Não me reconhecerei se não acordar cedo e destrinchar os quatro jornais que atiram de qualquer maneira na garagem. Nem ficarei em paz se até por volta das 19h não vasculhar os sites preferidos. Minhas leituras diárias são obrigações da profissão e uma cadeia de prazeres e desprazeres. Um exemplo de desprazer é a manchetíssima do Diário do Grande ABC de hoje sobre a Chácara Baronesa, disfarce editorial para apoiar o deputado estadual Orlando Morando à reeleição.
Um prazer diário é me divertir com a coluna de José Simão na Folha de S. Paulo. Não há como uma manhã perder a graça se não contar com Zé Simão à mesa.
Antes de repassar aos leitores alguns comentários sobre as leituras desta sexta-feira, porque não resisto a ler tudo sob olhar critico, tanto quanto um médico que observa o semblante de transeuntes quem sabe para decifrar o estado de saúde geral, vou contar a metodologia que me impus.
Primeiro, pego jornal por jornal e pacientemente separo as páginas que interessam à leitura. São em média 40 por dia, sobre todos os assuntos. Separadas as páginas, leio-as até por volta das 9 horas. Quando algum compromisso me impõe restrições, a leitura é complementada à noite. Se sobra alguma coisa, o final de semana é inescapavelmente socorrista. Já os textos dos sites são divididos em duas ações: os curtos e de consumo fastfoodiano são devorados na tela do computador; os mais profundos acabam impressos à leitura noturna.
Profissão em extinção
É assim que há anos me entrego a uma profissão em extinção e desmoralizada na maioria dos veículos de comunicação. Carrego o peso de ter incentivado um de meus filhos a virar jornalista, mas salvei uma de minhas filhas quando já tinha consciência de que jornalismo virou pó. Amo profundamente a profissão a que me dedico há quase 50 anos, mas não a indico a filho de quem quer que seja. A maioria dos profissionais virou bucha de canhão dos poderosos de plantão. Se os herdeiros insistirem em seguir essa profissão, providenciem lobotomia. Assim eles não passarão por constrangimentos e farão carreiras promissoras por algum tempo. Conheço alguns que são emblemáticos na arte de serem seduzidos imaginando que seduzem.
Esse é o caso da manchetíssima de primeira página do Diário do Grande ABC de hoje: “Chácara Baronesa começa amanhã a ser revitalizada”. Aposto minha carreira com o deputado Orlando Morando: ele cometeu um crime de lesa-credibilidade ao afirmar recentemente ao mesmo jornal que aquela imensa área na divisa entre Santo André e São Bernardo, invadida ao longo dos anos por mais de 700 moradias, vai virar mesmo um Parque do Ibirapuera.
É claro que o jornal não retrocede no tempo nem resgata a declaração do deputado, emissário do governo do Estado na distribuição de verbas publicitárias da Sabesp e de outras estatais. Vende-se gato por lebre na suposta revitalização da Chácara Baronesa. É um chute na canela dos leitores menos preparados a decifrar os interesses em jogo. Com o R$ 1,5 milhão anunciado a algumas obras, não teremos algo senão um favelão com alguma preocupação com segurança e equipamentos de lazer.
Sugiro ao deputado Orlando Morando que passe a caminhar ou a correr diariamente na Chácara Baronesa assim que as obras terminarem. Não se perde a oportunidade de ter um Parque do Ibirapuera assim tão perto, não é mesmo?
Queima de estoque
Li também nos jornais de hoje anúncios de páginas inteiras de incorporadoras imobiliárias oferecendo descontos de até 35% nos preços de apartamentos nos mais diferentes pontos da Região Metropolitana de São Paulo. Aliás, não é de hoje que as grandes companhias, encalacradas pela baixa rentabilidade, quando não por prejuízos inquietantes, apelam para a queima de estoques. Enquanto isso, o presidente do Clube dos Construtores do Grande ABC, Milton Bigucci, segue a desfilar à Imprensa a ladainha de crescimento de vendas na região, sempre instrumentalizando fantasias estatísticas. O ritual é tão indecente que estou pensando em preparar um texto padrão para contrapor a cada anúncio do dirigente da MBigucci, empresa que mais infrações comete nas relações com a clientela, segundo o Ministério Público Estadual.
Li também nesta sexta-feira, agora na Folha de S. Paulo, que o Corinthians sofre com suposta síndrome do segundo tempo. O jornal expõe uma relação de jogos da equipe comandada por Tite, apresentando o resultado final de 11 a 4 no final do primeiro tempo e de 8 a 5 no final do segundo tempo como prova provada da queda de rendimento.
Consumi o texto com avidez e cheguei a uma conclusão menos simplória: o jornal poderia forrar de razões a assertiva se fosse mais detalhista e profundo. Faltam elementos para assegurar que somente o Corinthians perde produção e produtividade no segundo tempo, embora também esta seja uma desconfiança deste jornalista. Há tantos vetores a estudar para se chegar àquela conclusão que o melhor mesmo é não considerar o texto irrebatível, embora provável.
O jornal, repito, pode e deve ter razão, assim como todos aqueles que enxergam um pouco de futebol, mas os dados reunidos para embasar a conclusão são frágeis. Um time pode sofrer mais gols no segundo tempo e marcar menos se o resultado construído no primeiro tempo for fator de distensão. Dos 20 jogos sequenciais do Corinthians, nove foram fora de casa. Sugerem os números e, principalmente, um histórico de quem acompanhou os jogos, que o Corinthians, mais que eventual baixa física no segundo tempo, sofre mesmo é com a baixa capacidade de produzir contragolpes. A raiz principal não parece física, mas técnica. A saída de Paulinho retirou da equipe o fator surpresa. Também não se pode esquecer que os adversários enfrentam sempre o campeão do mundo, com intensidade máxima.
Grana marquetológico
Também me chamou a atenção nas leituras desta sexta-feira que o prefeito de Santo André, Carlos Grana, contabiliza orçamento 31% superior no ano que vem. Não vou resistir em alçar a proposta ao Observatório de Promessas e Lorotas. Grana está contando com dinheiro do governo federal numa proporção alucinante. Provavelmente desconheça o noticiário nacional que coloca os cofres federais em estado de alerta com a perspectiva de baixa do PIB em relação ao projeto. A assessoria de comunicação de Carlos Grana é louca para alçá-lo ao topo do noticiário. E o prefeito adora ser alçado, porque não tem planejamento a executar, enquanto Santo André continua a cair pelas tabelas no ranking que mais interessa à comunidade: o de produção de riqueza e de geração de emprego qualificado.
Li tudo sobre os novos lances do mensalão, do escândalo metroferroviário, da absolvição do deputado corrupto e também do reacionarismo do tribunal de justiça da CBF sobre eventuais consequências da briga de torcidas no jogo entre Corinthians e Vasco. A demagogia alastra-se por todos os campos. Na TV, então, cronistas não perdem a oportunidade para desfilar ranço clubista e conservador, enquanto a chave da questão é simples: punam-se os torcedores envolvidos e cobre-se do Estado a segurança pública que qualquer espetáculo exige.
Os clubes não têm obrigação de agirem como babás de torcedores organizados, por mais que todos, absolutamente todos os clubes, lhes deem suporte financeiro. Vai na contramão do politicamente correto opor-se a penalidades aos clubes, mas a hierarquia de responsabilidades começa, embora não termine, com os órgãos de segurança. Estádios sem divisão de torcidas são estádios fadados a incidentes.
Torcedor de verdade, convenhamos, não gosta de levar desaforo para casa. Mais que isso: torcedor de verdade não gosta de levar desaforo nem mesmo em casa. Basta conversar com quem mora em apartamentos para entender como o bicho pega em determinadas partidas. Parem de hipocrisia.
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08/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (31)