora à política de abertura indiscriminada do mercado interno. Para isso, seria preciso que o Grande ABC de sindicalistas, empresários, pensadores, universitários e lideranças sociais tivesse a humildade de reconhecer-se na lona. Entretanto, como até recentemente o que parecia mais sensato era compartilhar rocambolesca mistificação dos números e dos investimentos tecnologicamente seletivos, o que se viu ao longo dos anos foi uma quase que monolítica ação de avestruzes -- enterrou-se a cabeça diante do quadro de degradação da qualidade de vida.


 


Se é verdade que o Grande ABC foi capaz de organizar-se razoavelmente no âmbito interno com a construção de várias instâncias, casos do próprio Consórcio de Prefeitos, do Fórum da Cidadania, da Câmara Regional e da Agência de Desenvolvimento Econômico, também não resiste ao fato de que externamente não obteve qualquer resultado efetivo, desses que fazem a diferença entre o meramente pontual do profundamente sistêmico.


 


A Câmara Regional é retrato bem acabado da situação. Contam-se nos dedos das mãos as vezes em que o governador do Estado -- tanto Mário Covas quanto Geraldo Alckmin -- esteve na região com integrantes da entidade. Desempenho nada diferente cabe aos secretários estaduais. Já os resultados da pauta de propostas que determinaram o lançamento da Câmara são pífios, se considerada a asfixia econômica que atinge a região. Do governo federal, então, praticamente nada se registra como instrumental de peso à recuperação regional. Se forem mensurados os recursos gerados na região em forma de impostos e o que retorna com a aplicação de políticas desenvolvimentistas, o contraste será revoltante.


 


O emparedamento a que foi submetida a economia do Grande ABC explica sem retoques o quadro de depauperação de grande parcela dos 2,4 milhões de habitantes. A indústria automotiva -- montadoras e autopeças -- foi simplesmente triturada nos anos 90. Principalmente as autopeças, colocadas na arena da competitividade internacional com o drástico rebaixamento de alíquotas de importações. Não é por outro motivo que, além de deserções e falências, o concentrado universo de autopeças da região foi completamente desnacionalizado, como de resto no Brasil. Sedimentadas sob bases familiares, as pequenas e médias indústrias criadas para atender as montadoras de veículos praticamente desapareceram do mapa regional.


 


Vulnerabilidade regional


 


Some-se ao aniquilamento das pequenas e médias empresas a febre por competitividade das montadoras de veículos, cujos resultados mais visíveis são os 100 mil empregos formais da indústria que desapareceram entre 1990 e 2000, e se tem flagrante instantâneo da vulnerabilidade socioeconômica do Grande ABC. Tudo isso foi esmiuçado durante todo o tempo e nem assim as lideranças da região foram capazes de reagir. O Grande ABC agiu com a naturalidade patológica do endinheirado que vê a fortuna esvair-se, sabe que um dia vai ficar de bolsos vazios, mas mantém hábitos inalterados, à espera de milagre.


 


A decisão comandada por Luiz Tortorello tem o mérito de dizer a todas as lideranças regionais que a água de fato já bateu no pescoço e que é preciso aprender a nadar. Antes disso, por mais que dissimulassem, todos ou quase todos sabiam que a onda era forte, que o barco estava à deriva, mas não convinha surgir em cena com discurso que pudesse caracterizar-se como catastrofista. Nem agora, com o anúncio de levar três propostas ao presidente FHC, dá-se à empreitada a tonalidade dramática que a situação exige.


 


O esfarelamento evidente mas em doses homeopáticas poderia contrapor uma indagação nada digerível -- o que o conjunto dos administradores públicos do Grande ABC fez nesse período todo além de ejacular propostas e de assistir passivamente o desdém do governo estadual e do governo federal?


 


É possível que num ano eleitoralmente abolitivo o Consórcio de Prefeitos tenha acertado na mosca ao privilegiar a discrição em lugar do alarido na proposta de aproximação com a Presidência da República. Talvez uma mobilização ruidosa pudesse ser interpretada e instrumentalizada como ação político-partidária em favor de uma candidatura específica  -- certamente de Luiz Inácio Lula da Silva, o nome de maior fundamentação histórica na região. É provável que Luiz Tortorello, organizador dessa turnê, tenha pensado em tudo isso e em outros desdobramentos para solicitar uma audiência mais amistosa do que coercitiva. Espera-se apenas que os resultados sejam produtivos.


 


O paradoxo desse movimento é que, por mais que os problemas do Grande ABC só sejam possíveis de ser minimizados como efeitos de políticas macroeconômicas, é viável que o atendimento às três equações que constam do documento assinado pelo prefeito Luiz Tortorello reduza o grau de abandono que o excesso de ensaios intrarregionais e o desinteresse estadual e federal reservaram à economia regional.


 


Sem perda de tempo


 


A grande sacada do prefeito Luiz Tortorello é que, se pode chegar até o papa, por que deveria perder tempo com intermediários do baixo clero? Principalmente porque o pressuposto dessa aparentemente atrevida intervenção, que nenhum prefeito da região ousará negar-se a aderir, tem simbolismo muito especial e indiscutível: o Grande ABC está em situação de tal desespero ditado pela crescente queda de participação absoluta e relativa no PIB estadual e nacional, em contrafluxo com o embrutecimento social, que não resta alternativa senão arriscar xeque-mate contra o presidente do País. Um presidente que, com sua equipe econômica, sustenta há quase oito anos modelo desenvolvimentista que está na raiz das dificuldades de uma outrora grandiosa obra regional do capitalismo privado protegido pelo dirigismo estatal. Histórico, aliás, que só agrava a abertura desenfreada.


 


A decisão inicialmente individual de Luiz Tortorello, que assinou isoladamente o documento enviado à Presidência da República em nome dos demais prefeitos, pressupostamente indica que outro paradoxo se configura nessa manobra radical do prefeito de São Caetano que até recentemente mantinha distância do Consórcio Intermunicipal. Trata-se do fato de que, por mais que tenha ensebado mais teoria do que prática à integração regional, a nova cartada é consequência direta dessa experiência incompleta de coletivismo institucional.


 


É possível que, se vivo estivesse, o prefeito Celso Daniel observaria a empreitada de Luiz Tortorello com surpresa, repetindo, aliás, comportamento dos prefeitos petistas da região ao tomarem conhecimento da iniciativa. Afinal, como pode um prefeito tão ausente dos debates regionais ter sacado uma tática desse porte? Aí de novo se tem outro paradoxo: Tortorello só pensou e agiu de forma acaciana, provavelmente inspirado na mensagem bíblica de que se Maomé não vai à montanha a montanha vai à Maomé, porque estava imune aos paradigmas que dominaram o Consórcio, a Agência e a Câmara Regional ao longo dos tempos. Que paradigmas? A indispensável construção de diagnósticos internos, acompanhados de propostas que seriam aplicadas entre os parceiros locais ou com o suporte do governo do Estado. O governo federal, blindado contra a periferia do poder, jamais esteve na ponta da agulha.


 


O gesto de Luiz Tortorello foi tão surpreendente que os três pontos elencados no documento ficaram para segundo plano, embora sejam, na realidade, muito mais importantes para o fortalecimento da economia do Grande ABC. Ao acionar o botão de contato direto com a Presidência da República, o prefeito de São Caetano simplesmente colocou o ovo em pé. Duvida-se que Fernando Henrique Cardoso perca a oportunidade de acrescentar mais uma azeitona na empadinha de sua decantada diplomacia.


 


O que acontecerá?


 


A audiência provavelmente é questão de pouco tempo.


 


Audiência marcada, o que acontecerá? O futuro socioeconômico do Grande ABC está em jogo em casa, no Palácio dos Bandeirantes e no Palácio do Planalto. O nome da bola que vai garantir gols a favor ou contra chama-se política. Sim, são os gols políticos que determinarão até que ponto as agruras sociais e os descaminhos econômicos serão percebidos pelos interlocutores palacianos.


 


Por que então essa costura inédita de Luiz Tortorello num ano em que o presidente da República despede-se do cargo e o governador do Estado pode viver a mesma situação? Simplesmente porque, quaisquer que sejam os resultados eleitorais de outubro, a semente da linha direta com o poder central seria plantada e isso certamente se refletirá, independentemente de quem venha a ocupar os palácios paulistano e brasiliense, numa nova postura de interlocução com o Grande ABC. Desde que o Grande ABC não caia na besteira de enfeitar o pavão em nome de gataborralheirismo irritante que nega o inegável para se fazer de falsa Cinderela. 


 


Os três pontos centralizados no documento preparado pela equipe de Luiz Tortorello envolvem áreas distintas mas complementares. O primeiro se refere ao realinhamento da vocação industrial do Grande ABC, o segundo ao Banco de Fomento Regional e o terceiro à segurança pública. Embora as propostas não sejam esmiuçadas, as questões são intestinamente regionais.


 


Há certo exagero na definição de realinhamento da vocação industrial para que o Grande ABC se torne referência nacional em plásticos e derivados, através da geração de tecnologia, complementação da cadeira produtiva e produção de conhecimento. O projeto já existe, mas seria fortalecido pela participação do governo federal na definição da matriz de matéria-prima, na estruturação e financiamento do pólo tecnológico e nas ações de fomento dirigidas ao setor de transformação. Enfim, o que se pretende é transformar a região em centro de excelência nacional e internacional no processamento de plásticos e derivados. Por mais que se alcance esse objetivo, entretanto, isso não significa realinhamento consistente da vocação industrial da região. É apenas parte de um todo muito mais amplo de que carece a região para reconquistar a riqueza industrial perdida.


 


Já o Banco de Fomento, proposta antiga que LivreMercado defendeu em nome de Paul Singer, economista ligado ao Partido dos Trabalhadores, seria traduzido como braço regional do BNDES. Nada de complicado, quando se sabe que vários municípios do Interior de São Paulo já contam com essa ferramenta de apoio aos pequenos e médios negócios.


 


Quanto à questão da segurança pública, a proposta é articular um sistema regional que contemple recursos para a criação de núcleo de inteligência regional, patrulhamento aéreo, geoprocessamento para planejamento e estratégias comuns, sistema informatizado de informações, núcleo de qualificação de profissionais e intercâmbio em níveis nacional e internacional no combate ao crime organizado. Um sonho tipicamente de regiões metropolitanas assaltadas pela delinquência.


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